Breno Altman descreve o abismo entre a realidade e os da
“vanguarda do atraso”
Saiu na Agência Brasil:
Programa Mais Médicos atrai mais de 11 mil profissionais em
uma semana
Mariana Tokarnia
Repórter da Agência Brasil
Brasília – Em apenas uma semana, o Programa Mais Médicos
recebeu 11.701 inscrições de profissionais e 753 inscrições de municípios,
informou hoje (17) o Ministério da Saúde. Cerca de 80% dos médicos inscritos
formaram-se no Brasil e pouco mais de 92% dos interessados são brasileiros. As
inscrições ainda estão abertas e podem ser feitas pelos municípios e pelos médicos,
até o dia 25 deste mês, na página do programa na internet.
De acordo com o Ministério da Saúde, do total de
profissionais que deram início ao cadastro, 9.366 se formaram no Brasil e 2.335
no exterior. Quanto à nacionalidade, 10.786 são brasileiros e 915,
estrangeiros. Os médicos participantes receberão bolsa de R$ 10 mil, paga pelo
Ministério da Saúde, como ajuda de custo e farão especialização em atenção
básica. Todos os participantes do programa serão acompanhados por instituições
públicas de ensino.
Os profissionais formados no Brasil, ou com diplomas
validados no país, terão prioridade nas vagas do programa. As que não forem
preenchidas por eles serão oferecidas aos estrangeiros inscritos. Só serão
selecionados médicos que atuam em países que tenham mais de 1,8 médicos por mil
habitantes, com registro comprovado naquele país e que tenham conhecimento da
língua portuguesa.
(…)
Leia também o texto de Breno Altman:
Conservadorismo de branco é a vanguarda do atraso
As manifestações de médicos, nessa última terça-feira,
revelam um núcleo duro e mobilizado das elites brasileiras. Sua influência nos
meios de comunicação, na sociedade e nas instituições já ameaça o programa de
saúde recentemente lançado pelo governo. A julgar pelas emendas apresentadas na
Câmara dos Deputados, a desfiguração desse projeto será inevitável.
O Palácio do Planalto pode estar pagando um preço por ter
agido de forma atabalhoada, sem consultar e articular as correntes mais
progressistas da medicina, o que seria obrigatório para batalha dessa
envergadura. Mas a reação não é contra eventuais falhas de interlocução: sua
natureza reside em defender privilégios corporativos, contrapostos aos
interesses do país e aos direitos da cidadania.
As três principais bandeiras nas marchas dos jalecos brancos
são elucidativas. São contra a extensão da residência em dois anos, com
obrigatoriedade de servir o Sistema Único de Saúde. Não concordam com a vinda
de doutores estrangeiros para cobrir déficit de profissionais, especialmente
nos rincões do país. Reivindicam a derrubada do veto presidencial sobre o
chamado Ato Médico, que fixava supremacia da categoria em relação a outros
trabalhadores do universo sanitário.
São reivindicações de quem olha para o próprio umbigo.
Insuflada pelos extratos mais ricos e articulados com o conservadorismo, a
mobilização médica não entra na briga para a melhoria da saúde pública. Seus
maiores aliados são os que comandaram campanha para eliminar a CPMF e retiraram
cerca de 40 bilhões de reais anuais para o financiamento do setor.
Não passa de deslavada hipocrisia quando se afirma que o
problema não é a falta de médicos, mas a carência de estrutura nos hospitais e
centros de atendimento. As dificuldades são inegáveis, isso é fato. No contexto
deste embate, porém, não passam de álibi para que o andar de cima possa fazer
sua vida sem reciprocidade com os milhões de brasileiros que suaram a camisa e
pagaram impostos para garantir a existência de boas faculdades públicas de
medicina.
O Brasil tem um número pífio de médicos, na proporção de 1,8
para cada mil habitantes. Na Inglaterra, esse índice é de 2,7. Em Cuba, de 6.
Nos últimos dez anos, surgiram 147 mil novas vagas no mercado de trabalho, mas
apenas 93 mil profissionais foram formados. Há 1,9 mil municípios com menos de
um médico por 3 mil habitantes. Em outras 700 cidades, não há doutores com
residência fixa. Nem é preciso dizer que esses 2,6 mil municípios sem
assistência adequada estão entre os mais pobres e distantes dos grandes
centros.
O governo criou o Programa de Valorização do Profissional da
Atenção Básica (Provab), para levar médicos ao interior e aos subúrbios. A
demanda era de 13 mil trabalhadores, mas apenas 3,8 mil postos foram
preenchidos, apesar do salário de 8 mil reais que é oferecido, agora aumentado
para 10 mil no Programa Mais Médicos. Até mesmo bairro periféricos de cidades
importantes, como Porto Alegre e São Paulo, não conseguem atrair interessados.
Parte expressiva da categoria, diplomada em instituições do
Estado, não está nem aí para a hora do Brasil. Não quer sair de sua zona de
conforto e se acha no direito de pensar apenas em carreira pessoal e montar um
rentável consultório privado em alguma metrópole.
Entidades da área, especialmente o Conselho Federal de
Medicina, fazem de tudo para impedir a ampliação do número de faculdades (em
nome da qualidade de ensino, é claro) e a contratação de médicos estrangeiros
ou formados no exterior. A reserva de mercado, para essa gente, está acima da
saúde pública.
E essa gente é muito diferenciada. Enquanto 40% do total de
alunos da Universidade de São Paulo frequentaram colégios públicos, na
Faculdade de Medicina essa origem restringe-se a 2% dos matriculados. Na turma
de 2013, nenhum deles era negro. Médicos ricos querem ficar mais ricos
atendendo os ricos. Como os pobres têm bem menos chances de ganhar o canudo,
esses que se lasquem.
O governo tentou resolver o problema apenas por métodos de
atração. Não encontrou auditório. Resolveu, então, adotar um modelo semelhante
àquele adotado, há décadas, por países tão distintos quanto Israel e Cuba,
instituindo uma variante de serviço civil obrigatório, ainda que bem
remunerado.
A formação de um médico, na universidade pública, custa ao
redor de 800 mil reais para o tesouro da União e dos estados. Nada mais justo
que haja alguma forma de retribuição pelo aporte realizado por toda a sociedade
para cada indivíduo que virou doutor. Dois anos de reembolso, com um razoável
contracheque, é uma bagatela. Vale lembrar que o dever do Estado é com o povo,
não com os médicos.
Talvez os estudantes das faculdades privadas pudessem estar
isentos dessa medida, mas todo o cuidado é pouco para evitar que os
endinheirados aproveitem brechas para escapar de sua obrigação social, trocando
de curso. Uma ou outra correção cabe ser feita, mas o ministro da Saúde e a
presidente Dilma Rousseff estão cumprindo sua tarefa constitucional.
O que falta, além de mobilizar os setores da saúde favoráveis
às providências adotadas, é travar uma batalha de valores mais firme sobre o
programa em discussão. Por enquanto, parece que a preocupação principal é
acalmar a ira de médicos ensandecidos pelo egoísmo de classe. O objetivo
principal deveria ser debater os deveres de solidariedade dos que recebem
privilégios e os direitos de todos a receber assistência médica de qualidade.
Não se pode dar moleza a porta-vozes da ignorância e má fé.
Quando personagens como Cláudio Lottenberg e Miguel Srougi se voltam contra a
vinda de médicos cubanos, há pouco o que acrescentar. Mentem descaradamente
sobre a qualidade desses especialistas, cuja proficiência é atestada pela
Organização Mundial da Saúde e pelas 65 nações nas quais trabalham para suprir
deficiências locais.
Afinal, seria um horror para o reacionarismo de branco
assistir médicos da ilha de Fidel, muitos entre eles negros, pegando no batente
em locais para os quais seus colegas brasileiros viram as costas e tapam o
nariz. A nudez de seu comportamento lhes seria insuportável.
Clique aqui para ler “Padilha: O Brasil tem metade dos
médicos da Argentina”.
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