Por Paulo Victor Melo, na revista CartaCapital:
Desde o desembarque do maior líder da Igreja Católica em
solo brasileiro, na última segunda-feira (22), as principais emissoras de
televisão aberta do país têm dedicado grande parte das suas programações a
conteúdos sobre cada passo do Papa Francisco. Pela tela das TVs, o Brasil
parece ter parado, e nada que não tenha relação com o cotidiano do argentino
Jorge Mario Bergoglio merece destaque nos grandes meios. Os telejornais
praticamente se transformaram em extensões da assessoria de imprensa do
Vaticano; os programas de variedade e entretenimento resumem-se ao papel de
retratar hábitos e curiosidades da passagem do primeiro papa latino-americano
pelo Brasil. Enfim, uma série de informações desprovidas de senso crítico que
abandonam o jornalismo e o interesse público e escancaram uma relação íntima
entre mídia e religião no Brasil.
A cobertura da presença do Papa Francisco no Brasil pelas
principais emissoras, em si, já é algo preocupante, pois, ao privilegiar e
conceder tamanho espaço a um determinado segmento religioso, vai na contramão
da laicidade do Estado. Porém, a intimidade entre mídia e religião em nosso
país guarda outros aspectos, muitas vezes pouco percebidos e discutidos, que
vão muito além das notícias sobre o Papa.
O primeiro é que a ocupação da programação de emissoras de
rádio e TV por conteúdos religiosos não é algo restrito aos dias da visita
papal. Missas, cultos evangélicos, pregações, sermões e sessões de “descarrego”
são alguns ritos religiosos presentes com frequência nas manhãs, tardes, noites
e madrugadas de diversos canais. Levantamento feito pelo Intervozes e divulgado
pelaFolha de S.Paulo mostra que cerca de 140 horas semanais da TV brasileira
são preenchidas com programação religiosa. CNT e Gazeta são algumas das
emissoras que transmitem celebrações religiosas diariamente. Mas o caso mais
emblemático, sem dúvida, é o do Canal 21 de São Paulo, vinculado ao Grupo
Bandeirantes, que arrenda 22 horas diárias de sua programação para a Igreja
Mundial do Poder de Deus.
Com emissoras de maior audiência como Rede TV e Bandeirantes
não é muito diferente. A primeira vende 46 horas semanais de sua grade para
diferentes igrejas. Já a emissora da família Saad tem 31 horas por semana
exclusivas para programação religiosa. Tal prática de arrendamento das grades
de programação viola flagrantemente a legislação em vigor, diante do silêncio
do Ministério das Comunicações, a quem caberia a fiscalização do setor.
Não satisfeitos com o espaço na programação de vários
canais, segmentos religiosos têm ainda sob o seu controle a propriedade de
quase uma dezena de estações de TV: Canção Nova, TV Século XXI, TV Aparecida,
RIT, Rede Gospel, Rede Mulher e Rede Família, entre outras. Vale lembrar que
esse não é um fenômeno recente do sistema de mídia brasileiro, mas que nos últimos
anos vem ganhando proporções significativas. Um marco histórico da penetração
de segmentos religiosos nos meios de comunicação aconteceu nos anos 90, com a
compra da TV Record pela Igreja Universal do Reino de Deus em 1990 e a entrada
em funcionamento da Rede Vida de Televisão, ligada à Igreja Católica, em 1995.
Falando em Rede Vida, o atual presidente do grupo é o
arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Orani Tempesta, principal anfitrião do Papa no
Brasil. E aí é que a relação mídia e religião ganha outros contornos. O mesmo
Dom Orani Tempesta é o atual presidente do Conselho de Comunicação Social,
órgão consultivo do Senado Federal previsto na Constituição de 1988. O
Conselho, que ficou desativado por sete anos, é o principal espaço nacional de
participação social no setor das comunicações, tendo como atribuições realizar
estudos, pareceres e recomendações sobre a liberdade de manifestação do
pensamento, criação, expressão e de informação; sobre as finalidades
educativas, artísticas, culturais e informativas da programação das emissoras
de rádio e televisão; e sobre a propriedade das empresas jornalísticas e de
radiodifusão, dentre outros temas. Ou seja, o representante da sociedade civil
brasileira no maior posto do Conselho de Comunicação Social do Congresso
brasileiro é um arcebispo da igreja católica.
Nem mesmo a única emissora de TV pública de caráter nacional
está isenta de conteúdos religiosos. Duas horas das manhãs de domingo da TV
Brasil são ocupadas com programação católica, sendo uma hora destinada à
exibição ao vivo da Santa Missa da Arquidiocese do Rio de Janeiro, que tem como
líder supremo o já citado Dom Orani Tempesta.
Em 2012, o Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação
(que administra a TV Brasil), decidiu, após consulta pública aberta à
população, substituir a transmissão dos programas religiosos por conteúdos
informativo-culturais sobre religiosidade e diversidade de credos. Dom Orani –
principal anfitrião do Papa Francisco no Brasil, presidente da Rede Vida de
Televisão, presidente do Conselho de Comunicação Social e diretor do programa
Santa Missa – utilizou então o espaço público da televisão para pedir aos fiéis
que enviassem cartas e e-mails à Presidenta Dilma Rousseff contra a decisão do
Conselho Curador da EBC. Não precisou nem mesmo Dilma se manifestar. A Justiça
Federal do Distrito Federal concedeu uma liminar mantendo a transmissão da
missa dominical na TV pública.
Enfim, quando o assunto é mídia e religião, ainda estamos
distantes de respeitar a laicidade do Estado e promover a diversidade de credos
no Brasil. Proselitismo religioso na televisão é algo marcante não apenas esta
semana, mas uma tendência histórica da mídia brasileira, que tem como
consequências a construção de privilégios para alguns segmentos religiosos e a
publicização de discursos tradicionalistas, em defesa de uma moral cristã. Em
risco está a liberdade de expressão do conjunto da população brasileira e a
convivência democrática entre os que se identificam ou não com determinadas
crenças e ainda com os que não professam qualquer religião.
* Paulo Victor Melo é jornalista, membro do Conselho Diretor
do Intervozes e mestrando em Comunicação e Sociedade na Universidade Federal de
Sergipe
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