Por Dedé Rodrigues com conteúdo de Matheus Pichonelli.

Matheus Pichonelli escreveu um glossário com a lista dos principais clichês repetidos pelas redes sociais para justificar, no discurso, um mundo de violência e exclusão. O título da matéria dele é "Não penso, logo relincho". Leia abaixo estas frases preconceituosas e continue lendo para compreender o que ele aborda sobre cada uma delas.
“Negros têm preconceitos contra eles mesmos”;
“Não precisamos de consciência preta, parda ou branca. Precisamos de consciência humana”;
“Estamos criando uma ditadura gay (ou racial) no Brasil. O que essas pessoas querem é privilégio”;
“A mulher deve se dar o valor”;
“Os homens também precisam ser protegidos da violência feminina”;
“Se ela se deixou ser filmada, é porque quis se exibir”.
“O humor politicamente correto é sacal”;
“Bolsa Família incentiva a vagabundagem. Pegar na enxada e trabalhar ninguém quer”
“Na ditadura as coisas funcionavam”;
“A criminalidade só vai diminuir quando tiver pena de morte no Brasil”;
"Político deveria ser tratado por médico cubano”;
“Deveriam fazer testes de medicamento em presidiários, não em animais”;
“Você defende direito de presos porque ele não agrediu ninguém da sua família”.;
“Por que você não vai para Cuba?”
Por Matheus Pichonelli*, na Carta Capital.
Dizem que uma mentira repetida à exaustão se transforma em
verdade. Pura mentira. Uma mentira repetida à exaustão é só uma mentira, que
descamba para o clichê, que descamba para o discurso. E o discurso, quando mal
calibrado, é o terreno para legitimar ofensas, preconceitos, perseguições e
exclusões ao longo da História. Nem sempre é resultado da má-fé. Por estranho
que pareça, é na maioria das vezes fruto da indigência mental – uma indigência
mental que assola as escolas, a imprensa, as tribunas, as mesas de bares, as
redes sociais. Com os anos, a liberdade dos leitores para se manifestar sobre
qualquer assunto e o exercício de moderação de comentários nos levam a
reconhecer um clichê pelo cheiro. Listamos alguns deles abaixo com um apelo
humanitário: ao replicar, você não está sendo original; está apenas repetindo
uma fórmula pronta sem precisar pensar sobre tema algum. E um clichê repetido à
exaustão, vale lembrar, não é debate. É apenas relincho*.
“Negros têm preconceitos contra eles mesmos”
Tentativa clássica de terceirizar o próprio racismo, é a
frase mais falada das redes sociais durante o Dia da Consciência Negra. É
propagada justamente por quem mais precisa colocar a mão na consciência em
datas como esta: pessoas que nunca tomaram enquadro na rua nem foram preteridas
em entrevistas de emprego sem motivos aparentes. O discurso é recorrente na
boca de quem jamais se questionou por que a maioria da população brasileira não
circula em ambientes frequentados pela elite financeira e intelectual do País,
como universidades, centros culturais, restaurantes, shows e centros de compra.
Tem a sua variação homofóbica aplicada durante a Parada Gay. O sujeito tende a
imaginar que Dia Branco e Dia Hétero são equivalentes porque ignora os
processos históricos de dominação e exclusão de seu próprio país.
“Não precisamos de consciência preta, parda ou branca.
Precisamos de consciência humana”
Eis uma verdade fatiada que deixa algumas perguntas no
contrapé: o manifestante a exigir direitos iguais não é gente? O que mais se
busca, nessas datas, se não a consciência humana? Ou ela seria necessária, com
ou sem feriado, caso a cor da pele (ou o gênero ou a sexualidade) não fosse,
ainda hoje, fatores de exclusão e agressão?
“Héteros morrem mais do que homossexuais. Portanto, somos
mais vulneráveis”
É o mesmo que medir o volume de um açude com uma régua
escolar. Crimes como homicídio, latrocínio, roubo ou furto têm causas diversas:
rouba-se ou mata-se por uma carteira, por ciúmes, por fome, por motivo fútil,
por futebol, mas não necessariamente por causa da orientação sexual da vítima.
O argumento é utilizado por quem nunca se perguntou por que ninguém acorda em
um belo dia e decide estourar uma barra de ferro na cabeça de alguém só porque
este alguém gosta e anda de mãos dadas com alguém do sexo oposto. O crime
motivado por ódio contra heterossexuais é tão plausível quanto ser engolido por
uma jaguatirica em plena Avenida Paulista.
“Estamos criando uma ditadura gay (ou racial) no Brasil. O
que essas pessoas querem é privilégio”
Frase utilizada por quem jamais imaginou a seguinte cena: o
sujeito acorda, vê na tevê sempre os mesmos apresentadores, sempre as mesmas
pautas, sempre as mesmas gracinhas. No caminho do trabalho, ouve ofensas de
pedestres, motoristas e para constantemente em uma mesma blitz que em tese
serviria para todos. Mostra documento, RG. Ouve risada às suas costas. Precisa
o tempo todo provar que trabalha e paga imposto (além, é claro, de trabalhar e
pagar imposto). Chega ao trabalho e é recebido com deferência: “oi boneca”; “oi
negão”; “veio sem camisa hoje?”. Quando joga futebol, vê a torcida imitando um
macaco, jogando bananas ao campo, ou imitando gazelas. E engasga toda vez que
vira as costas e se descobre alvo de algum comentário. Um dia diz: “apenas
parem”. E ouve como resposta que ele tem preconceito contra a própria condição
ou está em busca de privilégio. Resultado: precisamos de um novo glossário
sobre privilégios.
“A mulher deve se dar o valor”
Repetida tanto por homens como por mulheres, é a confissão
do recalque, em um caso, e da incompetência, no outro: o homem recorre ao
mantra para terceirizar a culpa de não controlar seus próprios instintos; a
mulher, por pura assimilação dos mandamentos do pai, do marido e dos irmãos.
Nos dois casos o interlocutor acredita que, ao não se dar o valor, a menina
assume por sua conta e risco toda e qualquer violência contra sua pretensão.
Para se vestir como quer, andar como quer, dizer e fazer o que quer com quem
bem quiser, ouvirá, na melhor das hipóteses, que não é a moça certa para casar;
na pior, que foi ela quem provocou a agressão.
“Os homens também precisam ser protegidos da violência
feminina”
Na Lua, é possível que a violência entre gêneros seja
equivalente. Na Terra, ainda está para aparecer o homem que apanhou em casa
porque foi chamado de gostoso na rua, levou mão na bunda, ouviu assobios ou
ruídos com a língua sem pedir a opinião da mulher. Também não há relevância
estatística para os homens que tiveram os corpos rasgados e invadidos por
grupos de mulheres que dominam as delegacias do País e minimizam os crimes ao
perguntar: “Quem mandou tirar a camisa?”.
“Se ela se deixou ser filmada, é porque quis se exibir”.
Verdade. Mas não leva em conta um detalhe: existe alguém do
outro lado da tela, ou da câmera. Este alguém tem um colchão de conforto a seu
favor. Se um dia o vídeo vazar, será carregado nos braços como comedor. Ela,
enquanto isso, vai ser sempre a exibida. A puta. A idiota que deixou ser
flagrada. A vergonha da família. A piada na escola. Parece uma relação bastante
equilibrada, não?
“O humor politicamente correto é sacal”
É a mais pura verdade em um mundo no qual o politicamente incorreto
serve para manter as posições originais: ricos rindo de pobres, paulistas
ridicularizando nordestinos, brancos ricos fazendo troça de mulatos pobres,
machões buscando graça na vulnerabilidade de gays e mulheres. As provocações
são brincadeiras saudáveis à medida que a plateia não se identifica com elas: a
graça de uma piada sobre português é proporcional à distância do primeiro
português daquele salão. Via de regra, a frase é usada por quem jura se ofender
quando chamado de girafa branca tanto quanto um negro ao ser chamado de macaco.
Só não vale perguntar se o interlocutor já foi chamado de “elemento suspeito”,
com tapas e humilhações, pelo simples fato de ser alto como o artiodátilo.
“Bolsa Família incentiva a vagabundagem. Pegar na enxada e
trabalhar ninguém quer”
Há duas origens para a sentença. Uma advém da bronca –
manifestada, ironicamente, por quem jamais pegou em enxada – por não se
encontrar hoje em dia uma boa empregada doméstica pelo mesmo preço e a mesma
facilidade. A outra origem é da turma do “pegar o jornal e ler além do
horóscopo ninguém quer”; se quisesse, o autor da frase saberia que o Bolsa
Empreiteiro (que também dispensa a enxada) consome muito mais o orçamento
público do que programa de transferência de renda. Ou que a maioria dos
beneficiários de Bolsa Família não só trabalha como é obrigada a vacinar os
filhos, manter a regularidade na escola e atravessar as portas de saída do
programa. Mas a ojeriza sobre números e fatos é a mesma que consagrou a enxada
como símbolo do nojo ao trabalho.
“Na ditadura as coisas funcionavam”
Frase geralmente acolhida por pacientes com síndrome de
Estocolmo. Entre 1964 e 1985, a economia nacional crescia para poucos, às
custas de endividamento externo e da subserviência a Washington; universalização
do ensino e da saúde era piada pronta, ninguém podia escolher os seus
representantes, a imprensa não podia criticar os generais e a sensação de
segurança e honestidade era construída à base da omissão porque ninguém
investigava ninguém. Em todo caso, qualquer desvio identificado era prontamente
ofuscado com receitas de bolo na primeira página (os bolos eram de fato
melhores).
“Você defende direito de presos porque ele não agrediu
ninguém da sua família”.
É o sofisma usado geralmente contra quem defende o uso das
leis para que a lei seja garantida. Para o sujeito, aplicação de penas e
encarceramentos são privilégios bancados às custas dele, o contribuinte. Em sua
lógica, o Estado só seria efetivo se garantisse a sua segurança e instituísse a
vingança como base constitucional. Assim, a eventual agressão contra um
integrante de uma família seria compensada com a agressão a um integrante da
família do acusado. O acúmulo de experiência, aperfeiçoamento de leis e
instituições, para ele, são papo de intelectual: bons eram os tempos dos
linchamentos, dos apedrejamentos públicos, da Lei de Talião. Falta perguntar se
o defensor do fuzilamento está disposto a dar a cara a tapa, ou a tiro, quando
o filho dirigir bêbado, atropelar, agredir e violentar a família de quem, como
ele, defende penas mais duras para crimes inafiançáveis.
“A criminalidade só vai diminuir quando tiver pena de morte
no Brasil”
Frase repetida por quem admira o modelo prisional e o
corredor da morte dos EUA, o país mais rico do mundo e ao mesmo tempo o mais
violento entre as nações desenvolvidas. Lá o crime pode não compensar (em algum
lugar compensa?), mas está longe de ser varrido junto com seus meliantes.
“Político deveria ser tratado por médico cubano”
Tradução: “não gosto de política nem de cubano”. Pelo
raciocínio, todo paciente tratado por cubanos VAI morrer e todo político que
precisa de tratamento médico DEVE morrer. Para o autor da frase, bons eram os
tempos em que, na falta de médico brasileiro, deixava-se o paciente morrer – ou
quando as leis eram criadas não pelo Legislativo, mas pelo humor de quem
governa na canetada.
“Deveriam fazer testes de medicamento em presidiários, não
em animais”
Também conhecida como “não aprendemos nada com a parábola do
filho Pródigo que tantas vezes rezamos na catequese”. É citada por quem não
aceita tratamento desumano contra os bichos, mas não liga para o tratamento
desumano contra humanos. É repetida também por quem se imagina livre de todo
pecado e das grandes ironias da vida, como um certo fiscal da prefeitura de São
Paulo que um certo dia criticou o direito ao indulto de presidiários e, no
outro, estava preso acusado de participação na máfia do ISS. É como dizem:
teste de laboratório na cela dos outros é refresco.
“Por que você não vai para Cuba?”
Também conhecida como “acabou meu estoque de argumentos.
Estou andando na banguela”.
#Este post é permanente: será atualizado conforme outros
clichês não contemplados na primeira postagem aparecerem. Todos estão
convidados a colaborar.
*Matheus Pichonelli é formado em jornalismo e ciências
sociais, é editor-assistente do site de CartaCapital
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