O guerreiro luta por
uma causa. O torturador se distingue pela ausência de riscos. O torturado
sempre está desarmado. O torturador brinca com o medo do outro, porque não
consegue enfrentar o seu.
Mauro Santayana*, na Rede Brasil Atual
O que é a tortura? Como um ser humano pode conceber usar o
corpo de outro ser humano, que possui a mesma pele, a mesma boca, os mesmos
dentes, os mesmos ossos, os mesmos cabelos, os mesmos bilhões de neurônios,
para punir-lhe com dor, desespero e medo?
São muitos os que buscam atribuir a tortura à natureza
humana, como fazem com a guerra e outros crimes. Mas existe um enorme abismo
entre quem luta e o torturador. O guerreiro luta por uma causa. Está sujeito a
morrer por uma fonte de água, a carcaça de uma presa recém-abatida, por sua
mulher e seus filhos. O combatente atávico que existe em cada um de nós sabe
dos riscos que corre, em defesa de suas circunstâncias, de suas ideias, de sua
condição. Pode morrer ou ser ferido em batalha.
O torturador se distingue pela ausência de riscos, de
coragem. O torturado sempre está desarmado, ou amarrado e indefeso, frente a
ele. O torturador brinca com o medo do outro, porque, dentro de si mesmo, não
consegue enfrentar e encarar o próprio medo. Ele é covarde por natureza, é
movido pelo mal e o sadismo, e por sua fraca e abjeta personalidade. Ele não
precisa de uma ideia, de uma razão.
“A finalidade do terror é o terror. O objetivo da opressão,
a opressão. A finalidade da tortura é a tortura. O objetivo da morte é a morte.
A finalidade do poder é o poder. Você está começando a me entender?” explica, a
um prisioneiro, um personagem de George Orwell, no livro 1984. Os torturadores
são, antes de tudo, psicopatas. Dependendo do momento da história, irão
torturar em nome de Deus, de uma bandeira, um uniforme, uma ideologia, uma
religião. Use a roupa que usar, ocupe seja que cargo, o torturador não passa de
criminoso vulgar.
Uma sociedade que abomina assassinos, ladrões, corruptos,
estupradores, não pode aceitar conviver, em seu seio, com torturadores. Até
mesmo porque o torturador quase sempre é, também, assassino, ladrão, corrupto e
estuprador. A diferença entre a tortura e a lei é a mesma que existe entre a
barbárie e o progresso. Aceitar a tortura como inerente à condição humana é o
mesmo que negar que um povo, um Estado, uma nação, a humanidade possam evoluir.
Dostoiévski dizia que a melhor forma de medir o grau de
civilização de um país¬ era conhecer, por dentro, suas prisões. Nesse aspecto,
a situação no Brasil é vergonhosa. Não apenas com relação às condições e
superlotação de nossas cadeias, mas pela forma como nossa sociedade convive com
a tortura e o torturador.
O brasileiro médio é falso, hipócrita e leniente com relação
à tortura. As mesmas pessoas que se revoltam com o vídeo feito por uma vizinha,
mostrando uma mulher espancando um cachorrinho na área de serviço, se regozijam
quando veem um menino ou menina de 7, 8 anos – morador de rua e muitas vezes,
já dominado pelo crack – ser agarrado pela orelha, e tomar uma surra de
policiais ou seguranças. Param, a caminho do trabalho, para deleitar-se.
Corações e mentes
O agente do Estado, no Brasil, formado em uma longa tradição
autoritária, que vem desde os capitães do mato, e dos diferentes hiatos
ditatoriais de nossa história, acha que tem direito de vida ou morte sobre o
suspeito. Isso está fartamente demonstrado não apenas nos milhares de casos de
mortes por “auto de resistência”, mas também pelo que ocorre com os presos,
muitos sem sequer terem passado por julgamento, no interior de nossas prisões.
O mesmo vale para o outro lado da moeda.
Da mesma forma que um policial corrupto espanca, humilha e
ameaça matar a mãe ou a filha de um suspeito, para saber – em interesse próprio
– onde está escondido o produto de um assalto ou a droga recém-chegada, a
violência extrema tem sido praticada, também, pelas novas gerações de
marginais, que torturam e matam famílias, crianças e idosos, para tentar saber
onde está um punhado de reais. Como controlar essa corrente de estupidez?
Um bom começo, do ponto de vista do Judiciário, seria perder
o pudor de usar a lei e condenar alguém pelo crime de tortura. Raramente alguém
que comete latrocínio com extrema violência tem a sua pena acrescida por
tortura. É como se condenar alguém por esse crime fosse proibido, ou ela não
existisse em nosso dicionário.
Nos portais e redes sociais ela nunca é citada por quem a
defende. Ninguém, referindo-se a um suspeito, escreve ou afirma “tem de
torturar esse cara”. Para que fique tudo mais íntimo e corriqueiro, banalizado,
usam-se expressões como “tá precisando é de couro”, “se fosse meu filho, dava
uma de criar bicho”, “comida de preso é paulada”, “pendura que ele canta”,
“tinha que cortar na borracha” e outras do gênero.
A presidenta Dilma Roussef lançou, no último 12 de dezembro,
o Sistema Nacional de Enfrentamento à Tortura, que prevê a instalação de um
mecanismo autônomo que, por meio de peritos, terá autorização prévia para
entrar em penitenciárias, instalações militares, delegacias, instituições de
longa permanência de idosos, instituições de tratamento de doenças psíquicas ou
similares, para constatar a existência de possíveis violações de direitos
humanos nesses locais. Trata-se de importante iniciativa, considerando-se que o
Brasil é signatário da Convenção Internacional Contra a Tortura desde 1989, e
que, em 500 anos de história, é a primeira vez que a Nação está encarando, de
forma direta, essa abominável questão.
Mas a verdadeira batalha não se dará apenas com a
fiscalização do que está ocorrendo nas prisões, que poderia avançar com a
instalação de delegacias de direitos humanos em todo o país. Ela será travada
nos corações e mentes da população brasileira.
Não podemos nos considerar civilizados enquanto milhares de
brasileiros defenderem a execução ilegal e a tortura como método de punição e
investigação. Não podemos nos considerar civilizados enquanto juízes
estabelecerem jurisprudência atribuindo à vítima de tortura o ônus de provar
que foi torturada. Esse paradigma, estabelecido na ideologia escravocrata e
repressora de parte considerável de nossa sociedade, só poderá ser alterado a
partir do ensino, em todas as escolas, desde o primeiro grau, dos direitos e
deveres consubstanciados na Constituição brasileira, atendo-se estritamente ao
seu conteúdo, para não dar à direita fascista motivo para combater a
iniciativa.
Só quando ensinarmos nossos filhos e netos que o mero ato de
um policial espancar um manifestante, em uma situação de protesto – ou
manifestantes espancarem um policial desarmado – é ilegal; que extrair dor de
outro homem, mulher, criança, indefeso, humilhando-os, transformando-os, pelo
medo, em animais ¬irracionais, que gritam, sangram e choram, segundo a vontade
de seu torturador, é crime abjeto e condenável, poderemos começar a mudar, de
fato, a mentalidade a propósito da tortura, sua imagem e paradigmas, em nosso
país.
*Colunista político do Jornal do Brasil, diário de que foi
correspondente na Europa (1968 a 1973). Foi redator-secretário da Ultima Hora
(1959), e trabalhou na Folha de S. Paulo (1976-82), onde foi colunista político
e correspondente na Península Ibérica e na África do Norte.
..
0 comentários :
Postar um comentário