De quem é a culpa por esse justiciamento de um espaço
público ? – PHA
O Conversa Afiada tem o imenso prazer de republicar
antológico artigo do professor Venício Lima, do Observatório da Imprensa (não
deixe de ler também sobre “hipocrisia” e “a resposta dos black blocs ao
editorial do jn”):
A alteridade cínica da grande mídia
Por Venício A. de Lima
A Rede Globo de Televisão recomendou a seus jornalistas,
inclusive os que trabalham em suas 122 (cento e vinte e duas) emissoras
afiliadas, “que a Copa e a seleção brasileira são uma paixão nacional, mas que
irregularidades deverão ser denunciadas e ‘pautas positivas’ deverão ser
evitadas, a não ser que ‘surjam naturalmente’. Reportagens que mostram como a
Copa está beneficiando grupos de pessoas, como os comerciantes vizinhos a
estádios, já não estão sendo produzidas para o Jornal Nacional” (ver aqui, e aqui
a resposta da Globo).
No telejornal SBT Brasil, a âncora fez aberta apologia de
“justiceiros” vingadores que espancaram, despiram e acorrentaram pelo pescoço
um suspeito adolescente, de 15 anos, a um poste no Flamengo, no Rio de Janeiro.
A recomendação da Globo e a posição defendida no SBT –
concessionárias do serviço público de radiodifusão – teriam alguma relação com
o aumento da violência urbana?
Mídia e violência
Em artigo recente, neste Observatório, comentei a “pauta
negativa” do jornalismo regional em Brasília que chamei de “jornalimso do vale
de lágrimas” (ver “O ‘vale de lágrimas’ é aqui“).
O que me traz de volta ao tema é, especificamente, a
alteridade cínica do jornalismo do vale de lágrimas na cobertura da violência
urbana. Esse tipo de jornalismo “faz de conta” de que a mídia não tem qualquer
responsabilidade em relação ao que ocorre na sociedade brasileira. Ela seria
apenas uma observadora privilegiada cumprindo o seu papel de tornar pública a
violência e cobrar mais policiamento dos governos local e federal – como se a
solução da violência fosse um problema apenas de mais ou menos policiamento.
Por várias vezes tratei dessa alteridade cínica neste
Observatório, sobretudo em função das evidências acumuladas ao longo de anos de
pesquisa em vários países que relacionam a violência ao conteúdo da programação
da mídia, sobretudo da televisão (ver “A violência urbana e os donos da mídia“,
“A responsabilidade dos donos da grande mídia“, “As lições do caso Santo
André“, “A liberdade de comunicação não é absoluta“, “A mídia e a banalização
da violência“ e “A lógica implacável da mercadoria“).
Ainda na década de 1990, em palestra que fez na Universidade
de Brasília, Jo Groebel – professor da Universidade de Utrecht, na Holanda, e
representante da Sociedade Internacional de Pesquisa sobre Agressão nas Nações
Unidas – não deixou dúvidas sobre a existência de uma relação entre a
predominância da violência na programação da televisão e a tendência para a
agressividade de jovens e adultos. Baseado em mais de 20 anos de pesquisa ele
afirmou que a televisão “faz com que as pessoas pensem que a violência é
normal” e que “quanto mais desigual a estrutura da sociedade maior o impacto da
violência mostrada na TV”.
Nos Estados Unidos, os “National Television Violence
Studies”, financiados pela National Cable Television Association (NCTA), também
realizados nos anos 1990 por um pool de grandes universidades – Califórnia,
Carolina do Norte, Texas e Wisconsin –, confirmaram as conclusões de Groebel e
geraram uma série de recomendações sobre o conteúdo da programação para a
indústria de entretenimento.
Em 2008, foram divulgados os primeiros resultados de uma
longa pesquisa realizada por professores da Rutgers University, nos EUA, que
vincula violência na mídia e agressividade em jovens. No estudo, foram
entrevistados 820 adolescentes do estado de Michigan. Destes, 430 eram alunos
do ensino médio de comunidades rurais, suburbanas e urbanas. Outros 390 eram
delinquentes juvenis detidos em instituições municipais e estaduais,
distribuídos equilibradamente entre os sexos masculino e feminino. Pais ou
guardiões de 720 deles também foram entrevistados, assim como os professores ou
funcionários que lidavam com 717 dos jovens.
A pesquisa revelou que mesmo considerando outros fatores
como talento acadêmico, exposição à violência na comunidade ou problemas
emocionais, a “preferência por mídia violenta na infância e adolescência
contribuiu significativamente para a previsão de violência e agressão em
geral”. E conclui: “você é o que assiste”, quando se trata da população jovem
(ver aqui).
Certamente outras pesquisas atualizam e confirmam esses
resultados, além de incluir também o cinema e os videogames, estes últimos um
fenômeno mais recente.
Será que a presença maciça da violência na programação de
entretenimento da mídia eletrônica e da televisão brasileira (aberta e paga),
em especial, não é um dos fatores que contribui para o aumento da violência
urbana?
A mídia e a Constituição
Um dos artigos não regulamentados da Constituição de 1988, o
221, reza:
A produção e a programação das emissoras de rádio e
televisão atenderão aos seguintes princípios:
I – preferência a finalidades educativas, artísticas,
culturais e informativas;
II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à
produção independente que objetive sua divulgação;
III – regionalização da produção cultural, artística e
jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;
IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da
família.
Será que praticando o jornalismo do vale de lágrimas,
excluindo a pauta positiva e defendendo os “justiceiros” vingadores, a grande
mídia brasileira está cumprindo a Constituição de 1988?
A quem cabe a fiscalização dos contratos de concessão desse
serviço público?
Com a palavra o Ministério Público e o Ministério das
Comunicações.
***
Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, professor
titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do
Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) da UFMG e
organizador/autor, com Juarez Guimarães, de Liberdade de Expressão: as várias
faces de um desafio (Paulus, 2013), entre outros livros
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