Por Eduardo Guimarães - Blog da Cidadania
A cada dia que passa avolumam-se os indícios de que, como em
uma espécie de reação biológica a infecções, a sociedade e as instituições
democráticas vão rejeitando, pari passu com o mundo jurídico e com as
instituições (imprensa incluída), os abusos e as ilegalidades perpetrados ao
longo do julgamento da Ação Penal 470, vulgo julgamento do mensalão.
Ainda que a opinião publicada – que se pretende opinião
pública – ainda resista, ainda que grupos de interesse continuem refestelados e
se regozijando com a condenação retórica e formal de cidadãos brasileiros à
prisão sem o necessário amparo de provas, a grita dos setores mais racionais
contra um processo espúrio que a todos preocupa vai aumentando de volume e já
ameaça tornar-se ensurdecedora.
Há cerca de um ano, a reversão dessa anomalia democrática
parecia impossível. Hoje, ainda parece improvável. Mas cada vez menos…
Ainda assim, seguem ruidosos os entusiastas de condenações
seletivas de pessoas ao cárcere, ou seja, de condenações levadas a cabo sob
critérios forjados na medida para alguns, como em uma espécie de exceção
institucional que se pensava ser possível aplicar sem que, no entanto, tal
golpe na democracia afetasse mais seriamente o organismo institucional.
Como diriam os mais jovens, porém, não está “rolando”. A
persistência dos que se dispõem a resistir, aliás, ganha simbolismo através de
um grupo de cidadãos que acampou diante do Supremo Tribunal Federal, em
Brasília, a fim de protestar contra condenações sem provas. E que prometem não
sair de lá até que seja vislumbrável alguma luz no fim do túnel.
Esses cidadãos têm vivido um verdadeiro inferno. Privações,
ameaça de violência de grupos radicais, mas não arredam pé. Algumas horas antes
de este texto se escrever sozinho, cerca de 20 homens atacaram o acampamento
diante do STF e, munidos de porretes, destruíram barracas, agrediram até
mulheres e foram embora.
Todavia, os que denominam seu acampamento diante do STF como
“trincheira”, prometem persistir.
A esses, juntam-se juristas de renome, advogados, filósofos,
jornalistas da dita “mídia alternativa”, entre muitos outros. Começaram
sozinhos essa resistência, mas agora ganham a companhia de novos ministros do
Supremo que também enxergam os malfeitos na primeira fase do julgamento do
mensalão (em 2012) e que já estão reformando decisões.
Como se fosse pouco, até na grande mídia vai se tornando
comum encontrar textos opinativos e até reportagens que, até há alguns meses,
eram censurados. Na semana passada, um desses textos causou rebuliço.
No jornal O Estado de São Paulo, um repórter denúnciou que o
ministro Joaquim Barbosa e alguns de seus pares teriam exagerado na dosimetria
das penas dos condenados pelo julgamento do mensalão de modo a que fossem
confinados a regime fechado. Essa matéria, somada à rejeição da tese de
quadrilha, constitui-se em uma bomba de efeito retardado.
Contudo, um texto publicado no primeiro dia útil desta
semana na Folha de São Paulo excede tudo o que a grande imprensa, de uns tempos
para cá, passou a publicar em termos de questionamento ao julgamento do
mensalão e, assim, expõe ao grande público talvez o que seja a maior prova da
ilegalidade desse processo.
O colunista da Folha Ricardo Melo escreveu, no texto
“Começar de novo” (3/3), pedido de que o julgamento seja refeito. Mas não foi
só: ainda discorreu sobre um tema que, até então, estava proibido na grande
imprensa. Escancarou informações sobre o inquérito 2474, conduzido
paralelamente à investigação que originou a AP 470.
A grande maioria do público dos grandes jornais deve ter
ficado perturbada e desorientada ao ler na coluna de Melo na Folha que “O
inquérito 2474 não é um documento qualquer” e que está “Repleto de laudos
oficiais” e “Investigações da Polícia Federal” que permitiriam aos réus do
mensalão “Rebater argumentos decisivos para sua condenação”.
“Como assim?”, devem estar se perguntando os que só se
informam pela grande mídia…
Primeiro, ficam sabendo, através do Estadão, que o “heroico”
Joaquim Barbosa, com a colaboração exclusiva dos juízes que condenaram os réus,
manipulou a dosimetria das penas. Agora, os leitores de uma Folha ficam sabendo
que há um segundo inquérito que pode conter provas, por exemplo, de que não
houve dinheiro público envolvido no mensalão.
Enquanto os bate-paus (contratados e espontâneos) dos
partidos antipetistas continuam repetindo, pavlovianamente, palavras de ordem
(petralhas, mensaleiros, bandidos etc.) valendo-se das condenações em um
processo tão questionado a fim de desqualificar qualquer argumentação
contrária, o julgamento da Ação Penal 470 começa a fazer água.
Barbosa, Gilmar Mendes, o PSDB, o DEM, o PPS e os setores da
grande mídia que ainda apostam na sobrevivência daquele julgamento de exceção,
entre outros, já admitem que, após todos esses fatos e a queda da tese de
formação de quadrilha, “um processo” pode estar começando.
Nota: eles se referem a processo de anulação do julgamento
do mensalão.
Diante disso tudo, uma reflexão: muitos, com boa dose de
razão, questionam a democracia brasileira. Para os mais radicais, em nosso país
não haveria democracia de verdade. Particularmente, discordo. O que é a
democracia se não o fenômeno que está minando, paulatinamente, um julgamento
viciado como o da AP 470?
Democracia, antes de tudo, é a possibilidade de se dizer o
que se quiser a quem quiser ouvir. Muitas vezes, não chega a ser o ideal.
Alguns usam mal esse direito, como os que pregam na internet até golpes de
Estado. Abertamente. Porém, esse direito também serve para divulgar trapaças
como as praticadas por setores do STF ao longo do julgamento do mensalão.
Finalizo, pois, recorrendo a um antigo clichê, mas que,
neste momento, parece fazer mais sentido do que qualquer outra coisa: a
democracia seguramente não é o melhor sistema de organização política, mas
ainda não inventaram outro melhor. Seu grande mérito é impedir que qualquer
pensamento ou fato sejam sonegados. Não é pouco.
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