O capital exerce
uma duríssima, brutal e altamente espoliadora ditadura sobre a força de
trabalho, impondo lógicas desumanizadoras, escreve o historiador Altair Freitas
por Altair Freitas
Publicado 17/02/2024 09:40 | Editado 17/02/2024 14:01
Manifestación” (1934), tela-mural do argentino Antonio Berni
Cantada em verso e
prosa por diversos pensadores contemporâneos, o “fim da luta de classes” virou
um certo paradigma de diversos movimentos políticos entre partidos e
organizações sociais que desenvolvem um raciocínio cujo resumo pode ser lido da
seguinte maneira: o capitalismo é imbatível, o projeto socialista-marxista foi
derrotado historicamente, não há possibilidade de termos, por um lado, uma
compreensão global sobre os problemas da humanidade e, por consequência, não
existem soluções globalizantes para eles.
Restaria-nos,
então, seguindo esse pensamento, lutar por questões específicas, por bandeiras
segmentadas voltadas para inclusão social, superação de preconceitos diversos e
melhorias no padrão de vida das pessoas, tudo, óbvio, na vigência do
capitalismo. É uma versão do “Fim da História” proclamada pelos pensadores e
políticos liberais (ou neoliberais, se quiserem), após o colapso da União
Soviética e do Bloco Socialista por ela liderado.
1.
Nesse contexto, por suposto e decorrência teórica, a luta de classes e
sua anterior compreensão do marxismo-leninismo sobre a existência de classes
sociais e as suas lutas é insuficiente para entender a (suposta) imensa gama de
variantes da sociedade “pós-moderna” e os múltiplos interesses das populações
que seriam, segundo esse pensamento, bem além das questões “meramente”
econômicas e políticas. Todo um leque de pensadores desenvolveu um grande
conjunto de abordagens sobre tais questões, dentro e fora do Brasil, com
efeitos variados sobre os movimentos políticos e sociais. Essas correntes
substituíram o conceito de “Luta de Classes” pelo de “Luta pela
Cidadania”.
Ora, por um lado, é
evidente que o Marxismo – e o Leninismo, como ciência social, não estão
congelados no tempo, uma vez que os pensadores marxistas clássicos estavam
analisando a sociedade do seu tempo. É assim que funciona com a filosofia.
Nenhum pensador minimamente sério e coerente analisa o futuro, mas seu tempo
presente à luz do desenvolvimento histórico, o que requereu do marxismo, como
corrente de pensamento, atualizações teóricas à luz de cada grande período de
mudanças pelos quais a humanidade passou desde o lançamento do “Manifesto do
Partido Comunista” de 1848, obra fundante do marxismo. O próprio capitalismo
passou por intensas modificações. Na forma da exploração, mas não na sua
essência!
Ao mesmo tempo, é
forçoso dizer algumas coisas óbvias, mas o óbvio muitas vezes está bem na nossa
frente, mas não o enxergamos: Luta de Classes, para Marx, Engels, Lênin e o
marxismo consequente, não expressa “apenas” as lutas de resistência do
proletariado contra a exploração da sua força-de-trabalho, e a consequente
reação da burguesia/classe dominante contra essa reação. Essa compreensão, não
está errada, mas ela é limitada e limitadora da real dimensão do pensamento
marxista sobre o que é “Luta de Classes”.
Não existiu na
história, não existe e não existirá enquanto houver alguma formação econômica e
social baseada no controle da propriedade sobre os meios de produção,
circulação e financiamento da produção por uma minoria que enriquece e controla
o poder de modo amplo, submetendo a grande maioria da mão-de-obra vigente, sem
a imposição de um conjunto de regras, normas, leis, ideologia, etc. para
mantê-la submetida, passiva, trabalhando intensamente para produzir em
benefício essencialmente de quem domina. Aqui está a luta de classes! A origem
dela não é uma simples reação às injustiças, mas exatamente na imposição à
força-de-trabalho para que ela produza intensamente em benefício de quem
controla os meios de produção. No caso do capitalismo, ainda mais!
O capital exerce
uma duríssima, brutal e altamente espoliadora ditadura sobre a força de
trabalho em seus múltiplos setores econômicos, por um lado, impondo lógicas
desumanizadoras de organização da produção e circulação de mercadorias com
efeitos profundamente perversos para o modo de vida da massa proletária, e, de
outro, com uma muito bem azeitada máquina ideológica de convencimento e
cooptação de setores do proletariado para a sua defesa, especialmente na
geração da expectativa de que no capitalismo qualquer um pode ser capitalista.
Ao mesmo tempo, a
burguesia/classe dominante procura por todos os meios manter o máximo controle
sobre o aparato estatal nos seus diversos aspectos, garantindo, essencialmente,
a lógica da propriedade privada e a organização da sociedade pelas vias legais
conforme seus interesses superiores. Resumindo: simplesmente não é possível
manter o capitalismo funcionando sem a luta de classes, e não é possível
superar o capitalismo sem ela. A incompreensão dessa dialética leva movimentos
políticos e sociais, partidos e personalidades a enormes erros de avaliação
sobre as lutas a serem travadas tanto do ponto de vista tático como,
principalmente, olhando para a estratégia. Se a estratégia for a luta pela
superação do capitalismo, essa compreensão é ainda mais necessária.
Em um tempo
histórico no qual a riqueza global – e nacional – encontra-se em um nível de
concentração não visto desde o século XIX, período no qual as lutas operárias
conduziram progressivamente as reformas sociais no capitalismo ou as revoluções
socialistas do século XX, que pressionaram gritantemente os países capitalistas
centrais a adotarem mecanismos de “Bem-estar Social”, compete às forças
revolucionárias, aos partidos comprometidos com a construção do socialismo,
reposicionarem seu raciocínio sobre o tema de modo consequente. Se é verdade que
o atual padrão de acumulação capitalista difere em variados graus daquele
vivido por Marx, Engels, Lênin e até meados do século XX, adotando novas formas
de trabalho (trabalho, vejam bem!) novos mecanismos de exploração, novas
dimensões inclusive geográficas para o processo produtivo, a essência não
mudou. Ao contrário, a essência exploradora se intensifica a cada dia.
No caso brasileiro,
a força de trabalho, o proletariado urbano e do campo está submetido a
múltiplas formas de opressão cotidianamente no exercício de seu labor produtivo
para a acumulação capitalista. Dados de 2022 apontam que cerca de 40 milhões de
pessoas trabalham de maneira informal, ou seja, de modo precarizado, sem
direitos trabalhistas garantidos. É quase metade da mão-de-obra ativa.
Em outra vertente,
o volume dos microempreendedores individuais, trabalhadores por conta própria
ou que vendem sua força de trabalho na forma de “empresários individuais”,
também sem nenhuma garantia trabalhista, bateu na casa dos 13 milhões em 2023.
Considerando uma População Economicamente Ativa (PEA) na casa dos 100 milhões
de trabalhadores e trabalhadoras com uma renda média mensal de R$ 2.900,00 em
2023 – menos de três salários mínimos – percebe-se, com muita abundância essa
efetiva ditadura do capital sobre o trabalho. E sabemos que médias salarias
servem apenas para termos uma leve noção do drama econômico e social que assola
a esmagadora maioria de quem vive vendendo sua capacidade de trabalho para
outros.
A nova questão
sobre a luta de classes não é se ela existe ou não, visto que, negá-la é
produzir ficção da pior espécie, ou seja, está, principalmente, em perceber que
o proletariado de hoje encontra-se cada vez mais disperso em pequenos negócios
de comércio e serviços, que representam 70% do PIB do Brasil, logo, bem
distante das grandes concentrações operárias típicas do modelo fordista de
produção que hegemonizava a industrialização brasileira até os anos 80.
Há que se
compreender também que esse proletariado vivenciava e vivencia um conjunto de
outras lutas que aparentemente estão desconexas da ditadura do capital porque
não ocorrem diretamente no processo do trabalho dentro das empresas, mas nas
lutas por moradia, educação, transporte, segurança pública, combate ao racismo
e pela emancipação da mulher em relação ao machismo. Notem: são lutas apenas
aparentemente fora da contradição capital-trabalho, mas, novamente, estão
umbilicalmente ligadas a essa contradição essencial. Não porque eu, ou quem
quer que seja, queira.
Novamente, é
preciso olhar a estruturação da sociedade, da produção econômica à organização
da vida do proletariado para atender, acima de tudo, às necessidades dessa
produção, sabendo entender suas múltiplas determinações e ramificações. Apenas
a título de exemplo, o tempo médio semanal de deslocamento dos trabalhadores e
trabalhadoras no Brasil – ida e volta – é de 4,8h, subindo à 6h, 7h, em
megalópoles como São Paulo, conforme dados do IBGE de 2019 no período
pré-pandêmico. Logo, a luta por transporte eficiente, aparece como desconectada
da luta contra o capital, mas não é. Ao fim e ao cabo, a luta de classes tem
múltiplas dimensões, mas cada uma delas é parte indissociável da contradição
capital-trabalho.
Por fim, é
imprescindível retomar, reforçar e atualizar um conceito essencial para o
pensamento marxista: o papel essencial do proletariado como agente da
transformação, como construtor do socialismo. Ao lado disso, um movimento de
caráter revolucionário, de extração socialista/comunista, necessita compreender
essa relação e precisa procurar com redobrado vigor construir o seu projeto
político assentado junto ao proletariado.
É preciso também
reposicionar a ação junto à Classe Operária, porque, se seu número desabou em
função das reestruturações produtivas, estando na casa dos 10 milhões nas
indústrias, outros 3,6 milhões estão na produção rural e 2,5 milhões na
construção civil, é exatamente sobre essa força de trabalho que o capitalismo
se estrutura em termos de produção de bens de consumo duráveis e não duráveis e
bens de capital. No setor de serviços, é preciso também ter um pensamento muito
bem estruturado para a organização daqueles ramos que são vitais para a
dinâmica da circulação da produção e da mão de obra. Torna-se imprescindível
reforçar os vínculos orgânicos com os setores estratégicos que fazem o
capitalismo funcionar. Uma organicidade que não se dá pelos processos
eleitorais, mas que pode ser impulsionado fortemente pelas disputas eleitorais,
uma vez que eleição é um capítulo especial na luta de classes, na luta pelo
controle da máquina estatal.
Palavras chaves:
CLASSE TRABALHADORA, LUTA DE
CLASSES, MARXISMO, PROLETARIADO
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