Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
O mais equipado posto de saúde é apenas um hotel de luxo sem
a presença de um médico. Uma simples garagem pode ser um consultório razoável
se contar com um médico para atender quem precisa de seus serviços.
No início deste ano, centenas de prefeitos – quase a metade
dos municípios do país – tiveram um encontro em Brasília com o ministro da
Saúde, Alexandre Padilha. O boletim da Frente Nacional dos Prefeitos resumiu o
espírito do encontro na manchete da edição de maio:
“Prefeitos cobram do ministro da Saúde ações para a
contratação de médicos estrangeiros”.
Não é só. Um abaixo assinado de apoio à contratação de
médicos recebeu o autógrafo de 2.500 prefeitos, que governam quase a metade das
cidades brasileiras – e só não evoluiu para um número maior porque a Frente
concluiu que já havia atingido um número suficiente para uma demonstração de
força.
Não é surpresa, assim, que a cerimônia de lançamento do
programa Mais Médicos, ocorrida no Palácio do Planalto, ontem, já tenha entrado
para a história do governo Dilma Rousseff como um episódio relevante de seu
mandato. O Palácio do Planalto estava cheio e em boa temperatura. Os aplausos
que acompanharam diversos discursos não eram 100% ensaiados nem pura bajulação,
como sempre ocorre nessas horas. Refletiam uma preocupação dos prefeitos do
país, responsáveis -- na ponta -- pelo funcionamento de um sistema de saúde
pública conhecido por ótimas intenções mas resultados nada empolgantes.
Para quem ainda não entendeu como a política funciona na
vida real, ali estava a demonstração dos vasos comunicantes entre as várias
esferas da administração pública, indispensáveis para que um projeto de
interesse universal e alcance amplo possa dar certo. Quem rastrear a história
do Bolsa Família irá descobrir que este imenso programa de distribuição de
renda só deixou o plano das utopias e entrou na vida real de 12 milhões de
famílias depois que foi assumido pelas prefeituras.
Este antecedente indica que o Mais Médicos pode funcionar,
pois responde a uma necessidade real, mas não é garantia de nada. O apoio dos
prefeitos é um ótimo ponto de partida, mas o Planalto terá de aprovar sua
medida provisória no Congresso, derrotando diversos adversários do plano, tanto
aqueles que respondem a razões políticas e ideológicas, como aqueles que já
procuram pescar nas correntezas ainda turvas da sucessão presidencial – e
tentarão criar dificuldades para o governo de qualquer maneira.
Mas a necessidade óbvia de atender à saúde da população mais
pobre pode criar condições para um debate bem sucedido, capaz de deixar claro
para os adversários que o desgaste pela oposição ao projeto causará um prejuízo
nada compensador aos olhos da maioria do eleitorado.
Não tenho formação nem condições de entrar num debate
detalhado sobre as mudanças anunciadas pelo governo, ontem. Como linha geral,
elas representam uma tentativa de dar novas prioridades na formação e
tratamento dos médicos brasileiros. Além de poucos médicos em relação ao número
de brasileiros, o Brasil tem médicos formados de acordo com as conveniências do
mercado privado de saúde, que procura especialidades mais rentáveis e mais
promissoras para suas respectivas carreiras – mas que nem sempre são aquelas
que atendem às necessidades da maioria da população.
Chamado a administrar imensos recursos públicos envolvidos
na formação de um médico – o cálculo é de R$ 800.000 per capta – o governo
coloca-se no direito de definir para onde vai encaminhar seus doutores e suas
prioridades. Você acha errado?
Eu não acho. Em nosso sistema, os governantes são eleitos
justamente para fazer isso.
O errado seria manter aquilo que está aí.
A crítica das entidades médicas ao projeto já passou de uma
postura racional. O centro de suas críticas se concentra na contratação de
médicos estrangeiros, o que só seria um argumento a ser ouvido a sério se
nossos doutores estivessem brigando por postos de trabalho para si ou para
outros profissionais – brasileiros -- fora do mercado. Poderiam ser acusados de
corporativismo. Mas não. Eles não querem as vagas que o governo oferece e
também não querem que elas sejam ocupadas por médicos estrangeiros.
O resultado prático de sua postura é impedir que milhões de
brasileiros tenham acesso ao atendimento – mesmo precário, em muitos casos –
que poderiam receber.
É uma atitude nociva, do ponto de vista social, e errada,
como opção política. Eu vivia na França quando a extrema direita de Jean Marie
Le Pen fez sua aparição na cena política. Seu movimento tinha um conteúdo
racista e violento, mas é bom reconhecer que o discurso não excluía o
estrangeiro. Dizia, apenas, que os franceses deveriam ter prioridade sobre os
estrangeiros. Não se proibia argelinos nem marroquinos de ocupar empregos que
os franceses não desejavam – em linhas de montagem na indústria, por exemplo –
nem se queria impedir que tivessem acesso ao serviço social. A bandeira do
Front National era pela preferência. Ele dizia: “os franceses em primeiro
lugar.”
Nossos médicos têm uma postura mais extrema. Dizem “nunca”
para os estrangeiros, exigindo que sejam aprovados num tipo de exame, Revalida,
que contém dificuldades jamais oferecidas aos médicos brasileiros para
formar-se no país.
O argumento de que não basta contratar médicos - é preciso
investir em infraestrutura, medicamentos e outras melhorias - fala de uma
questão real, mas de modo falacioso.
Se todos esses investimentos são bem-vindos e necessários, é
óbvio que não se pode resolver todos os problemas criado por um histórico de
passividade e abandono como se fosse possível tirar um coelho da cartola.
É absurdo negar que a simples presença de um médico numa
localidade onde não existe um único profissional de saúde já faça uma diferença
decisiva, como reconhece qualquer cidadão que já andou pelo interior do país. O
mais equipado posto de saúde é apenas um hotel de luxo sem a presença de um
médico. Uma simples garagem pode ser um consultório razoável se contar com um
médico para atender quem precisa de seus serviços.
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