Por Valter Pomar, em seu blog:
1. As grandes mobilizações ocorridas no Brasil, desde 13 de
junho de 2013, constituem motivo de comemoração e otimismo. O país, nosso
governo e nosso Partido necessitavam deste chacoalhão, que abre a possibilidade
de avançarmos, e avançarmos mais rápido, no processo de reformas sociais e
políticas. Mas para isto é preciso fazer uma detida reflexão sobre os
acontecimentos, para a qual apresentamos a contribuição a seguir.
2. Os acontecimentos das últimas semanas não constituem um
raio em céu azul, ao menos para os que vinham acompanhando a mudança nas
condições do país, desde o início do governo Dilma. Vários setores do Partido,
inclusive a Articulação de Esquerda, já apontavam
(http://pagina13.org.br/2013/04/manifesto-a-esperanca-e-vermelha/) para os
limites de nossa estratégia, as contradições crescentes de nossa política, as
mudanças sociológicas e geracionais do país, a alteração na postura do grande
capital, a ofensiva ideológica e política da direita partidária e midiática, o
distanciamento das bases sociais e eleitorais e, principalmente, para o fato de
que a política econômica vem provocando um atendimento limitado às necessidades
e demandas das massas populares. Não apenas a AE e setores da esquerda petista,
mas o próprio Diretório Nacional do PT já apontara, na convocatória do V
Congresso do Partido (http://www.jptrn.com.br/2013/05/convocatoria-para-o-v-congresso.html),
a necessidade de reformas estruturais mais profundas no país, inclusive no
âmbito da comunicação, educação e cultura. Mas mesmo quando esta crítica
comparecia nos discursos, não era a interpretação nem a postura predominantes
na prática. Nesse sentido, é necessário e pedagógico recordar alguns fatos,
ocorridos antes de 13 de junho de 2013.
3. A imprensa atribuiu a um afamado marqueteiro –categoria
cuja nefasta influência política deve ser repensada— a opinião de que as pesquisas
apontavam para uma reeleição de Dilma já no primeiro turno. Avaliação
equivocada que havia sido cometida em 2010, quase resultando em danos
irreparáveis.
4. Nas atividades comemorativas dos dez anos de governos
Lula e Dilma, o reconhecimento dos erros, insuficiências e contradições era
muitas vezes soterrado por um discurso de auto-propaganda, que também pode ser
encontrado em publicações recentes acerca do tema. Não temos dúvida de que hoje
estamos melhor do que estávamos na era FHC, e de que estamos melhor do que
estaríamos sob Serra e Alckmin. Mas estaríamos ainda melhor se tivéssemos
aplicado o conjunto do programa do PT, sendo necessário reconhecer as limitações
do que foi feito e o quanto ainda resta por fazer.
5. Era frequente, entre amplos setores do Partido, uma
postura arrogante que minimizava a força política e ideológica de nossos
inimigos, assim como as decorrências negativas do tipo de governabilidade
adotada, entre as quais a influência do do PMDB e a presença crescente de
fundamentalistas de direita em partidos da base do governo, sendo Marcos
Feliciano seu símbolo mais vistoso, compondo um Congresso Nacional que tem
derrotado a imensa maioria das propostas progressistas. Virou hábito dizer que
a oposição de direita “não tinha programa”, “não tinha proposta”, “estava
dividida”, “não conseguia influenciar a opinião pública, só a opinião
publicada”, dependia “apenas” do PIG etc. Cegueira política e preguiça
intelectual, incapaz de perceber os desdobramentos do que vem ocorrendo no
Brasil há anos: uma brutal ofensiva ideológica do conservadorismo, que assume
ademais novas formas e conteúdos, por exemplo através da agitação e propaganda
nas novas e velhas mídias. Ofensiva contra a qual o governo e o Partido não
ofereceram devida resistência. Pelo contrário: na Comunicação, na Casa Civil e
em outros ministérios, brotam frequentes sinais de apoio prático e retórico às
teses de direita.
6. Finalmente e mais importante, tornou-se frequente
confundir a fotografia com o filme. A fotografia dos índices de pesquisa era
favorável. Mas o filme mostrava uma realidade em movimento: uma mudança na
postura do grande capital em relação ao nosso governo; a radicalização política
e ideológica de setores médios contra as posições de esquerda; a insatisfação
crescente de setores da classe trabalhadora tradicional; e uma ambiguidade no
apoio da "nova classe trabalhadora". Mostrava, também, grandes
novidades geracionais: a mais alta proporção de jovens e jovens trabalhadores
no conjunto da população, com acesso a empregos precários e mal remunerados,
dividindo seu tempo entre trabalho, estudo e transporte, o que ajuda a entender
porque a qualidade do transporte e o valor das tarifas são temas tão sensíveis.
7. Estes e outros elementos eram completamente perceptíveis
antes do 13 de junho de 2013. Tomados isoladamente ou de conjunto, as reuniões
das direções partidárias, de nossas bancadas, das nossas lideranças sociais e
intelectuais apontavam para tais problemas. Mas o Partido como um todo, e o
governo em especial, foram incapazes de sintetizar isto numa orientação
alternativa. O que reforça algo que todos sabemos: é preciso mudar a dinâmica
partidária, bem como a relação entre partido e governo. E sem cair na tentação
de personificar os problemas, pois não podemos desconsiderar os equívocos
coletivos, alguns dos quais se acumulam desde 1995, outros desde 2003.
8. A partir de 13 de junho de 2013, a quantidade
converteu-se em qualidade, num processo de mobilização social que devemos
analisar com o máximo de atenção. Cabe ao Partido, e também a nós, reunir o
conjunto de informações e interpretações acerca do processo e elaborar uma
síntese capaz de nos orientar melhor na luta política. De imediato, algumas
variáveis já podem ser apontadas.
9. Em primeiro lugar, é preciso atentar para a
heterogeneidade do processo. Não apenas a existência de múltiplos movimentos,
setores sociais e políticos envolvidos, disputando e sendo disputados. Mas
também a existência de etapas distintas no processo, cada qual com um sentido e
hegemonia distintas. Está claro, por exemplo, que o movimento começou em torno
da luta contra as tarifas do transporte urbano; cresceu como movimento de
solidariedade contra a repressão policial; depois entrou numa terceira fase,
onde a direita passou a disputar com força a condução do movimento; houve então
uma reação do governo e das esquerdas, em torno principalmente da proposta de
Plebiscito; nos próximos dias, estão convocadas várias mobilizações, desde o
locaute convocado por setores da direita para o dia 1/7, até a mobilização das
centrais sindicais nos dias 4 e 11/7. É fundamental, portanto, fazer análise
concreta da situação concreta.
10. Em segundo lugar, é importante destacar a predominância
da juventude. Cabe analisar melhor o perfil deste setor social que foi às ruas.
E atentar para o fato de que a juventude, especialmente nas periferias, é alvo
de uma pauta predominantemente negativa: violência do Estado, toque de
recolher, redução da maioridade penal, com 30 mil jovens negros morrendo todo
ano. Numa primeira aproximação, podemos dizer que, ao menos numa primeira
etapa, foi às ruas uma juventude trabalhadora ou filha de trabalhadores, com
idade média até 25 anos e formação predominante universitária, exatamente o
setor social e geracional que nossas próprias pesquisas e análises indicavam
estar ganhando distância frente ao PT. Aliás, chama a atenção que alguns que
antes comemoravam a “entrada de milhões na classe média”, agora criticam as
manifestações por estarem “compostas predominantemente por gente de classe
média”: tanto a comemoração anterior quanto a ojeriza posterior incidem em
erros, sociológicos e políticos (http://www.pt.org.br/noticias/view/artigo_marilena_e_a_turma_do_farol_por_valter_pomar).
A verdade é que a intensa mobilização juvenil, de uma geração que nasceu depois
da campanha das Diretas Já, quebrou dois mitos: o de que a juventude seria
naturalmente de esquerda e progressista; e de que seria uma juventude alienada
e desinteressada da política.
11. Em terceiro lugar, é necessário reconhecer o sentido em
geral progressista das demandas e do processo
(http://pagina13.org.br/2013/06/que-as-manifestacoes-nao-sejam-passageiras/).
Ampliação dos direitos sociais e mudança no sistema político do país são
bandeiras do PT, da esquerda, dos setores progressistas do Brasil. Tarifa zero,
como educação e saúde públicas, não são plataforma da direita, do grande
capital e dos setores conservadores, ainda que estes setores busquem
apropriar-se oportunisticamente destas bandeiras, para tentar dirigir um
movimento cujo conteúdo é no limite contraditório com seus interesses de
classe. Como já apontaram muitos, o sentido das ruas está em contradição com o
desejo dos mercados.
12. Em quarto lugar, é fundamental perceber que se trata de
um movimento originalmente espontâneo. É curioso como dirigentes importantes da
esquerda, oriundos eles mesmos de uma situação semelhante no final dos anos
1970 (“quanto novos personagens entram em cena”), tenham hoje dificuldade de
reconhecer ou de aceitar que outros possam fazer o mesmo. Freud explica. Claro
que em todo movimento espontâneo há incoerências e confusão, elementos
organizados, disputa política, interferência da direita, momentos de fluxo e
refluxo, desfechos incertos. Mas exatamente isto é um movimento espontâneo: a
eclosão súbita de centenas de milhares de pessoas na rua, pessoas que passam a
querer ter ação política, as vezes superando e atropelando até mesmo as ações e
forças sociais organizadas, que por exemplo estiveram presentes desde o início
no Movimento Passe Livre.
13. Em quinto lugar, é decisivo entender que sem um forte
deslocamento da correlação de forças, seríamos derrotados, ou na eleição, ou na
condução do governo. Derrota que em certa medida já vinha se dando, pois apesar
da batalha dos juros, o governo não estava conseguindo manter o ritmo das
mudanças, fazendo cada vez mais concessões ao grande capital e a setores da
direita. E, graças à eclosão popular ocorrida desde 13 de junho, abriu-se a
possibilidade de deslocar a correlação de forças para a esquerda.
14. Em sexto lugar, é prudente atentar que o desfecho está
em aberto. O consórcio mídia-partidos de direita está disputando a consciência
popular, as pautas da mobilização, o sentido geral do movimento. Querem
converter um movimento de pressão por mais políticas públicas e mais democracia
política, num movimento contra o PT e contra o governo. Ainda que com
propósitos distintos, setores da oposição de esquerda têm o mesmo objetivo,
acreditando que é possível ultrapassar o PT pela esquerda, embora os
acontecimentos tenham demonstrado de novo que uma derrota do PT abriria caminho
para a derrota de toda a esquerda. Neste sentido, saudamos e nos empenhamos nas
diversas iniciativas de unidade democrática anti-fascista das diferentes forças
da esquerda político-social. E alertamos para o fato de que setores da oposição
de direita estão apostando na desestabilização da economia, inclusive
recorrendo a locautes ("greve" articulada por empresários).
15. Todas estas variáveis apontam qual deve ser nosso
caminho: disputar os rumos do processo, não contra ele, mas apoiando-se no
ambiente de mobilização, para realizar mais mudanças sociais e políticas no
Brasil, aprofundando o curso iniciado em 2003. Cabendo ter claro que disputar
os rumos do processo não é igual a “disputar os movimentos sociais” que
conhecemos e com os quais estamos habituados. E tendo claro, também, que o
ambiente político no Brasil mudou: a direita brasileira resolveu adotar uma
tática de desestabilização semelhante a adotada pela direita venezuelana,
articulando mídia e oposição partidária, com disputa de rua. A tentativa de
realizar uma greve geral via facebook, na verdade um locaute empresarial
disfarçado, é outro exemplo disto.
16. A rigor, isto tampouco constitui novidade absoluta. No
Chile de Allende, na já citada Venezuela, na Bolívia e noutros países, a
direita também busca legitimar-se nas ruas. No Brasil dos anos 1960, a direita
ocupou as ruas. E, nos últimos anos, a direita brasileira vinha ensaiando
novamente esta tática, seja usando igrejas conservadoras, seja estimulando
movimentos como o “Cansei”. Há pouco, tivemos as ondas de boato sobre o
"apagão", a "inflação" e o "fim da bolsa família".
Agora, tentam cavalgar um movimento social espontâneo. Utilizam para isto
técnicas e tecnologias adotadas em outros países do mundo, mas também
procedimentos tradicionais de ultra-direita, entre os quais a infiltração
policial, mobilização de criminosos e lumpens, tropas de choque fascistas,
preconceito religioso. Mas estas técnicas operam no movimento, não são
responsáveis pela sua eclosão.
17. Também aqui, cabe a nós do PT fazer uma autocrítica. Nos
anos 1980 e 1990, o petismo era o principal veículo da insatisfação com os
problemas políticos e sociais brasileiros. Eram os tempos em que Lula fazia
referência aos "300 picaretas" que dominavam o Congresso Nacional. A
medida que fomos nos tornando parte da institucionalidade, reduzimos progressivamente
aquela dimensão fundamental de nossa atividade. E, como já dissemos em 1993 no
Manifesto A Hora da Verdade (http://pagina13.org.br/apresentacao/quem-somos/),
o em si positivo crescimento institucional foi acompanhado da domesticação do
Partido, com a adesão de crescentes setores do petismo à norteamericanização da
política (dinheiro, mídia, marketing eleitoral). A crise de 2005 deve ser vista
neste contexto, e nossas dificuldades em equacionar o tema ajudou a direita a
ganhar amplos setores da população, para a tese segundo a qual o PT seria um
partido “tão corrupto quanto os demais”. Para piorar, a domesticação e
institucionalização do petismo foi acompanhada pela burocratização e
esvaziamento não apenas do Partido, mas também de muitas organizações oriundas
dos movimentos sociais. Abriu-se, especialmente na juventude, um vácuo que
tampouco foi ocupado pela esquerda não-petista. É neste espaço que os
diferentes setores da oposição de direita buscam operar.
18. Ou recuperamos nossa capacidade de vocalizar a
indignação “com tudo que está aí”, abandonando a incorreta ideia de que ser
governo nos impediria de tomar esta atitude, ou no médio prazo poderemos ser
varridos. Isto que é chamado de sentimento "antipolítico", deve
servir de base para a defesa de outro tipo de política, portanto contra a
política e os políticos conservadores, tradicionais, de direita. O sentimento
expresso na frase "não me representa", deve levar a esquerda política
e social a abrir nossas organizações à nova militância surgida neste processo;
e adotar uma nova dinâmica de funcionamento, vinculada às bases sociais,
presentes no cotidiano do povo, participando do debate cultural e ideológico,
recuperando o sentimento crítico e a radicalidade programática.
19. Fazer isto implica, também, em combater os sinais de
preconceito geracional presentes em algumas análises feitas, por setores da
esquerda, acerca da mobilização iniciada dia 13 de junho.
20. Há muitas experiências históricas mostrando o que
acontece com uma esquerda que pretende viver de glórias passadas. Lembramos que
aquilo que constitui “conquista” para uma geração, é “parte da paisagem” para
as gerações seguintes. E será assim, especialmente quando as gerações
anteriores se burocratizam e, ao mesmo tempo, se demonstram incapazes de
garantir comunicação de massas, educação pública e formação político-ideológica
para as novas gerações.
21. Grande parte dos que foram às ruas a partir de 13 de
junho são produto do país que nós ajudamos a construir. Que as manifestações
tenham sido por mais direitos, e não contra o corte deles, nem por salários e
empregos, é um sinal disto. Mas cabe lembrar: este é um país profundamente
desigual e contraditório, em que o neoliberalismo continua ideológica e
economicamente hegemônico, ao passo que a esquerda parece ser politicamente
hegemônica. Esta contradição, quase um paradoxo, está na base de grande parte
de nossos problemas, e a política de coalizão com a centro-direita adotada pelo
Partido amplia a dificuldade, pois parece aos olhos da juventude e de outros
setores que somos apenas e tão somente parte integrante do sistema. Duas
fotografias simbolizam os equívocos decorrentes da indiferenciação: a imagem de
Fernando Haddad com Paulo Maluf, durante a campanha eleitoral de 2012;e a
fotografia do prefeito com o governador Geraldo Alckmin, no anúncio da redução
das tarifas.
22. A análise de que foi às ruas a “geração facebook”,
reforçada pelas palavras-de-ordem múltiplas ao estilo dos posts dos murais do face,
tem um pouco de verdade. Mas é bom lembrar que as organizações tradicionais da
esquerda também tem apresentado pautas reivindicatórias pulverizadas. Por outro
lado, não devemos superestimar o papel das redes: sem o impacto da grande mídia
tradicional, especialmente das televisões, as mobilizações não teriam a mesma
força. Seja como for, é ótimo que os jovens tenham saído às ruas, superando as
limitações inclusive físicas das redes sociais virtuais. Este é um processo
pedagógico, para eles e para todos, para os que foram às ruas e para os que não
foram. Além de estimular certa esquerda acomodada a movimentar-se, nem que seja
por auto-defesa; além de proporcionar uma reflexão muito útil sobre os riscos
de certa retórica nacionalista e de certa crítica rasa aos partidos, ambas
atitudes presentes em setores da própria esquerda organizada.
23. A pedagogia do processo inclui aprender a neutralizar o
vandalismo lumpen e combater a presença do crime organizado. É preciso, também,
aprender a lidar com a atitude de grupos radicalizados como os anarcopunks. Ao
mesmo tempo, é crucial impedir que o movimento seja capturado pela direita. Por
isto, é importante identificar e derrotar os setores neofascistas, skinheads e
grupos paramilitares de direita e, principalmente, impedir que o movimento seja
capturado pela pauta da direita. Sem incorrer no erro e na pretensão de tutelar
o movimento, para atingir estes objetivos, cumprem papel fundamental as
organizações tradicionais da classe trabalhadora, o papel da velha guarda, da
esquerda organizada, da militância com experiência em lutas anteriores. Sobre
isto, com todos os cuidados que a situação exige, nossa posição é clara: as
ruas são de todos e delas não seremos expulsos pelos herdeiros dos galinhas
verdes.
24. Tampouco aceitamos a criminalização dos movimentos
sociais e a violenta repressão desencadeada pela Polícia Militar, sob ordem de
governos tucanos e de direita. E alertamos que algumas atitudes posteriores da
Polícia --como a de adotar uma atitude "passiva" e de "reação
tardia" frente ao vandalismo-- parecem estar a serviço de criar um clima
de medo e desgoverno, para justificar e legitimar o posterior chamamento às
"forças da ordem".
25. É bom dizer que a geração que foi às ruas na primeira
etapa do movimento, basicamente gente com sensibilidade de esquerda, foi
surpreendida pela atitude de algumas autoridades filiadas ao PT. Estas atitudes
desencontradas contribuíram muito para confundir, aos olhos de setores da
população, as nossas posições com as posições do tucanato. Imaginemos: qual
teria sido o curso dos acontecimentos, caso Fernando Haddad tivesse, desde o
primeiro dia, suspendido o aumento das passagens na cidade de São Paulo? Ou
caso o ministro Cardozo tivesse criticado a violência policial desde o primeiro
dia? Ou ainda se o conjunto do PT tivesse reconhecido que a tarifa zero obedece
a mesma inspiração da saúde e da educação públicas, a saber, diferentes
maneiras de garantir um direito social? Neste sentido, saudamos a atitude
legitimamente petista de militantes, instâncias, parlamentares e autoridades
executivas ligadas ao PT, que souberam compreender o recado das ruas e com elas
interagiram adequadamente.
26. Entretanto, o conjunto dos acontecimentos de Junho
confirmou que uma parte da esquerda brasileira converteu-se à tecnocracia,
tratando o povo como “paciente”. Paciente no sentido de ser “objeto” e não
sujeito dos processos. E “paciente” no sentido de ter “paciência”.
27. Para os que adotam esta postura tecnocrática, é muito
difícil compreender o papel que a luta social pode jogar na transformação
social. As condições históricas levaram o setor majoritário da esquerda
brasileira, especialmente o PT, a lutar por ser governo, nos marcos da ordem
capitalista e de um Estado conservador. Exatamente por isto, esta esquerda não
pode diluir-se nas instituições e tornar-se defensora do status quo; ao
contrário, deve preservar sua vocação anti-sistêmica, democrático-popular e
socialista, para fazer de sua presença no Estado a contra-mola que resiste,
altera e transforma.
28. No caso concreto, as mobilizações em curso podem nos
ajudar a defender a ampliação dos direitos sociais, contra a ortodoxia fiscal.
Ajudar a fazer a reforma política, contra o conservadorismo do atual parlamento
brasileiro. Ajudar a colocar as reformas estruturais na pauta política do país.
Aliás, um dos saldos deste processo é nos lembrar, a todos, que a correlação de
forças e a agenda política do país podem ser alteradas, e que a luta de massas
tem esta capacidade.
29. Como já se convencionou dizer, é hora de fazer do limão,
limonada. Partir do quadro atual, para aprofundar as mudanças e fazer a reforma
política. Aliás, é bom reafirmar: sem reforma política e democratização da
comunicação, não terá futuro a estratégia defendida pelo PT. Posto de outra
maneira, não há como prosseguir mudando o país, sem alterar as instituições
estatais brasileiras. E não há como fazer esta alteração apenas de dentro para
fora: é preciso que a pressão social entre em cena. Infelizmente, apesar dos
esforços das organizações populares, a pressão recente não surgiu por nossa
iniciativa; mas felizmente surgiu. Por isto, consideramos que foi absolutamente
correto reconhecer a legitimidade das mobilizações e de suas demandas, assim
como apontar o Plebiscito e a Constituinte como caminhos para tradução
institucional da pressão social. Mas também por isso, consideramos essencial
colocar em movimento a classe trabalhadora: é isto e a ação articulada de
nossas organizações que pode derrotar a movimentação da direita.
30. Claro que a direita repudia a Constituinte e o
Plebiscito. Confirmando o divórcio entre capitalismo e democracia, temem que a
pressão das ruas produza uma reforma política que lhes tire poder. A isso
respondemos: todo o poder ao povo, viva a soberania popular e a democracia.
Claro, também, que a direita pretende direcionar a insatisfação social em
direção aos partidos de esquerda, especialmente ao PT. A direita pode fazê-lo,
pois os partidos são para ela parte totalmente secundária de seus aparatos de poder
(entre os quais destacam-se o oligopólio da mídia, mas também suas casamatas
incrustadas dentro do aparato do Estado). Nossa resposta deve ser defender uma
política e partidos de novo tipo. Ou seja: não os partidos em geral, não a
política em geral, mas a política e os partidos vinculados aos interesses da
maioria do povo. Claro, ainda, que a direita busca manipular o movimento contra
o governo Dilma. A isto respondemos fazendo a defesa e fortalecendo nosso
governo, a começar pela presidenta Dilma, que nesta crise mostrou capacidade de
reação, liderança e faro político.
31. Da mesma forma, devemos defender e reafirmar nosso
passado e os êxitos de nossos governos, defender nossa ação presente, mas
reconhecendo as contradições, equívocos e debilidades. Mas devemos sobretudo
dar ênfase ao futuro, ao Brasil que queremos. E apontar com clareza qual a base
de nossas dificuldades: o capital financeiro, as transnacionais, o agronegócio,
o latifúndio tradicional, o oligopólio da mídia, o controle de setores privados
sobre largos setores do aparato de Estado, a mercantilização da política.
Motivo pelo qual é mais atual que nunca a pauta das grandes reformas
estruturais, como as reformas tributária, agrária e urbana, a democratização da
mídia e da política, a ampliação das políticas públicas e do papel do Estado.
32. Na mesma linha, cabe-nos rearticular nosso bloco
político-social: governos, movimentos, partidos, intelectualidade, bases
sociais e eleitorais. O Partido dos Trabalhadores, em especial, deve repactuar
suas relações com os movimentos sociais e com as bases populares. Isto inclui,
por exemplo, realizar plenárias – setoriais, municipais, estaduais e nacionais
– dos militantes petistas que atuam nos movimentos sociais. E reorganizar, em
novas bases, algo como foi o “fórum nacional de lutas”, articulando partidos e
movimentos sociais do campo popular. Mas inclui principalmente tratar de outra
forma temas variados, que estão na origem de conflitos no seio das forças
populares: as demandas da CUT, os leilões do petróleo, a reforma agrária, o
fator previdenciário, o respeito aos indígenas, a defesa das causas LGBT, as
politicas de gênero, os gastos da Copa, a política de transporte urbano, o
controle do ministério das Cidades pela direita, alianças intragáveis etc.
33. Cabe, ainda, fazer o Partido funcionar como Partido e
ser capaz de reagir na velocidade que a luta política está impondo. Nesta
crise, como em tantas outras, confirmou-se que atuamos muitas vezes como
“partido de retaguarda”, que sabe operar predominantemente nos anos pares.
34. Como parte da disputa das ruas, o PT deve participar
organizadamente das atividades convocadas pela Central Única dos Trabalhadores
dia 4 de julho; e também das atividades convocadas pelo conjunto das centrais,
no dia 11 de julho. Nossa ênfase deve ser na defesa da pauta da CUT: contra o
PL 4330, da “terceirização” que retira direitos dos trabalhadores brasileiros e
precariza ainda mais as relações de trabalho no Brasil; que as reduções de
tarifa do transporte não sejam acompanhadas de qualquer corte dos gastos
sociais; 10% do orçamento da União para a saúde pública; 10% do PIB para a
educação pública, “verbas públicas só para o setor público”; fim do fator
previdenciário; Redução da Jornada de Trabalho para 40 horas sem redução de
salários; Reforma Agrária; suspensão dos Leilões de Petróleo. Também
defenderemos o Plebiscito proposto pela presidenta Dilma, a reforma política, a
democratização da comunicação e a Assembleia Constituinte.
35. A disputa das ruas começa já nas telas de TV. O governo
brasileiro está convocado a alterar imediatamente sua política de comunicação.
O atual ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, foi capaz de imputar à
militância petista uma posição que não é a nossa (a censura), além de nos
atacar covardemente nas páginas da pior revista do país, não está vocacionado
para cumprir esta tarefa. O ministério deve ser encabeçado por alguém
comprometido com a democratização da comunicação social.
36. A disputa das ruas começa, também, alterando a política
de comunicação do Partido. Constituir uma redação de conteúdos capaz de
alimentar nossos boletins, páginas eletrônicas, programas de rádio, entrevistas
e discursos em todo o país. E reconstruir nossas redes sociais, principalmente
apoiando a atuação organizada de nossa militância nessa frente de luta política
e ideológica.
37. O centro da tática é, neste momento, disputar e vencer o
plebiscito. O que exigirá uma forte aliança política e social, que já está se
conformando, entre todos os favoráveis à reforma. Ao Partido caberá de
imediato, entre outras tarefas, a de contribuir no essencial debate sobre quais
serão as perguntas feitas à população. Proposto para 7 de setembro, o
plebiscito pode criar as condições institucionais necessárias não apenas para
reeleger Dilma, mas para fazê-lo de forma a que o segundo mandato seja superior
ao primeiro.
38. Para vencer o plebiscito, é fundamental que haja
condições democráticas, o que começa por definir regras claras, horário
eleitoral de rádio e TV, limites ao financiamento das diferentes posições,
democracia nos meios de comunicação.
39. Também é fundamental a definição de quais temas devem
ser objeto de debate e votação, no Plebiscito. De saída é importante que o
conteúdo e a redação das perguntas dialogue com o sentimento popular, de
negação da atual maneira de fazer política. Por isto, tão importante quanto as
alternativas de sistema eleitoral (voto distrital, em lista ou distrital misto)
e a fidelidade partidária, são temas como a introdução de instrumentos de democracia
direta, extirpar a fonte de corrupção que é o financiamento empresarial das
campanhas eleitorais, garantir a proporcionalidade na eleição de parlamentares,
a paridade de gênero na composição das bancadas, o fim do Senado com a
introdução do unicameralismo etc.
40. E, com destaque, a convocação de uma Assembléia Nacional
Constituinte, bandeira correta, aprovada e reafirmada pelo Partido, a única
compatível com a necessidade de alterar de conjunto e democraticamente a
institucionalidade brasileira. A esse respeito, o governo deveria ter mantido a
proposta combinada de Plebiscito e Constituinte "específica", para
fazer a reforma política.
41. É nestes marcos de intensa luta política e social que
ocorrerá o processo de eleição das direções partidárias, o chamado PED.
Trata-se de uma coincidência feliz, pois permitirá à militância construir,
através do debate, uma nova estratégia para um novo período, de maiores
conflitos políticos e sociais, cuja solução positiva exige a realização de
reformas estruturais. Um cenário adequado, também, para que o Partido reveja de
alto a baixo sua organização, reconstruindo suas instâncias e organismos de
base, revendo seus métodos de funcionamento e ação, e principalmente adotando
uma nova estratégia, elegendo uma direção que seja capaz não apenas de
reconhecer os novos tempos, mas também – e principalmente – capaz de agir em
conformidade com isto.
42. Vivemos novos tempos, apesar dos perigos. As próximas
semanas podem confirmar o potencial mudancista do processo, ou podem resultar
numa reversão conservadora, como é o sonho daqueles que comemoram os resultados
de recentes pesquisas de opinião. Cabe a cada um de nós, militantes de
esquerda, sustentar as bandeiras vermelhas da esperança e do socialismo.
* A direção nacional da Articulação de Esquerda, tendência
do Partido dos Trabalhadores - 30 de junho de 2013
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