Por Armando Boito Jr., no jornal Brasil de Fato:
Muitas análises das manifestações de junho têm pecado pela
caracterização vaga do agente político que as promoveram e imprecisa do
processo político no qual se inseriram. As manifestações não foram obra do
“povo” ou da “juventude”, e nem esse processo político pode ser caracterizado
com uma referência genérica ao “governo” e à “oposição”. As manifestações
tiveram como base majoritária uma fração da classe média e o processo político
no qual se inseriram encontra-se polarizado entre os programas burguês
neodesenvolvimentista, representado pelo governo, e o neoliberal ortodoxo,
representado pela oposição burguesa aglutinada no declinante PSDB.
I
As classes médias são um setor social heterogêneo e
raramente intervêm de maneira unificada no processo político. A fração da
classe média que puxou as manifestações tem alta escolaridade para os padrões
brasileiros e viu a sua formação escolar ser depreciada pelos rumos do
capitalismo em nosso país. Essa fração não se integrou ao modelo capitalista
neoliberal e tampouco se viu contemplada pela reforma que o
neodesenvolvimentismo do PT promoveu nesse modelo. Em dez anos de governos
petistas, foram criados cerca de 20 milhões de empregos, mas a maioria foram
postos de trabalho que requerem pouca formação e oferecem remuneração entre um
e dois salários mínimos. O PT afastou-se dessa fração da classe média. Em
primeiro lugar, quando, no final da década de 1990, engavetou o seu programa de
implantação de um Estado de bem-estar social. Ora, nesse modelo de capitalismo,
os diplomas universitários são muito valorizados – propiciam emprego público
que remunera e prestigia os profissionais de classe média. Em segundo lugar, o
PT afastou-se desse setor quando, aproveitando a oportunidade oferecida pelo
chamado boom das commodities, o governo Lula decidiu engavetar também o seu
programa de revitalização da indústria interna. O neodesenvolvimentismo do PT
era, na sua concepção inicial, industrializante. Porém, diante da janela
chinesa, os governos do PT decidiram deslocar para a mineração, para o
agronegócio e para a construção civil a política de crescimento. A baixa
remuneração dos postos de trabalho criados são o resultado dessa decisão.
Após esse setor de classe média ter desencadeado o movimento
reivindicativo pela redução das tarifas de transporte e esse movimento ter
adquirido grandes proporções, outros setores sociais puseram-se movimento. As
ruas passaram a abrigar movimentos e interesses muito diversos. De um lado, o
caráter progressista da revindicação da classe média permitiu a aproximação com
movimentos da periferia, que deram a um movimento fundamentalmente
reivindicativo a coloração de um protesto popular; de outro lado, o elevado
grau de espontaneísmo do movimento permitiu que a mídia, como porta-voz da
oposição neoliberal ortodoxa, e a alta classe média tucana tentassem
transformar o movimento em um protesto de cunho conservador contra o governo
federal. Mas, o movimento seguiu sendo, no fundamental, um movimento
reivindicativo e progressista e foi, é bom frisar, vitorioso.
II
O que se ouviu nas ruas foi um grito por “mais Estado”:
subsídio ao transporte público, educação, saúde, nova regulamentação da lei do
inquilinato. Em julho, quando o sindicalismo operário entrou em cena, o tom
continuou o mesmo: imposição legal da jornada de 40 horas semanais,
regulamentação estatal restritiva da terceirização etc. Aglutinada em torno da
bandeira do “Estado mínimo”, a oposição burguesa neoliberal não tem nada a
dizer àqueles que saíram às ruas. O contentamento do PSDB, ao ver o governo
federal em dificuldades, está mesclado com o embaraço devido à falta de
sintonia do seu programa político com a nova situação. Marina Silva especula
com um coquetel que mistura monetarismo, ecologia e um apartidarismo de fachada
que flerta com o espontaneísmo do movimento de junho.
O governo federal está diante de uma situação complexa. O
seu programa neodesenvolvimentista teria de passar por uma grande reformulação
para abrigar o setor dissidente – mas não conservador – da classe média.
Retomar o programa de um Estado de bem-estar? Esse caminho pode afastar o PT da
grande burguesia interna, que é a força social que tem sido o principal
sustentáculo dos governos do PT. Retomar o neodesenvolvimentismo original do PT
que tinha por foco a revitalização da indústria? Esse caminho passa por um
conflito internacional duro. Existe espaço para o meio-termo, mas a manobra é
delicada. É preciso ceder à pressão da classe média e de setores populares sem
afugentar os outros integrantes da frente neodesenvolvimentista ou, pelo menos,
ganhar de um lado mais do que perderá de outro.
O movimento popular, que foi quem mais saiu fortalecido das
manifestações e da grande vitória de junho, poderá tirar proveito dessa
situação. Além de dar prosseguimento à luta reivindicativa, poderá assumir a
Constituinte para a reforma política como sua bandeira.
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