sábado, 19 de outubro de 2013

REFLEXÃO POÉTICA DO DIA

Por Dedé Rodrigues.


Vinícius de Moraes - o “vagabundo” de quem a direita não gosta.

Vinicius de Moraes, o "poetinha" - apelido que ganhou de Tom Jobim - completaria 100 anos de idade neste sábado (19). Ícone vívido do otimismo desenvolvimentista dos anos anteriores ao golpe militar de 1964, colocou sua arte a serviço do belo, do amor, e também do amor pela humanidade e da luta pelo progresso social. Não está entre os preferidos dos fascistas brasileiros!

O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO.


Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.
Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão -
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.
Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.
Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.
E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.
E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.
Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
- "Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.
Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!
Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.
Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.
Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!
- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.
E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.


“Demita-se esse vagabundo”. Foi dessa forma grosseira, garante Ruy Castro, no livro Chega de Saudade, que a ditadura militar acertou suas contas, em 1968, com um dos maiores poetas e escritores brasileiros: Vinícius de Moraes, que era embaixador. A ordem foi assinada pelo general que ocupava a presidência da República, Arthur da Costa e Silva, que o demitiu do Itamaraty, onde estava desde 1943 e se tornara um grande invulgar divulgador da arte, da música, da literatura brasileira pelo mundo. 

Desde uma longa viagem ao Nordeste brasileiro, em 1942, Vinícius tornara-se um decidido antifascista; um grande expoente da cultura brasileira que se tornou um ícone do desenvolvimentismo dos anos pré-64 e do reencontro do Brasil consigo mesmo, com sua cultura e com seu povo. Era um criador e um ativista que não cabia nos medíocres quadros da ditadura militar. A palavra “vagabundo”, naquela ordem raivosa, era sinônimo de “subversivo” - e os dois xingamentos na verdade honram sua vítima, o “poetinha” - honra reconhecida 30 anos depois, quando o diplomata Vinícius de Moraes foi anistiado (post-mortem) em 1998; em 21 de junho de 2010, trinta anos após sua morte, a Lei 12.265 o reabilitou junto ao corpo diplomático brasileiro, e ele foi elevado ao cargo de ministro de exterior - o mais elevado do Itamaraty.

Vinicius de Moraes ficou conhecido como poeta lírico (que de fato era), autor dos mais lindos poemas de amor escritos em português certamente desde Camões, e de letras de música tão consagradas pelo gosto popular que, muitas vezes, são repetidas quase como se fizessem parte do folclore. É necessário prova maior de que um poeta exprime a alma de um povo?

Mas Vinícius (que já foi descrito como “múltiplo”) foi muito além dessa visão convencional que se firmou. Foi um homem de todas as letras (este é um lugar comum que se impõe!) - e também de todos os temas e formas de expressão. Se foi lírico - e foi, dos maiores - foi também épico de igual dimensão. Foi autor de versos famosos como “As muito feias que me perdoem / Mas beleza é fundamental”, de Receita de Mulher. Ou “De repente do riso fez-se o pranto”, do Soneto da separação. Com o tom camoniano insuperável doSoneto da Fidelidade: “Eu possa (me) dizer do amor (que tive): / Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure”.

São apenas alguns exemplos retirados da contribuição que Vinícius de Moraes deu aos namorados para exprimirem seus sentimentos pela mulher amada. 

Mas sua poesia não fica nisso. Falou também de outro amor, igualmente grande e belo - o amor pela humanidade, pelos seres humanos, a confiança democrática na capacidade do povo enfrentar os males que o capitalismo traz e conquistar uma forma superior de vida. 

Atuou junto ao Centro Popular de Cultura, da União Nacional dos Estudantes - foi, aliás, juntamente com Carlos Lira, autor do hino da entidade maior dos estudantes brasileiros.

Uma obra das mais conhecidas é Operário em Construção, publicado originalmente em 1956, no quinzenário Para Todos, do Partido Comunista do Brasil. Seus versos célebres reafirmam, poeticamente, aquilo que os trabalhadores aprenderam muito antes, já com os escritos deixados por Karl Marx. 

Era ele que erguia casas 
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão

e por aí vai o longo poema cujo tema é o desenvolvimento da consciência de classe do trabalhador.

Operário em Construção é um clássico. Opção semelhante pela humanidade surge em outro poema, O Poeta e a Rosa, que contém talvez uma denúncia mais crua das mazelas da vida atual, e também da alienação de certos poetas que, olhando apenas o “belo”, deixam de considerar as contradições e as mazelas da vida. 

Nele, ironiza o tipo de poeta que, ao ver uma rosa branca, exclama “que linda! / cantarei sua beleza”. E se surpreende quando a rosa branca fica vermelha de raiva e chama a atenção do poeta: “Calhorda que és! / Pára de olhar para cima! / Mira o que tens a teus pés!” E a seus pés o poeta vê uma vítima da sociedade injusta e desigual: uma criança, “Suja, esquálida, andrajosa / Comendo um torrão da terra”. 


São milhões! - a rosa berra
Milhões a morrer de fome
E tu, na tua vaidade
Querendo usar do meu nome!...

Vinícius de Moraes, este adorável “vagabundo” cantou maravilhas e belezas, e denunciou a opressão, a miséria e a alienação. Os poderosos, principalmente os fascistas, não gostam dele. Mas o povo... o povo guarda, no coração, um lugar cativo para o "poetinha"! Vinícius de Moraes teria completado 100 anos de idade neste dia 19 de outubro. Salve Vinícius!


Por José Carlos Ruy


Ouvir:
Operário em construção
 
O poeta e a rosa - No Portal Vermelho 

0 comentários :

Postar um comentário