Quis o destino que o corpo do presidente João Goulart
chegasse a Brasília no mesmo dia em que o Supremo Tribunal Federal concluiu
etapa substancial do julgamento do “Mensalão” – o que deve levar ex-dirigentes
petistas para a cadeia, entre eles o ex-ministro José Dirceu.
Dilma emocionou-se ao lado da viúva de Jango, na homenagem
ao presidente deposto. De alguma forma, Dilma é a ponte entre duas tradições
políticas: o trabalhismo de Vargas/Jango/Brizola e o PT. Ao fim da ditadura
(depois de pegar em armas, sendo presa e torturada), Dilma escolheu o PDT de
Brizola para atuar politicamente. Dilma já fez elogios abertos a Jango e à
tradição brizolista.
Curioso que o PT tenha surgido nos anos 70/80 com um
discurso de crítica à herança trabalhista. Mas, no poder, Lula aproximou-se da
simbologia e das tradições varguistas. Curioso também pensar que, se o
“Mensalão” não tivesse existido, hoje o presidente talvez não fosse Dilma, mas
exatamente o ex-ministro agora ameaçado de prisão. “Se”. Se Gighia não tivesse
acertado aquele chute rente à trave, o Brasil não teria perdido do Uruguai em
1950… Como dizem os comentaristas, não existe “se” no futebol. Nem na política.
Nem na vida.
Ainda assim, é possível estabelecer paralelos entre os
ataques sofridos pelo PT e o lulismo e aqueles desferidos contra Vargas e
Jango. Vargas – não resta dúvida – foi um ditador nos anos 30 e 40. Mas em 1950
voltou ao poder como líder democrático, e foi acuado pelo conservadorismo a
serviço dos Estados Unidos. Lacerda tentou cobrir Vargas com o “mar de lama”.
Nos anos 50, o discurso udenista sustentava que Vargas comandava um governo
corrupto. Contra Jango, em 1964, pesavam as mesmas acusações, e ele ainda era
apontado como líder de uma certa “República Sindicalista”.
Vargas deu um tiro no peito em 1954, dentro do Palácio.
Jango foi derrubado por um golpe. Na época, a imprensa golpista comemorou:
“Escorraçado, amordaçado e acovardado, deixou o poder como imperativo de
legítima vontade popular o Sr João Belchior Marques Goulart, infame líder dos
comuno-carreiristas-negocistas-sindicalistas” - era o que dizia a “Tribuna da
Imprensa”, jornal de Carlos Lacerda.
Mentira, claro. Jango tinha apoio popular – era o que
indicavam as pesquisas às vésperas do golpe, como mostra Jorge Ferreira, em
excelente livro sobre Jango. A imprensa golpista de 64 criou o clima de caos e
deu a impressão de que todos queriam o golpe. Jango não saiu “escorraçado” do
poder. Foi derrubado.
“O Globo” também curtiu e compartilhou a ditadura: “Ressurge
a Democracia! Vive a Nação dias gloriosos” – dizia editorial de Roberto
Marinho. Aqui, na Carta Maior, você lê outros textos publicados por nossa brava
imprensa democrática, nos dias seguintes ao golpe.
Certos setores de esquerda cultivaram durante anos a tese de
que Jango foi “covarde” por não reagir ao golpe. Quem acompanhava de perto o
presidente deposto diz que ele estava preocupadíssimo com uma possibilidade: se
resistisse, daria aos golpistas a desculpa para pedir a intervenção dos Estados
Unidos. Numa conversa recente, o jornalista Mauro Santayanna disse a um grupo
de blogueiros que teve o prazer de ouvi-lo: “Jango temia a divisão física do
Brasil”. Assim como haviam feito na Koreia (e como fariam depois no Vietnã), os
EUA poderiam intervir e dividir o Brasil em dois. Jango preferiu manter a
integridade territorial brasileira. Teoria conspiratória?
Durante anos, a ideia de que Jango teria sido envenenado em
1976 (durante o exílio) também parecia uma “teoria conspiratória”. Por
insistência da família Goulart, o Brasil finalmente vai tentar descobrir a
verdade. Foram muitos anos, e talvez os traços de um suposto veneno já não
possam ser encontrados. Mas o governo Dilma toma uma atitude de imenso valor
simbólico. O corpo exumado em São Borja (RS) foi levado a Brasília.
Jango “acovardado-escorraçado” dizia Lacerda. Jango
estadista, recebido com honras de chefe de Estado. A história se escreve
lentamente. O passado está sempre em disputa.
Dirceu, em algumas horas, pode ser preso como símbolo do
“maior escândalo da história” – como dizem os mesmos jornais golpistas de 64. A
imprensa podre quer mostrar Dirceu algemado, humilhado – da mesma forma que
Lacerda tentou humilhar o presidente deposto em 64.
Dirceu pode ter cometido erros. Mas está sendo condenado sem
provas. Isso está claro. “Escorraçado, amordaçado e acovardado” - assim jornais
e revistas gostariam de ver o homem que comandou a “virada” do PT rumo ao
poder. Pelo que se conhece da história de Dirceu, não vai se acovardar.
No curto prazo, parece derrotado politicamente. Jango também
parecia derrotado inexoravelmente em 64. Quase 50 anos depois, recebe as justas
homenagens no Palácio. A vítima de 64 não foi Jango, mas a democracia
brasileira.
Derrubado pela Guerra Fria, pelos Estados Unidos e o
conservadorismo brasileiro, Jango é o estadista, vitorioso. Lacerda e os
golpistas estão derrotados pela história. ”O Globo” pede desculpas
envergonhadas pelo apoio ao golpe criminoso.
Que papel estará reservado a Dirceu na história brasileira?
“Maior vilão do país”? “Chefe da quadrilha”? É o que berram por aí blogueiros
rotweiller, editorialistas decadentes, revistas ligadas a bicheiros…
Quem venceu a batalha? A Globo? A Veja e seus asseclas
judiciais? Ou o homem que ajudou a construir um governo que – apesar de tantos
erros e recuos - prestou homenagens a Jango, e tenta acertas as contas com a
Democracia?
A História se escreve lentamente. Ainda mais no Brasil.
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