por Helena Sthephanowitz
Depois do mau exemplo dado pelo STF, bastaria a um juiz
formar sua própria opinião sobre a culpa do acusado
Quando o Supremo Tribunal Fedeal (STF) condenou sem provas
os réus do chamado mensalão, não foram poucos os juristas que alertaram para o
mau precedente que se reproduziria nos tribunais do Brasil afora, sobretudo aos
suspeitos de sempre: pretos, pobres e prostitutas. Depois do mau exemplo dado
pelo STF, bastaria a um juiz formar sua própria opinião sobre a culpa do acusado,
buscar na literatura jurídica uma tese para dar lhe respaldo e mandar às favas
as dúvidas e a falta de provas conclusivas.
Essa jurisprudência já fez uma vítima. No dia 20 de junho,
na maior manifestação de rua deste ano no Rio de Janeiro, o morador de rua e
catador de latinhas Rafael Braga Vieira, 26 anos, negro, com duas passagens
anteriores na polícia por roubo, foi preso por dois policiais civis, perdido no
meio da agitação, saindo de uma loja abandonada onde ele dormia.
Carregava um frasco pequeno de desinfetante de limpeza e
outro de água sanitária na mão. Os frascos estariam com pavio de pano
semelhante a um coquetel molotov, segundo os policiais e o laudo pericial sobre
o material apresentado para análise pelos policiais. Segundo o depoimento de
Rafael e da defesa feita pela defensoria pública, os frascos estavam fechados
com tampa, sem nenhum pavio na hora da apreensão.
O laudo do esquadrão antibomba da Polícia Civil apontou que
um dos frascos tinha água sanitária, sem oferecer nenhum risco. O outro
continha álcool, mas "com ínfima possibilidade de funcionar como coquetel
molotov” já que estavam em recipiente de plástico inquebrável, atestou o laudo.
A defesa alegou que o acusado, morador de rua e catador de
latinhas, sequer tinha o perfil dos manifestantes, sendo menos plausível ainda
atribuir-lhe a conduta de radical incendiário. Por fim, lembrou que não se
podia duvidar do comprovado comportamento de alguns policiais forjando provas
para incriminar inocentes.
Contudo, o juiz Guilherme Shilling Pollo Duarte, ao condenar
Rafael a cinco anos de prisão, escreveu "... fiquei convencido de que a
imputação veiculada na denúncia merece integral acolhimento... ", um ato
falho que guarda alto grau de subjetivismo. Deu mais valor à interpretação dos
fatos pela acusação do Ministério Público do que às dúvidas levantadas pela
defesa.
Em seus testemunhos, os policiais afirmam que o acusado
entrou com uma mochila no prédio abandonado e saiu com os dois frascos na mão.
Quando foi abordado o réu não soube explicar o que fazia com os frascos nas
mãos, segundo os policiais. Na sentença o juiz conclui: "A negativa dos
fatos, pelo acusado (...) evidenciam unicamente uma tentativa desesperada de
esquivar-se das imputações formuladas (...), numa clara manifestação do
exercício da autodefesa".
Será que se o juiz conseguisse imaginar-se no lugar de um
morador de rua, catador de resíduos, com antecedentes criminais, a conclusão
seria outra? A autoridade policial e o Ministério Público deixaram buracos
importantes na acusação. Por que não apreenderam a mochila para periciá-la? Por
que não fizeram uma incursão na loja abandonada para ver se tinha mais material
com potencial explosivo?
E como explicar um frasco estar com água sanitária,
comprovada na perícia? Se houvesse dolo, ou seja, a tentativa intencional de
fazer coquetel molotov, haveria álcool nos dois frascos e não apenas em um. E
por que não há nenhuma testemunha no processo que não sejam os dois policiais,
se havia tanta gente na rua, para esclarecer se havia ou não o tal pavio na
hora da apreensão?
Por tudo isso há uma razoável dúvida nesta condenação de
Rafael.
Quando o Ato Institucional nº 5 foi editado, em dezembro de
1968, o então vice-presidente, Pedro Aleixo, foi o único a votar contra. Ao ser
questionado se duvidava da integridade do presidente-ditador, general Costa e
Silva, para negar-lhe mais poderes, Aleixo recorreu à questão institucional:
“Não tenho nenhum receio em relação ao presidente, eu tenho medo do guarda da
esquina”.
Pedro Aleixo errou na falta de receio aos ditadores, mas
acertou no medo que a ausência de direitos e garantias constitucionais
produziria na conduta de autoridades de todos os níveis hierárquicos.
Hoje a história se repete no Judiciário. Quando o STF
negligenciou direitos e garantias constitucionais no julgamento do
"mensalão" deu a senha para todos os juízes em todos os tribunais das
esquinas do Brasil fazerem o mesmo. Liberou geral o "teje preso" para
os suspeitos de sempre.
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