Por Wladimir Pomar, no sítio Correio da Cidadania:
Muitos acreditam que os acontecimentos de junho de 2013
mostraram que amplos segmentos aparentemente adormecidos podem acordar e
despertar para exigir justiça e direitos sociais. E, ao fazê-lo de forma
radical, podem causar um sobressalto no status quo instalado. Diante disso,
consideram que a classe trabalhadora brasileira terá certamente que travar
ainda muitas batalhas para que os seus filhos, muitos dos quais estiveram nas
ruas, ou continuam tentando ocupá-las, possam aceder a uma posição estável, a um
emprego qualificado e a um futuro auspicioso.
No entanto, entre as batalhas em curso e futuras,
encontram-se, certamente, as da burguesia contra o governo Dilma. Está cada vez
mais evidente que a classe burguesa dominante pretende impedir qualquer pretensão
de aumentar a participação do Estado na economia. Ela teme, como o diabo da
cruz, que tal participação possa eventualmente reduzir os ganhos astronômicos
de seu capital, redirecionando parte deles para resolver problemas sociais
acumulados há décadas.
A burguesia se deu conta do evidente esgotamento da política
de crescimento através do estímulo ao consumo, iniciado em 2003. Sabe que se
tornou indispensável, para a continuidade do crescimento econômico e do
desenvolvimento social, o aumento dos investimentos produtivos. Por isso, ao
mesmo tempo em que ataca o aumento da intervenção do governo na economia, o
chantageia, segurando seus investimentos, apesar das evidentes vantagens
oferecidas nas concessões público-privadas.
Só quem não se apercebeu dessa tática, tanto da burguesia
brasileira quanto da burguesia estrangeira, deixou de entender que elas jogaram
pesado para o total malogro do leilão de campo petrolífero de Libra. Elas
consideram absurdo o novo regimento para a exploração do pré-sal, no qual a
Petrobras deve ser a operadora única. Fizeram de tudo para que as empresas com
recursos para viabilizar a exploração e a produção se negassem a participar do
leilão, na esperança de que isso colocasse o governo contra a parede e o
obrigasse a mudar as regras.
A virada somente ocorreu com a entrada dos chineses na
jogada. Foi isso que forçou a participação dos holandeses e franceses,
temerosos de perder posições na concorrência global. E não é por acaso que dez
entre dez analistas burgueses continuem verbalizando que o leilão foi um
fracasso e uma privatização disfarçada, ao mesmo tempo em que reclamam ser
imprescindível a flexibilização ou mudança das regras, permitindo às
estrangeiras serem operadoras, numa privatização aberta.
Do ponto de vista político, essas reações da burguesia
contra a maior participação do governo na economia também explicam, em grande
medida, os movimentos em curso para as eleições de 2014. A maior parte dessa
classe dominante não está disposta a participar de um governo de esquerda que
pretenda introduzir reformas estruturais, mesmo pontuais, para realizar um
desenvolvimento socialmente menos desigual. Ela não concorda com a introdução
de impostos progressivos, ao invés de regressivos, que hoje pesam
principalmente sobre os assalariados. Nem quer perder seu poder sobre os
congressistas, com o fim dos financiamentos privados às campanhas eleitorais.
A grande burguesia, em especial, é visceralmente contra o
rompimento do domínio monopolista sobre a economia. Não aceita qualquer medida
que democratize a propriedade industrial, comercial, agrícola, dos serviços, da
mídia e do solo, e incentive a concorrência para reduzir os preços e
desenvolver mais rapidamente as forças produtivas. Não aceita a redução das
jornadas de trabalho, a melhoria dos salários, nem a universalização dos
serviços públicos. Portanto, não lhe interessam medidas através das quais seria
possível reduzir a população excluída do mercado de trabalho e proporcionar à
maior parte da população condições dignas de vida. Ao contrário, pretende
jornadas maiores, salários menores, e mais privatização dos serviços públicos,
com foco público mistificador apenas sobre alguns setores da população.
O paradoxo consiste em que, a rigor, nenhuma dessas mudanças
é anticapitalista, ou socialista, a não ser para aquelas mentes caboclas que,
como as do Tea Party estadunidense, são capazes de enxergar socialismo em
qualquer medida de sentido social. Portanto, a maior parte da burguesia
brasileira se movimenta para impedir a reeleição de um governo que esteja
comprometido com um tipo de desenvolvimento econômico que esteja associado a
desenvolvimento social. Ela sabe que esse comprometimento e, ao mesmo tempo, a
renovada pressão das ruas tendem a fazer com que o Estado volte a ser o instrumento
para a imposição de um caminho social que não pretende seguir.
Por outro lado, grande parte dessa burguesia também tem a
clara percepção de que suas vias de desenvolvimento autônomo estão bloqueadas
por sua profunda associação com as corporações transnacionais estrangeiras,
comandadas por um sistema financeiro sem peias. Em tais condições, todas as
tentativas de formular uma terceira via, entre a esquerda e a direita, que
poderiam ser palatáveis para as classes sociais beneficiadas pelas políticas de
transferência de renda e de aumento do salário mínimo petistas, parecem se
bater contra barreiras intransponíveis. Não por acaso, a proposta marinista de
superar a polarização PT-PSDB, silenciosamente endossada por socialistas
rosa-esmaecidos, descambou rapidamente para a proposta de liquidação do
chavismo petista, algo talvez apenas inteligível pela extrema-direita tucana.
Apesar disso, seria ilusão pensar que essa polarização, real
e aparentemente intransponível, empurrará o centro burguês para um provável
programa de mudanças estruturais para a reeleição de Dilma. Na verdade, como se
torna cada vez mais evidente, o centro-burguês, espalhado pelo PMDB e por
outros partidos, utilizará a chantagem extremada contra o pretenso chavismo
petista para arrancar o máximo de concessões e evitar que o programa da
candidatura Dilma inclua qualquer tipo de reformas estruturais.
Emergiram, porém, problemas diferentes daqueles existentes
nas eleições de 2006 e 2010. É certo que o centro-burguês e parte da esquerda
acham que estão ganhando e não se deveria mexer em nada, deixando tudo como
está. Mas é evidente a pressão da grande burguesia por um retrocesso, mesmo em
políticas que pareciam consensuais, como a redução da taxa de juros, o Bolsa
Família, e as parcerias público-privadas para a reconstrução da infraestrutura.
O leilão de Libra, por mais que a esquerda da esquerda tenha se rebelado
contra, se tornou o toque de finados de um tratamento civilizado do governo
Dilma pela burguesia e um grito de alerta para barrar o propalado avanço
estatizante.
Paralelamente, e talvez como um dos elementos de acirramento
da inflexão da burguesia, terminou a paz das ruas. Pelo menos aquela paz que só
não era total porque as ações policiais contra o banditismo presente no seio da
imensa ralé dão a impressão de o país estar em meio a uma guerra civil sem fim.
As manifestações de junho de 2013 colocaram milhões de pessoas de grandes e
médias cidades reclamando de tudo, mas principalmente de mobilidade urbana,
saúde, educação e segurança. De um momento para outro, o descenso das
mobilizações sociais, que perduravam por mais de 25 anos, se transformou em
nova ascensão. Mesmo que ainda não tenha conquistado consistência programática,
essa ascensão trouxe à luz aquilo que Ermínia Maricato repete há muito: cidades
não são apenas espaços da luta de classes. São, por si sós, luta de classes.
Com mais de 80% da população concentrada em cidades médias e
grandes, as aglomerações urbanas brasileiras se transformaram no principal
berço de reprodução da força de trabalho e num mercado de disputa selvagem de
valores de troca, que incluem o solo, habitações, transportes, espaços públicos
e a própria vida humana. Nas cidades, o capitalismo brasileiro coloca a nu sua
natureza predatória, irracional e caótica. A especulação imobiliária empurra a
periferia pobre para novas fronteiras sem infraestrutura alguma. E cria aquilo
que Maricato chama de nó da terra, ardil da informalidade e juventude exilada.
Se olharmos com mais atenção para as manifestações de junho
e posteriores, e para a crescente violência que, paradoxalmente, tem
acompanhado a melhoria das condições de vida de milhões de brasileiros,
incluindo o fenômeno black blocks, poderemos concluir que houve um erro sério
nas prioridades governamentais referentes à reconstrução da infraestrutura do
país. Embora ferrovias, rodovias, portos e navios sejam essenciais para o
desenvolvimento econômico, a infraestrutura e as reformas que deveriam ter
ocupado a posição prioritária são aquelas referentes à mobilidade, saúde,
educação, segurança e alimentos bons e baratos. Infraestrutura que, ao ser
reconstruída, também proporcionaria uma importante alavancagem para o
crescimento industrial e para o aumento da oferta de alimentos e outros bens de
consumo corrente.
Foi esse, e continua sendo, o principal recado das ruas. Um
recado que, para ser atendido, precisará de mais ação do Estado. E que,
queiramos ou não, acirrará as contradições tanto com a grande burguesia quando
com parte da burguesia média e pequena. São essas modificações no processo de
luta de classes, seja entre a burguesia e o governo, seja entre grandes massas
populares e o processo de desenvolvimento em curso, que foram trazidas à tona
pela nova ascensão da luta de classes.
E são elas que estão corroendo as alianças que levaram Lula
e Dilma ao governo, e precisam ser substituídas por outras que tenham por base
os atores sociais da base da sociedade que estão se movimentando. Nessas
condições, 2014 tende a ser tão ou mais turbulento, desafiante e cheio de
emoções que 2013.
0 comentários :
Postar um comentário