Por Wagner Iglecias e Rafael Alcadipani, no Jornal GGN:
Junto com alguns outros shoppings da capital, o Shopping JK
Iguatemi, um dos templos do consumo de luxo em São Paulo, conseguiu uma liminar
na Justiça impedindo o “rolezaum” que havia sido marcado pelas redes sociais
para acontecer no local neste sábado. As portas automáticas que dão acesso ao
estabelecimento foram desligadas e passaram a ser blindadas por policiais.
Houve, ainda, a presença de um oficial de justiça na porta do estabelecimento.
Caso o organizador do evento aparecesse e fosse reconhecido, seria conduzido a
um distrito policial para esclarecimentos, segundo declarou à Veja SP o oficial
de justiça. A situação estapafúrdia foi amplamente divulgada pela imprensa.
Em outro shopping, bem mais popular e localizado no extremo
leste da cidade, a PM chegou a usar bombas e balas de borracha. Na prática, o
Estado tem usado a força para impedir o sagrado direito de jovens pobres e da
periferia de ir e vir. Os chamados “rolezinhos” estão sendo agendados por
jovens e adolescentes destes bairros mais distantes por meio das redes sociais,
e têm despertado o medo de comerciantes e frequentadores habituais dos shopping
centers. Os primeiros rolezinhos aconteceram em shoppings da periferia, e a
presença de seguranças e policiais também ocorreu. A ação deste final de semana
seria mais marcante, pois fora escolhido um dos shoppings frequentados pela
elite paulistana, localizado no caríssimo bairro do Itaim, um dos que mais
concentra investimentos públicos e privados em toda a cidade. Vale lembrar que
shoppings centeres ocuparam as páginas policiais dos jornais recentemente por
suposto envolvimento em esquemas de propina para ter seus projetos aprovados.
A expedição de uma liminar, embora compreensível sob o ponto
de vista daqueles que temiam a chegada de centenas ou milhares de
frequentadores, digamos, “diferenciados”, escancara o que todos neste país
sabemos mas muito poucas vezes falamos: apesar dos avanços institucionais e
legais que o Brasil conheceu desde a redemocratização, alguns brasileiros são
mais cidadãos do que outros. Alguns espaços são mais exclusivos do que outros.
E o consumo, ainda que cantado em prosa e verso como motor da sociedade e
supra-sumo da felicidade e da realização pessoal, não é, evidentemente, para
todos. É estranhíssimo ver empresários buscando a ajuda do Estado, ainda que
seja para obter uma simples liminar com o objetivo de impedir a diversificação
de sua própria carteira de clientes. Afinal de contas, a elite brasileira é
capitalista ou não?
Essa garotada que hoje tenta frequentar os shoppings nasceu
na década de 1990, quando o discurso neoliberal já era hegemônico em nosso
país. Cresceram ouvindo dia e noite que política é ruim e que o sucesso é uma
conquista individual. Comprados o tênis de marca, o relógio da moda, o celular
de última geração, o rolezinho no shopping é o top da ostentação dos que vem de
baixo, da base da pirâmide social. E ai encontram o que? As portas fechadas. A
porta na cara da molecada de pele marrom é o outro lado da moeda de um país
onde uma boa parte da elite parece ser capitalista somente até a página 2. E
que no dia a dia, há séculos, busca se apropriar, de todas as formas possíveis,
do Estado, a fim de dirigir suas prioridades. Dos vultosos subsídios a setores
empresariais ao eterno chororô contra os impostos, do poderoso rentismo que
vive da rolagem da dívida pública aos editais amigos de obras e serviços
públicos, da sonegação fiscal à domesticação de partidos e candidatos através
do financiamento de campanhas eleitorais.
Fernando Henrique Cardoso talvez estivesse certo nos seus
livros e artigos sobre a dependência brasileira: nunca tivemos, em nosso país,
amplos setores de elite que trouxessem consigo um projeto de nação, destinado a
integrar nos direitos, na cidadania ou sequer no consumo os milhões de despossuídos.
Quando muito nossa elites têm um projeto de classe, ou nem isso. Ao longo de
séculos boa parte delas contentaram-se em intermediar negócios com os países
mais ricos e levar sua parte, e a polícia que se vire para segurar a massa
mulata e preta das periferias paupérrimas. Sempre foi assim.
Ao lado dessa ignorância preguiçosa de nossas elites, temos
a ignorância adestrada de nossos pobres. Quando se vê um garoto carregando um
fuzil no meio de uma favela, de uma coisa pode-se ter certeza: ele não quer
fazer a revolução e pôr o sistema abaixo. Pelo contrário, a violência é a forma
pela qual pretende acessar e usufruir dos bens materiais que outros jovens
conseguem obter por meios legais ou aceitáveis. A garotada pobre que se manda
em grupos para os shoppings tem o mesmo desejo. Querem consumir os símbolos de
status que de uns tempos pra cá imaginam ser acessíveis a eles também. Ignoram,
no entanto, que ao invés dos shoppings muito melhor seria se tivessem acesso a
teatros, cinemas, bibliotecas, centros esportivos e de lazer, tão ou mais
inacessíveis a eles que estes ocos templos de consumo.
O “rolezinho” demonstra o paradoxo da elite brasileira, que
por um lado quer crescimento econômico, mas por outro quer manter os de pele
marrom confinados na senzala. A muralha que o “rolezinho” escancarou é formada
por uma Justiça muitas vezes conivente com a desigualdade social, fato que se
expressa em alguns casos como foi em Pinheirinho e agora nos “rolezinhos”.
* Wagner Iglecias é doutor em Sociologia e professor do
Curso de Graduação em Gestão de Políticas Públicas e do Programa de
Pós-Graduação em Integração da América Latina da USP; Rafael Alcadipani é PhD
em Management Sciences pela Manchester Business School (Inglaterra) e Prof.
Adjunto da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV.
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