Por Raquel Dantas, na revista CartaCapital:
É hora do almoço quando a vinheta anuncia a abertura de mais
um Cidade 190. Dentre as narrativas de crimes que se desenrolam, uma reportagem
de 17 minutos exibe vídeo de flagrante de estupro de criança de nove anos de
idade dentro da própria casa. A equipe de reportagem da emissora cearense TV
Cidade, afiliada da Rede Record, foi até Pacatuba, município da região
metropolitana de Fortaleza, para relatar o crime. A repórter começa a matéria
identificando rua e número das residências onde moram vítima e agressor.
Familiares são entrevistados sobre o caso, enquanto seguidas vezes são
repetidas as cenas do abuso sexual. A imagem é embaçada somente na altura dos
genitais, deixando visível ao telespectador toda a cena de violência.
O caso foi repercutido nas redes sociais e, no site oficial
da emissora, o vídeo com a reportagem chegou a ter 30 mil visualizações até às
17h da quarta-feira (08/01), dia seguinte à exibição da matéria. Após reação do
Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca) e do procurador
regional da República do Estado do Ceará, Francisco Macedo Filho, o vídeo foi
retirado do ar. Não obstante, a emissora voltou a veicular o caso na tarde do
mesmo dia e outros programas policiais também o fizeram, como o Rota 22, da TV
Diário. Esta emissora, por sua vez, explorou tentativa de linchamento da
população ao agressor e situação de extrema vulnerabilidade do pai da criança,
que é mostrado desmaiado no chão em frente à delegacia do município de
Maracanaú, para onde o agressor havia sido encaminhado.
Uma série de violações se configuram no caso descrito. Em
primeiro lugar, a transmissão por si só do estupro pela TV Cidade, que fere os
princípios constitucionais referentes à responsabilidade de concessionários de
serviços de radiodifusão para com a imagem e a dignidade das pessoas, com o
agravante por se tratar de uma criança. Em segundo - e com peso e consequências
psicológicas irremediáveis, a extrema exposição da criança em situação de
violência e a sua identificação, pelas imagens do rosto e do corpo inteiro,
pela divulgação do seu endereço de moradia e da exploração de depoimentos de
seus familiares, permitindo que qualquer morador da comunidade possa
identificá-la. A situação em que a emissora colocou a criança também abriu
margem para o julgamento popular, o qual se caracterizou muitas vezes na
culpabilização da menina, como pôde ser visto nos comentários na reportagem
disponibilizada no portal da emissora na internet.
Mesmo após ser informada de que a veiculação das imagens
configurava crime, a TV voltou a exibir matérias na edição da tarde de
quarta-feira, revelando parte do diálogo do agressor com a vítima. A atitude
demonstra total falta de responsabilidade do veículo e do corpo editorial, além
de deixar claro que a busca pela audiência é colocada em primeiro plano mesmo
que para isso mais violações sejam cometidas.
Cabe aqui uma reflexão a respeito da relação da população
com os programas policiais em geral. Eles normalmente são o único meio pelo
qual moradores de bairros desassistidos pelo poder público conseguem atenção e
visibilidade para os problemas que vivenciam. A relação é tão estreita que é
comum que a população acione a produção desses programas policiais ao invés da
própria polícia quando algum crime acontece. O caso que tratamos é emblemático
porque o pai da criança julgou que solicitar ajuda do programa policial seria
talvez a melhor ou mesmo a única medida a seu alcance para fazer justiça. Tanto
que o caso só se tornou público porque os pais entregaram cópia do vídeo para a
produção do Cidade 190.
Em nota de esclarecimento lançada nesta quinta-feira, o
Departamento de Jornalismo da TV Cidade declara que as imagens foram divulgadas
“a pedido expresso de seu pai, que, em desespero, solicitou essa providência
por entender que tal procedimento ajudaria a punir o criminoso”, e que
conseguiram fazê-lo sem que houvessem dados identificatórios, assegurando a
proteção da criança. O que, conforme descrito aqui, não ocorreu.
O caso deixa claro até onde pode chegar o abuso e a irresponsabilidade
de um canal de TV por meio de seus programas policiais, ditos jornalísticos.
Uma grave e séria conduta que deve ser avaliada pela sociedade e pela qual a
emissora deve ser responsabilizada. Também é importante trazer à tona as
inúmeras violações contra os direitos humanos que são cometidas diariamente, há
muito tempo, por todo e qualquer programa policial exibido no estado do Ceará.
O espetáculo da violência foi adotado pelas emissoras de TV locais a partir do
programa Barra Pesada, da TV Jangadeiro - hoje afiliada da Rede Bandeirantes -
exibido pela primeira vez em julho de 1990. Ainda hoje no ar, disputa
telespectadores com Cidade 190, da TV Cidade, e com os veiculados pela TV
Diário - Comando 22, Rota 22 e Os Malas e a Lei.
A gravidade do fato vem gerando grande repercussão e
comoção. Sociedade civil organizada já se articula para programar medidas de
publicização do fato e responsabilização da emissora pelo crime cometido. Mais
de trinta entidades locais se reuniram nesta quinta-feira, na sede do Centro de
Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará, para organizar ações e cobrar que
a assistência psicológica à família seja garantida.
Não será o último caso, mas pode deixar marcas mais
profundas de sensibilização da sociedade e de mobilização de entidades e
movimentos sociais para que se construa uma relação crítica da população com
esses programas. É também necessário e urgente que se crie mecanismos de
fiscalização dos meios de comunicação para que os cidadãos tenham a quem
recorrer diante dos abusos e violações cometidas. Além disso, é primordial a
criação de um órgão regulador que garanta o cumprimento das leis vigentes, já
que a responsabilidade dos meios de comunicação está inscrita na Constituição
Federal e no Código de Ética dos Jornalistas. Todas essas medidas só serão
possíveis no dia em que governo e sociedade cobrem os meios de comunicação para
que sejam promotores de direitos, pois hoje esse serviço público tem sido
norteado por interesses econômicos, tão bem entranhados nessa relação de poder,
polícia e política que envolve a mídia.
* Raquel Dantas é jornalista e integrante do Coletivo
Intervozes no Ceará.
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