"Horrível e agonizante" foram as expressões mais
utilizadas pela imprensa ao reagir às gravíssimas fraturas na canela sofridas
por Anderson Silva, derrotado em nocaute técnico, em luta MMA (Mix Marcial
Arts) com o americano Chris Weidman, em 29 de dezembro. O osso da perna de
Anderson Silva teria quebrado ao meio, em uma chocante cena de brutalidade.
Por Flávia Piovesan*
O episódio lança três indagações: qual deve ser o papel do
Estado em relação à prática do MMA? Devem as lutas ser transmitidas pela
televisão sem qualquer limitação? Como proteger, sobretudo crianças, do impacto
violento do MMA?
De acordo com a Constituição é dever do Estado fomentar
práticas desportivas como direito de cada um. Também é dever do Estado
assegurar à criança absoluta prioridade, colocando-a a salvo de toda forma de
violência e crueldade, como sujeito de direito em peculiar condição de
desenvolvimento. Ao disciplinar a programação de emissoras de televisão, a
Constituição ainda consagra, como princípios, a preferência a finalidades educativas,
bem como o respeito aos valores da pessoa.
Lutas de MMA têm resultado em morte, lesões graves e
permanentes. Registram-se, ao menos, oito casos de morte, em geral causadas por
hemorragia cerebral, em virtude de socos na cabeça — como tragicamente atestam
as mortes dos lutadores Douglas Dedge, Sam Vasquez, Michael Kirkham e Dustin
Jenson.
Desde 1997, em Nova York são proibidas competições do MMA.
Na França e na Tailândia, o MMA também é vedado, havendo um forte movimento no
Canadá pela proibição.
No Brasil, a luta é permitida, havendo ainda total liberdade
para sua exibição pelas emissoras de TV, em qualquer horário. Tragédias
recentes, todavia, demonstram o impacto do MMA na banalização da brutalidade, o
que tem estimulado o comportamento violento e agressivo de crianças, culminando
em vítimas — como ilustram os tristes casos da morte de uma criança de 2 anos,
espancada pelos irmãos de 11 e 13 anos, que "brincavam de luta", em 5
de fevereiro de 2013; e da morte de uma criança de 8 anos, após ter sido
agredida em uma "brincadeira de luta" com dois irmãos gêmeos de 12
anos, em 23 de fevereiro de 2013.
Neste contexto, merece atenção o Projeto de Lei 5.534/2009,
que objetiva a vedar a transmissão de lutas marciais não olímpicas pelas
emissoras de televisão.
Por comando constitucional, é emergencial que crianças sejam
protegidas de toda forma de violência e crueldade, por meio, ao menos, da
criação de um "horário protegido" na TV. Crianças brasileiras ficam
expostas à TV em média cinco horas diárias (dados do Ibope em 2010), superando
o tempo que passam na escola (em média três horas e 15 minutos, dados da FGV).
Em uma sociedade midiática, essencial é debater a regulação
da mídia para proteger a infância, considerando parâmetros internacionais que
demandam dos Estados diretrizes apropriadas à proteção da criança contra
programação prejudicial ao seu bem-estar. Pesquisas evidenciam que crianças são
intensamente impactadas por conteúdos de violência, sendo sua exposição precoce
a eles nociva ao seu desenvolvimento, como afirma a Academia Americana de
Pediatria.
Por outro lado, além de assegurar a proteção integral às
crianças mediante a regulação da mídia, fundamental é fomentar o debate público
a respeito da própria luta MMA.
Por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal (STF), em 26 de
maio de 2011, declarou inconstitucional a lei estadual 2.895/98, do Rio de
Janeiro, que autorizava a briga de galos, por institucionalizar a prática da
crueldade, em violação à Constituição, que veda a submissão de animais a atos de
crueldade — o que levou o Supremo a descaracterizar a prática como manifestação
cultural.
Com o mesmo argumento, o tribunal considerou a farra do boi
(que envolve a tourada de corda e a surra de touros, causando, por vezes, a
morte de animais), como uma manifestação atentatória à Constituição. Na
Espanha, a tradicional tourada foi proibida na região da Catalunha em 2011.
Seria o MMA um esporte ou estaria a institucionalizar a
prática da violência? Como sustenta o professor da Universidade de Princeton Anthony
Appiah, em recente livro ("The Honor Code: how moral revolutions
happen"), o mundo tem testemunhado revoluções morais, que permitem
abandonar rituais seculares — como aponta o próprio fim da escravidão.
Afinal, há sempre o direito de transformar práticas
culturais, por meio do fortalecimento do senso de dignidade e respeito, em
repúdio a brutalidades.
* É professora da PUC/SP e procuradora do estado
Fonte: Agência Patrícia Galvão
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