Enquanto fui relator, mantive o Dirceu trancado na Papuda !
O Conversa Afiada reproduz corajosa entrevista de Luiz
Moreira a Conceição Lemes, no Viomundo:
Luiz Moreira: “Declaração de Joaquim Barbosa desnuda
propósito de utilizar Dirceu como trampolim eleitoral; julgamento dos embargos
não pode ocorrer”
por Conceição Lemes
O julgamento da Ação Penal 470 (AP 470), o chamado mensalão,
foi marcado por arbitrariedades, infrações à Constituição vigente.
Os réus foram condenados sem direito ao duplo grau de
jurisdição, sem provas. Afora algumas vozes isoladas, os advogados do país e
suas associações assistiram a tudo calados.
“Vivemos o coroamento de uma época”, alerta em entrevista
exclusiva ao Viomundo Luiz Moreira, professor de Direito Constitucional e Conselheiro Nacional do Ministério Público
(CNMP), indicado pela Câmara dos Deputados. ”Essa supremacia do Judiciário vem
sendo desenhada desde a abertura política e se cristalizou com a promulgação da
Constituição de 1988.”
Com as suas decisões na AP 470, o ministro Joaquim Barbosa,
relator da AP 470 e presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), levou a
supremacia judicial aos últimos limites.
Hoje, em matéria de capa da revista Veja, diz: ”Acho que chegou
a hora de eu sair”.
Justamente na semana que antecede o julgamento dos embargos
infringentes da AP 470, que pode reduzir a pena de vários condenados, dentre as
quais a de José Dirceu, ex-ministro e ex-presidente do PT, e de José Genoino, ex-deputado federal e
ex-presidente do PT.
“Isso demonstra que o julgamento da Ação Penal 470 foi
utilizado como plataforma eleitoral e como arma para, com a criminalização do
PT, conquistar vitórias eleitorais”, afirma Luiz Moreira. “Os principais
quadros do PT foram usados como troféus.”
” Quando Joaquim Barbosa afirma que ’é chegada a hora de sair’, ele desnuda o
propósito de utilizar José Dirceu como trampolim para seu projeto eleitoral.
Disso se pode antever, com bastante plausibilidade, que um dos motes de sua
campanha será: ‘enquanto fui o relator mantive José Dirceu preso’”, denuncia
Moreira.
“O julgamento dos embargos infringentes não pode ocorrer
nessas circunstâncias. Algum dos ministros do STF precisa pedir vista e impedir
que o Supremo continue a ser utilizado como instrumento de promoção eleitoral”,
alerta Moreira.
Segue a íntegra da nossa entrevista.
Viomundo — O ministro Joaquim Barbosa declara à Veja desta
semana: ‘acho que já chegou a hora de sair’. Qual o significado dessa
afirmação?
Luiz Moreira — Sinaliza que ele pretende mesmo disputar as
eleições de 2014. Demonstra que o julgamento da Ação Penal 470 foi utilizado
como plataforma eleitoral e como arma para, com a criminalização do PT,
conquistar vitórias eleitorais.
Viomundo — Como isso se efetivou?
Luiz Moreira – Todos os passos do julgamento da AP 470 foram
milimetricamente ajustados ao calendário eleitoral, além de ser acompanhado de
atos isolados que se conectavam à produção de manchetes. Tudo isso tinha e tem
como propósito produzir as condições para que Joaquim Barbosa fosse candidato.
Viomundo — Por isso Joaquim Barbosa marcou o julgamento dos
embargos infringentes para esta semana?
Luiz Moreira — Este julgamento não pode ocorrer nessas
circunstâncias. Algum dos ministros do STF precisa pedir vista e impedir que o
Supremo continue a ser utilizado como instrumento de promoção eleitoral.
Viomundo –O que ocorreu?
Luiz Moreira — Houve uma clara associação entre Joaquim
Barbosa e Roberto Gurgel [ex-procurador-geral da República] para condenar os
principais quadros do PT e com isso possibilitar a ascensão de candidatos
ligados a uma espécie de messianismo patriótico cujo propósito é resolver os
problemas da sociedade com a cartilha do direito penal máximo. Por isso, a
única bandeira desse messianismo é o combate à corrupção.
A estratégia é clara: constrói-se a surrada bandeira de que
no Brasil a corrupção é generalizada para se produzir candidaturas oriundas do
Ministério Público.
Viomundo –Quer dizer que o combate à corrupção é o mote
desse projeto?
Luiz Moreira — Sim. Primeiro, há o projeto de criminalização
da política, com a consequente entronização dos órgãos de controle. O passo
seguinte é a candidatura dos quadros que desqualificaram os políticos para
assumirem seus lugares.
Viomundo — Por isso a judicialização da política?
Luiz Moreira — No caso do PT, os seus principais quadros
foram utilizados como troféus.
O caso de José Dirceu, ex-ministro e ex-presidente do PT, é
o mais escandaloso. Joaquim Barbosa impede até que ele trabalhe, condição
condizente com sua condenação ao regime semiaberto. E, após cassar uma decisão
do Ministro Ricardo Lewandowski, ele pauta o julgamento dos embargos
infringentes.
Viomundo — Nesse caso, o que pretende Joaquim Barbosa?
Luiz Moreira — Quando Joaquim Barbosa afirma que “é chegada
a hora de sair”, ele desnuda o propósito de utilizar José Dirceu como trampolim
para seu projeto eleitoral. Disso se pode antever, com bastante plausibilidade,
que um dos motes de sua campanha será: “enquanto fui o relator mantive José
Dirceu preso”.
Viomundo — Os réus Ação Penal 470 foram condenados sem
direito ao duplo grau de jurisdição, sem provas. Afora, algumas vozes isoladas,
os advogados do país e suas associações assistiram tudo calados. O que está
acontecendo?
Luiz Moreira –Vivemos o coroamento de uma época. Essa
supremacia do Judiciário vem sendo desenhada desde a abertura política e se cristalizou
com a promulgação da Constituição de 1988.
Viomundo –Por quê?
Luiz Moreira –Os políticos fizeram a Constituição vigente.
Aqueles que foram perseguidos pela ditadura civil-militar conquistaram a
redemocratização e essa vitória política resultou na Constituição de 1988, uma
nova Carta política.
Só que a Constituição acabou sendo transformada em documento
exclusivamente jurídico. Como forma de tutelar a soberania popular, a conquista
política de uma geração foi assimilada por um poder aliado da ditadura. O
Judiciário!
Esse processo ideológico de apropriação da legitimidade que
brota da democracia tentou preservar a matriz conceitual de um Estado que
sempre se organizou sem a participação popular.
Esse movimento, altamente sofisticado, criou as condições
para o estabelecimento de uma supremacia judicial que, ao longo dos anos,
resultaria na criminalização dos partidos e do Congresso Nacional. É o que
estamos vendo hoje.
Viomundo — Explique melhor.
Luiz Moreira –No Brasil, a figura do constituinte é
praticamente uma reminiscência. É como se fosse algo fora da sociedade. Nenhum
dos constituintes detém prestígio social por essa condição.
Quando se fala em Constituição invariavelmente nos lembramos
do SupremoTribunal Federal. Esse processo de primazia do Judiciário se inicia
com a permuta da política pelo direito ocorrido após a promulgação da
Constituição.
Em seguida há algo que passa a ser repetido como um mantra:
“o Supremo é o guardião da Constituição”, como se a política não tivesse
nenhuma participação na constitucionalidade, no cumprimento das leis, no
cumprimento das regras contidas na Constituição.
Viomundo — Mas o Supremo não é o guardião da Constituição?!
Luiz Moreira — É um dos guardiães! O sistema jurídico
brasileiro é complexo e nele há duas etapas para o controle de
constitucionalidade. A prévia, exercida pelas Comissões de Constituições e
Justiça do Legislativo e outra, a posteriori. Na última, ocorre uma divisão de
tarefas entre o Executivo e o Judiciário.
Viomundo — O senhor diz que a Constituição é um instrumento
político, mas acabou se transformando em instrumento jurídico. Como se deu esse
processo?
Luiz Moreira -Trata-se de um movimento mundial que vem desde
o final da Segunda Guerra.O pós-guerra se caracterizou também pela mitigação
das representações parlamentares. Houve o enfraquecimento dos Parlamentos e a
conseqüente entronização dos Tribunais Constitucionais, que significou o
afastamento do povo das tomadas de decisão, pois as deliberações passaram a ser
tomadas pelas instâncias burocráticas.
Com os Tribunais Constitucionais foi constituída uma espécie
de clube, que passou a tutelar os diversos interesses nacionais, eliminando a
pluralidade que os Parlamentos representam. Não é por acaso que o Tribunal
Constitucional da Alemanha é inaugurado na ocupação da Alemanha pelas forças
aliadas, com domínio dos norte-americanos.
Então, foi disseminado, como uma onda, que o Direito e o
Judiciário seriam as únicas instituições capazes de conduzir os países ao
progresso. O exemplo mais acabado disso são os últimos episódios da União Européia,
na qual as decisões passam ao largo dos cidadãos. Há cada vez menos democracia
e sobra burocracia a tutelar a sociedade.
Viomundo — Só que, ao mesmo tempo, assistimos à crescente
judiciailização da política.
Luiz Moreira –Exatamente. Essa judicialização é o
deslocamento das decisões da política para o Judiciário. Em consequência, as
decisões perdem legitimidade, pois deixam de ser deliberações tomadas pelos
representantes do povo e passam a ser tomadas pelos ministros do Supremo
Viomundo — Qual o risco disso para a democracia?
Luiz Moreira — Há a substituição da soberania do povo, da
democracia por um poder burocrático.
Viomundo — A judicialização da política é um problema para a
democracia, pois ela transforma o cidadão em mero expectador.
Luiz Moreira — É curioso que a diminuição da Política pelo
Direito ocorra fortemente após a Constituição de 1988. É paradoxal, pois isso
ocorre imediatamente após uma ditadura civil-militar, na qual os instrumentos
de dominação eram toscos, embora fosse sofisticado o aparato jurídico.
Com a redemocratização era preciso alterar os instrumentos
de dominação, desde que se mantivesse inalterada a fonte de domínio, ou seja, o
projeto de democracia sem povo tinha que permanecer, por isso a política continuou
mitigada. Só que agora o Ministério Público e o Judiciário ocupariam o lugar
antes ocupado pelos generais.
O apogeu desse sistema ocorre com a substituição do poderio
militar pela toga, pois as decisões migraram dos quartéis para os palácios de justiça.
Viomundo — Como isso foi se dando na prática?
Luiz Moreira — Existem alguns marcos. Um deles é a emenda
45, aquela que instituiu a Reforma do Judiciário, pois com ela ocorreu um
equívoco conceitual.
Veja a contradição. Essa reforma se inicia com um discurso
do presidente Lula, em que ele afirma que “o Judiciário é uma caixa preta”. Só
que a reforma do Judiciário traiu aquilo que Lula pretendia.
Viomundo — Por quê?
Luiz Moreira — Se o Judiciário é uma caixa preta, não é
reforçando as estruturas judiciárias que se abrirá a caixa.
O que a Emenda 45 fez? Criou os conselhos nacionais de
Justiça (CNJ) e do Ministério Público (CNMP). Mas isso é muito pouco.O
Judiciário e o Ministério Público têm ampla maioria nesses dois conselhos,
fazendo prevalecer a visão corporativista de seus membros. No CNJ e no CNMP, a
representação da sociedade jamais assumirá postos dirigentes.
Quando o presidente Lula dizia, com razão, que o Judiciário
era uma caixa preta, ele defendia com isso abrir o judiciário ao controle
social.
E o que aconteceu foi justamente o contrário! A emenda
constitucional 45 que criou o CNJ e o CNMJ também criou a súmula vinculante.
O parágrafo 2 da emenda 45 estabelece:
O § 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo
Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas
ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e
efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à
administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e
municipal.
Ou seja, toda a administração pública, nos três níveis de
poder, passou a se submeter ao STF.
Portanto, ao invés de submeter o Judiciário ao controle
social a emenda 45 acaba por criar uma supremacia judicial sem precedentes no
Brasil, dotando o Supremo Tribunal Federal de poderes semelhantes aos exercidos
por D. Pedro II, no Império.
O que acontecia no Império? Quando havia uma questão controvertida
entre os três poderes cabia ao Imperador resolver. Atualmente, quando há uma
controvérsia, o Supremo Tribunal Federal resolve a questão. O problema é que a
vida não cabe dentro de uma decisão judicial.
Viomundo — Como ficam as arbitrariedades cometidas pelo
ministro Joaquim Barbosa até na prisão dos condenados da Ação Penal 470? O
ex-ministro José Dirceu (PT) tem direito ao regime semiaberto, mas três meses
após a prisão continua no fechado. Já o ex-deputado federal Roberto Jefferson,
delator do mensalão, até hoje não teve a prisão decretada… Barbosa disse que o
ex-deputado federal João Paulo Cunha (PT) seria preso, mas viajou sem assinar o
pedido de prisão…
Luiz Moreira — A postura do ministro Joaquim Barbosa no caso
do deputado João Paulo Cunha é típica de guerra psicológica. O relator proclama
o trânsito em julgado do processo contra João Paulo. Ou seja, não há mais
recurso a ser julgado.
João Paulo, então, viaja a Brasília, para ser preso. Só que
o ministro Joaquim Barbosa viaja e não assina o pedido de prisão… Isto é
absolutamente tosco.
É a manifestação de um arbítrio sem precedentes, pois essa
absoluta falta de parâmetros é condizente com períodos de exceção, quando o
poder estatal é exercido sem limites.
Viomundo — Ironicamente, João Paulo Cunha era presidente da
Câmara dos Deputados na época em que a súmula vinculante foi aprovada e
promulgada. Na época, não se tinha essa percepção? Ou o Congresso votou
subjugado pelo lobby do Judiciário?
Luiz Moreira — O Congresso dotou o Judiciário de todas as
condições para exercer o papel contra majoritário.
Eu explico. Como representante da sociedade brasileira, o
Congresso se move pela formação de consensos majoritários. Essa é a expressão
da Política, ou seja, o Parlamento expressa a vontade da maioria. Desse modo,
coube ao Legislativo constituir um órgão ao qual compete defender a minoria do
arbítrio da maioria.
No entanto, aconteceu de o STF avocar pra si a condição de
órgão majoritário e passar a disputar a opinião pública, fomentando e forjando
consensos. É exatamente o que ocorreu com a criação da súmula vinculante.
Viomundo – A sua visão sobre a súmula vinculante é
compartilhada pelos juristas?
Luiz Moreira — Essa supremacia judicial realiza um projeto
da elite brasileira de submeter a democracia a um controle burocrático. Quanto
aos juristas, ao que parece o sistema atual agrada muitos. A súmula vinculante
é uma tentativa muito clara de blindar a burocracia. Isso é muito parecido com o que acontece no
Brasil, em geral.
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