Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
A saída de Joaquim Barbosa do STF representa um alívio para
a Justiça do país e é uma boa notícia para os fundamentos da democracia
brasileira. Abre a oportunidade para a recuperação de noções básicas do sistema
republicano, como a separação entre poderes, e o respeito pelos direitos
humanos – arranhados de forma sistemática no tratamento dispensado aos réus da
Ação Penal 470, inclusive quando eles cumpriam pena de prisão.
Ao aposentar-se, Joaquim Barbosa ficará longe dos grandes
constrangimentos que aguardam “o maior julgamento do século,” o que pode ser
útil na preservação do do próprio mito.
Para começar, prevê-se, para breve, a absolvição dos
principais réus do mensalão PSDB-MG, que sequer foram julgados – em primeira
instância - num tribunal de Minas Gerais. Um deles, que embolsou R$ 300 000 do
esquema de Marcos Valério - soma jamais registrada na conta de um dirigente do
PT - pode até sair candidato ao governo de Estado.
Joaquim deixa o Supremo depois de uma decisão que se
transformou em escândalo jurídico. Num gesto que teve como consequência real
manter um regime de perseguição permanente aos condenados da AP 470, revogou
uma jurisprudência de quinze anos, que permitia a milhares de réus condenados
ao regime semi-aberto a trabalhar fora da prisão -- situação que cedo ou tarde
iria incluir José Dirceu, hoje um entre tantos outros condenados. Mesmo Carlos
Ayres Britto, o principal aliado que Joaquim já fez no STF, fez questão de
criticar a decisão. Levada para plenário, essa medida é vista como uma provável
derrota de Joaquim para seus pares que, longe de expressar qualquer maquinação
política de adversários, apenas reflete o desmonte de sua liderança no STF.
Em outro movimento na mesma direção, o Supremo acaba de
modificar as regras para os próximos julgamentos de políticos. Ao contrário do
que se fez na AP 470 – e só ali -- eles não serão julgados pelo plenário, mas
por turmas em separado do STF. Não haverá câmaras de TV. E, claro: sempre que
não se tratar de um réu com direito a foro privilegiado, a lei será cumprida e
a ninguém será negado o direito de um julgamento em primeira instância, seguido
de pelo menos um novo recurso em caso de condenação. É o desmembramento, aquele
recurso negado apenas aos réus da AP 470 e que teria impedido, por exemplo,
malabarismos jurídicos como a Teoria do Domínio do Fato, com a qual o
Procurador Geral da Republica tentou sustentar uma denúncia sem provas
consistentes contra os principais réus.
Hoje retratado como uma autoridade inflexível, incapaz de
qualquer gesto inadequado para defender interesses próprios – imagino quantas
vezes sua capa negra será exibida nos próximos dias, num previsível efeito
dramático – Joaquim chegou ao STF pelo caminho comum da maioria dos mortais.
Fez campanha.
Quando duas aguerridas parlamentares da esquerda do PT –
Luciana Genro e Heloísa Helena – ameaçaram subir à tribuna do Congresso para
denunciar um caso de agressão de Joaquim a sua ex-mulher, ocorrido muitos anos
antes da indicação, quando o casal discutia a separação, o presidente do
partido José Genoíno (condenado a seis anos na AP 470) correu em defesa do
candidato ao Supremo. Argumentou que a indicação representava um avanço
importante na vitória contra o preconceito racial e convenceu as duas
parlamentares. (Dez anos depois desse gesto, favorável a um cidadão que sequer
conhecia, Joaquim formou sucessivas juntas médicas para examinar o cardiopata
Genoíno. Uma delas autorizou a suspensão da prisão domiciliar obtida na
Justiça).
O diretor do Banco do Brasil Henrique Pizzolato (condenado a
12 anos na AP 470) foi procurado para dar apoio, pedindo a Gilberto Carvalho
que falasse de seu nome junto a Lula. José Dirceu (condenado a 10 anos e dez
meses, reduzidos para sete contra a vontade de Joaquim), também recebeu pedido
de apoio. Dezenas – um deputado petista diz que eram centenas – de cartas de
movimentos contra o racismo foram enviadas ao gabinete de Lula, em defesa de
Joaquim. Assim seu nome atropelou outro juristas negros – inclusive um membro
do Tribunal Superior do Trabalho, Carlos Alberto Reis de Paula – que tinha
apoio de Nelson Jobim para ficar com a vaga.
Quando a nomeação enfim saiu, Lula resolveu convidar Joaquim
para acompanha-lo numa viagem presidencial a África. O novo ministro recusou.
Não queria ser uma peça de marketing, explicou, numa entrevista a Roberto
d'Ávila. Era uma referência desrespeitosa, já que a África foi, efetivamente,
um elemento importante da diplomacia brasileira a partir do governo Lula, que
ali abriu embaixadas e estabeleceu novas relações comerciais e diplomáticas.
De qualquer modo, se era marketing convidar um ministro
negro para ir a África, por que não recusar a mesma assinatura da mesma
autoridade que o indicou para o Supremo?
À frente da AP 470, Joaquim Barbosa jamais se colocou na
posição equilibrada que se espera de um juiz. Não pesou os dois lados, não
comparou argumentos.
Através do inquérito 2474, manteve em sigilo fatos novos que
poderiam embaralhar o trabalho da acusação e que sequer chegaram ao
conhecimento do plenário do STF – como se fosse correto selecionar elementos de
realidade que interessam a denúncia, e desprezar aqueles que poderiam,
legitimamente, beneficiar os réus. Assumiu o papel de inquisidor, capaz de
tentar destruir, pela via do judiciário, aquilo que os adversários do governo
se mostravam incapazes de obter pelas urnas.
Ao verificar que o ministro era capaz de se voltar em fúria
absoluta contra as forças políticas que lhe deram sustentação para chegasse a
mais alta corte do país, os adversários da véspera esqueceram por um minuto as
desconfianças iniciais, as críticas ao sistema de cotas e todas políticas
compensatórias baseadas em raça.
Passaram a dizer, como repete Eliane Cantanhede na Folha
hoje, que Joaquim rebelou-se contra o papel de “negro dócil e agradecido.”
Rebelião contra quem mesmo? Contra o que? A favor de quem?
Já vimos e logo veremos.
Basta prestar atenção nos sorrisos e fotografias da campanha
presidencial.
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