Não havia muitas esperanças, mas a divulgação do plano de
governo da candidatura Marina Silva superou as piores expectativas.
O “plano” não passa de amontoado de clichês conservadores e
propostas ortodoxas requentadas, temperado, como convém à suposta terceira via,
pelo molho ralo da pseudo “nova política” e por um ambientalismo conservador
que mal disfarça a sua incompatibilidade com o desenvolvimento sustentável.
Entenda-se “plano”, no caso, como mera licença poética para caracterizar um
discurso vago e dúbio, sem métrica, sem rima e sem lógica consistente.
O prato servido tem até uma aparência convidativa, mas é
francamente indigesto.
No caso da política externa, o plano é decididamente tóxico
para os interesses nacionais. Com certeza, foi preparado pelos mesmos chefs que
fizeram o plano rançoso da candidatura Aécio Neves. Pode-se até perguntar se
uma pagou direitos autorais à outra.
Em primeiro lugar, o “plano” repete os mesmos clichês
neopositivistas sobre o caráter “ideológico” e “partidarizado” da política
externa dos governos do PT. Assim, lá pelas tantas nos deparamos com esta
pérola: por lidar com aspirações permanentes do país e implicar compromissos de
Estado, a política externa não pode ser refém de facções ou agrupamentos
políticos. Surpreende o recurso nos últimos anos a “diplomacias paralelas”.
Ora, os compromissos de Estado não caem do céu e as
aspirações permanentes do país não surgem de um grupo seleto de metafísicos.
Como toda política, as diretrizes e prioridades de uma política externa são
definidas em eleições, que escolhem, de forma legítima, os representantes do
povo. Isso se chama democracia, a melhor forma de fazer política.
Os conservadores, como os da candidatura Marina, acham que
as políticas que resultam de governos de direita são escolhas técnicas,
racionais e legítimas, da política econômica à política externa, ao passo que
as escolhas feitas pelos governos progressistas ou de esquerda são
invariavelmente “ideológicas”, “irracionais”, “partidarizadas” e “ilegítimas”.
Isso se chama “pensamento único”, a forma mais autoritária de se fazer
política.
No caso da política externa brasileira, a surrada crítica
conservadora que a candidatura Marina reproduz como disciplinado psitacídeo,
mistura, além dos velhos clichês do pensamento único e do neopositivismo, uma
folclórica teoria da conspiração. Haveria uma “diplomacia paralela”, conduzida
por uma espécie de Rasputin da política externa, Marco Aurélio García, que tira
a diplomacia oficial brasileira de seu “leito natural”.
Isso daria um excelente seriado político, como o House of
Cards, mas uma péssima tese sobre o que de fato ocorreu com a política externa
do Brasil, nos últimos anos.
Nos tempos do PSDB, tínhamos uma política externa que
privilegiava as relações com a única superpotência mundial (EUA) e com as
potências tradicionais. Dava-se uma grande ênfase ao eixo Norte-Sul da nossa
diplomacia e uma baixa ênfase ao eixo Sul-Sul, às parcerias estratégicas com
países emergentes e à integração regional. Buscávamos a chamada “autonomia pela
integração”, isto é, a inserção apressada e acrítica na “globalização”
assimétrica, inclusive com a perspectiva de acordos de livre comércio com as
economias mais avançadas.
Coerentemente com o ideário do Consenso de Washington,
considerava-se que essas escolhas em política externa, combinadas com as
políticas internas que conduziam à abertura da economia e a redução do papel do
Estado, levariam o Brasil a um ciclo econômico e político marcado pelo grande
crescimento, pela prosperidade e pelo aumento do protagonismo internacional do
país.
Não foi isso o que aconteceu. Na realidade, aconteceu o
contrário. Acumulamos grandes déficits comerciais, crescimento sistematicamente
baixo, aumento da nossa vulnerabilidade externa, permeada por crises
periódicas, e redução da nossa participação no comércio mundial e do nosso
protagonismo internacional. Gerou-se um círculo vicioso entre as políticas
internas que aumentavam nossa dependência econômica, inclusive de capitais
especulativos, e a política externa que nos fragilizava política e
diplomaticamente. Em outras palavras: a “autonomia pela integração” não
produziu nem maior integração, nem maior autonomia. Fracassou.
Os governos do PT implantaram outra política. Passou-se a
dar ênfase maior à cooperação Sul-Sul, a integração regional e à diversificação
das nossas parcerias com países emergentes, sem abandonar, contudo, as
parcerias tradicionais. Desmontou-se a bomba-relógio da ALCA e de outras
iniciativas, com a dos acordos bilaterais de proteção de investimentos, e
investiu-se na articulação de interesses dos países em desenvolvimento nos
grandes foros globais.
Ao contrário do que se diz, essa política, que pode ser
definida como a da “autonomia pela diversificação”, não foi um erro ideológico
conduzido por uma diplomacia partidarizada, mas sim um êxito pragmático,
legitimamente liderado por dirigentes democraticamente eleitos e por uma
fortalecida burocracia diplomática. Fortalecida por concursos públicos de vulto
e por plano de carreira consistente, agregue-se.
Com efeito, os seus resultados são muito melhores, apesar
das dificuldades recente ocasionadas pelo acirramento da crise global e a
estagnação do comércio mundial que se verifica desde o segundo trimestre de
2011.
No período paleoliberal, acumulou-se um déficit US$ 8, 6
bilhões. Nos governos do PT, acumulou-se um superávit que já chega a US$ 312
bilhões. Esses vultosos superávits foram fundamentais para reverter nossa
vulnerabilidade externa e para amealhar cerca de US$ 380 bilhões de reservas
internacionais, em contraste com os US$ 38 bilhões que o país tinha ao final de
2002. Pagou-se a dívida externa e nos livramos do FMI. Ao mesmo tempo, fortaleceu-se
o Mercosul, ampliou-se a integração regional, com a Unasul e a CELAC,
articulou-se os BRICs e os interesses dos países em desenvolvimento na OMC.
Hoje, o Brasil é um ator internacional de primeira linha, voz ativa que se faz
respeitada em todos os foros mundiais.
Assim, o círculo vicioso anterior de aumento da fragilidade
econômica e diminuição do protagonismo internacional foi substituído por um
círculo virtuoso de fortalecimento econômico-social e incremento da projeção de
nossos interesses no exterior.
Mas os planos das candidaturas Marina/Aécio (são
intercambiáveis) são voltar ao status quo ante.
Desse modo, investe-se contra o Mercosul, em razão de seu
suposto “imobilismo”. Embora o plano da candidatura Marina reconheça que o
comércio intrarregional cresceu muito e que tem a vantagem de estar concentrado
em produtos industrializados, ele reitera a crítica desinformada que de que o
Mercosul, com sua união aduaneira, impede uma maior participação do Brasil nos
fluxos internacionais de comércio. Quanto a essa “tese”, basta dar uma simples
aferida na comparação do crescimento das nossas exportações, vis a vis o
aumento das exportações mundiais. Entre 2003 e 2013, as primeiras cresceram
cerca de 300%, ao passo que as segundas limitaram seu aumento a 180%.
Além de errar quanto ao imobilismo, o plano também erra ao
atribuí-lo exclusivamente à Argentina, nosso principal parceiro do Mercosul, e
ao propor a extinção da negociação em conjunto, já que as regras do bloco assim
o permitiriam.
Na realidade, até bem pouco tempo a nossa indústria tinha
grandes reservas e cautelas quanto a um acordo de livre comércio com, por
exemplo, a União Europeia, dada à assimetria entre a economia do Brasil e a de
países como a da Alemanha, por exemplo. Só muito recentemente, os setores mais
internacionalizados dessa indústria se mostraram mais abertos a um acordo desse
tipo. Além isso, o nosso agronegócio quer uma abertura bem maior do mercado
agrícola europeu, protegido por uma montanha de subsídios e de barreiras
tarifárias e não-tarifárias, aos nossos competitivos produtos. Jogar a culpa na
Argentina é fácil, mas equivocado.
Não basta querer fazer livre comércio. É necessário que o
acordo resultante seja bom para nossos interesses. É preferível não fazer acordo
que fazer um acordo ruim.
Há países que têm estratégia diferente. O México, por
exemplo. Esse país celebrou mais de 30 acordos de livre comércio, inclusive com
os EUA e Canadá (NAFTA) e a União Europeia, com resultados muito ruins. Além do
óbvio aumento da dependência do México em relação aos EUA, o livre-cambismo
quimérico conduziu também a um crescimento econômico bem mais baixo que o do
Brasil e a um aumento da pobreza. Nos primeiros 10 anos deste século, o PIB per
capita (PPP) do México cresceu apenas 12%, ao passo que o do Brasil cresceu
28%. Hoje em dia, aquele país tem 51% da sua população abaixo da linha da
pobreza, enquanto que o Brasil conseguiu reduzir essa porcentagem para 15,9%.
Portanto, percebe-se que o ativismo comercial ingênuo do México
provocou imobilismo econômico e regressão social, ao passo que o suposto
imobilismo comercial do Brasil e do Mercosul produziu maior crescimento
econômico e substanciais progressos sociais. Quem fez a melhor aposta
estratégica? Não adianta nada ingressar “nas cadeias produtivas globais”, como
deseja o plano, na condição de maquilador e produtor de insumos básicos para
agregação de valor em outros países. Não adianta nada subir no “bonde da
História”, como o plano propõe, se o vagão a nós proposto for o da segunda
classe.
Quanto à necessidade da negociação conjunta no Mercosul, ela
não está simplesmente numa mera resolução do Conselho de Ministros de Relações
Exteriores, “passível de pronta revogação”, como diz o plano, mas no artigo 1º
do Tratado de Assunção, o qual estipula, entre outras coisas, que Mercado Comum
implica “o estabelecimento de uma tarifa externa comum e a adoção de uma
política comercial comum em relação a terceiros Estados ou agrupamentos de
Estados e a coordenação de posições em foros econômico-comerciais regionais e
internacionais”.
Pode-se, é claro, estabelecer diferentes velocidades de
desoneração tarifária e tratamento diferenciado na celebração de acordos, como
se fez, muitas vezes, na assinatura de acordos intrarregionais e nos acordos da
OMC, mas não se pode negociar separadamente, como o plano propõe. Isso seria,
na prática, o fim da união aduaneira. Seria, na realidade, o fim do Mercosul.
No fundo, a proposta é essa mesmo: transformar o Mercosul em mera área de livre
comércio. Aécio o disse claramente. A candidatura Marina o afirma nas
entrelinhas, como de hábito.
Esse é o “regionalismo aberto” que os conservadores querem.
Sonham com acordos de livre comércio com os países que “importam”, os EUA e os
países europeus, como forma de retomar o crescimento e ingressar na
“globalização”. Essa estratégia não deu certo no passado e não dará certo
agora.
Ressalte-se que esses acordos não contêm apenas propostas de
desoneração tarifária estrito senso. Na realidade, eles contêm também cláusulas
relativas à propriedade intelectual, que podem comprometer nosso
desenvolvimento tecnológico, cláusulas relativas à proteção dos investimentos
externos, que podem impedir ou dificultar estratégias relativamente autônomas
de desenvolvimento, dispositivos para abertura das compras governamentais,
instrumento poderoso de dinamização da produção doméstica, e cláusulas
relacionadas aos serviços, inclusive aos serviços financeiros, as quais podem
contribuir para uma maior desregulamentação desse setor crucial. O plano da
candidatura Marina parece desconhecer todas essas questões relevantes.
Mas a coisa não para por aí. Quanto aos BRICs, grupo
fundamental para os interesses estratégicos do Brasil, o plano, embora
reconheça a sua importância para um mundo multipolar, adverte que “não podemos,
todavia, desconsiderar as diferenças nas agendas econômica, política, cultural
e ambiental dos Brics, assim como na pauta de direitos humanos e liberdades
civis de cada um dos países do bloco”.
Ora, para bom entendedor, meia palavra basta. O que se
propõe aqui é um relativo afastamento do Brasil dos BRICs, em razão das
“diferenças de agenda”, principalmente no campo ambiental e dos direitos
humanos, justamente no momento em que esse grupo se consolida e se apresenta como
alternativa aos antigos centros de poder mundiais. Isso é música para os
interesses hegemônicos das grandes potências tradicionais.
A candidatura Marina parece querer aderir, assim, à política
de indignação seletiva usada pelos EUA e aliados para condenar países que não
são considerados “amistosos” e para legitimar a sua dominação geopolítica. O
plano deixa isso claro, nas entrelinhas, quando afirma que:
“Se essas preocupações (preocupações quanto aos valores da
democracia e dos direitos humanos) devem orientar posicionamento do Brasil
diante do que ocorre na Crimeia, na Síria e nos diferentes casos e temas
submetidos à atenção do Conselho de Segurança, do Conselho de Direitos Humanos
e dos fóruns sociais e ambientais das Nações Unidas, são igualmente relevantes
para as relações com nossos vizinhos, até porque refletem uma experiência de
amadurecimento democrático pela qual também passou a maior parte dos países
latino-americanos.”
Obviamente, a menção à Crimeia e à Síria não é aleatória. O
que se propõe é o alinhamento do Brasil aos interesses geopolíticos e
geoestratégicos do EUA e aliados, sob a desculpa da defesa dos valores da
democracia e dos direitos humanos. Nesse contexto, faz todo sentido a
declaração beligerante da candidata sobre o “chavismo” que tomou conta do
Brasil”. Resta ver que países da América do Sul a política externa da
candidatura gostaria de condenar, com base no alinhamento a esses interesses.
Venezuela? Cuba? Bolívia?
Provavelmente, essa seria a base política para o que o plano
chama de diálogo maduro, equilibrado e propositivo com Washington, que não
dramatize diferenças naturais entre parceiros com interesses econômicos e
políticos reconhecidamente amplos.
Diga-se de passagem, os governos do PT, ao contrário do que
dizem os críticos desinformados, sempre procuraram manter uma relação desse
tipo com os EUA. Em 2003, o Brasil propôs, justamente para sanar o impasse em
torno da Alca ampla e impositiva, uma Alca flexível e à la carte, com cada país
e bloco se inserindo nos acordos, conforme as suas possibilidades e
potencialidades. Os EUA recusaram, preferindo impor a negociação em bloco para
todo o hemisfério e com todas as cláusulas extracomércio.
Agora, a presidenta Dilma ia ser recebida em Washington,
pela primeira vez na História, com honras de Chefe de Estado, justamente para
tentar colocar as relações bilaterais Brasil/EUA num estágio mais propositivo e
respeitoso. No entanto, foi surpreendida com o profundo desrespeito da
espionagem contra o governo, empresas e cidadãos do país. O texto da
candidatura não menciona esses e outros fatos, preferindo construir, nas
entrelinhas, o falso discurso de que tais relações não se aprofundam em razão
de uma teimosia ideológica do Brasil.
A bem da verdade, o plano, além de não mencionar alguns
fatos importantes, distorce outros.
Por exemplo, o plano insinua que, daqui para frente os
países emergentes não serão mais o polo dinâmico da geoeconomia mundial, o que
aconselharia a mencionada da volta da diplomacia brasileira ao seu “leito
natural”.
Pois bem, a OMC não concorda com isso. O último relatório
dessa organização sobre comércio mundial, de 2013, contém simulações
(precárias, como quaisquer simulações), as quais indicam que as exportações dos
países em desenvolvimento tendem a crescer entre duas a três vezes mais que as
exportações dos países desenvolvidos até 2030, num cenário “não-protecionista”.
A nova etapa da crise mundial, que começa a afetar também os países em
desenvolvimento, não parece ter modificado a tendência estrutural de um maior
dinamismo dos países emergentes.
Para o Brasil, que tem grandes vantagens comparativas na
produção de alimentos, cuja demanda não arrefece; na produção de energias
alternativas, um setor que tende a crescer muito; no setor de hidrocarbonetos,
cujos preços tendem a permanecer altos, mesmo com o shale oil; em
biotecnologia, papel e celulose e vários outros, essa tendência mantém aberta
uma “janela de oportunidades” para a promoção do aumento da nossa
competitividade no setor industrial e de serviços e para a consolidação de um
novo ciclo de crescimento.
Dessa forma, o Brasil poderá continuar a aproveitar as suas
grandes vantagens comparativas nessas áreas e persistir, exitosamente, em sua
ênfase na integração regional, na cooperação Sul-Sul e nas parcerias
estratégicas com outros países emergentes e em desenvolvimento. As grandes
tendências geoeconômicas mundiais assim o recomendam.
Por conseguinte, as maiores ameaças à nova e exitosa
política externa parecem provir não de mudanças estruturais significativas na
geoeconomia e no cenário internacional, como o plano insinua, mas sim da
conjuntura política interna, como a apresentada pela candidatura Marina.
O plano de Marina, no campo interno, parece querer desistir
da política monetária pública (autonomia do Banco Central), e também dos
empregos e salários. Parece também desistir do Pré-Sal e da consequente
alavancagem do nosso desenvolvimento, da nossa Educação, e da nossa Saúde.
Insinua, nas entrelinhas, um questionamento do desenvolvimento sustentável que
parece desistir de um crescimento mais acelerado.
No plano externo, parece querer desistir do Mercosul como
mercado comum, dos BRICs e da utilização da política externa como real
mecanismo para o nosso desenvolvimento, preferindo repetir a aposta fracassada
em apressados acordos de livre comércio com as potências tradicionais. No
fundo, é uma desistência da soberania, em nome de um internacionalismo acrítico
e de um humanismo planetário.
Assim sendo, trata-se de uma poderosa receita para se
desistir do Brasil.
* Marcelo Zero é sociólogo e especialista em relações
internacionais.
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