Por Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa:
A imprensa brasileira, vista como instituição representada
pelas grandes empresas de comunicação que controlam a maior parte da audiência,
atuou durante a disputa eleitoral como um organismo coeso, empenhado em levar a
Brasília um grupo político mais afinado com seus credos. Perdeu a eleição, mas
considera que o grande número de votos na chapa da oposição também é seu
patrimônio. Portanto, acha-se no direito de ditar parâmetros para o segundo
mandato da presidente Dilma Rousseff.
Depois de estimular uma ação rápida do PMDB – braço direito
do governo em termos metafóricos e sob o ponto de vista ideológico –, para
neutralizar o projeto de reforma política por meio de plebiscito, agora a mídia
tradicional tenta impedir também que se produza um referendo popular para
aprovar o que vier a ser apresentado pelo Congresso como proposta de mudança no
sistema parlamentar.
Os congressistas que desejam reformar a política são
minoria, o PMDB certamente não representa qualquer desejo de mudança e os
jornais não querem plebiscito nem referendo. A imprensa bate bumbo, mas age
abertamente contra qualquer tentativa de democratizar o sistema decisório.
Não interessa aos controladores da mídia qualquer avanço
para além do sistema corporativista criado pela Constituinte de 1988, no qual
se construiu um arcabouço de poder imune a interferências externas. O povo é
uma dessas externalidades, e os períodos eleitorais costumam produzir tensões
extremas porque, numa campanha, cresce o risco de os eleitores acreditarem que
podem interferir no campo do poder político.
Reduzida a intensidade do embate, com alguns aloprados ainda
gritando nas redes sociais por impeachment e golpe militar, é possível observar
como a mídia se recompõe rapidamente para tentar recuperar o mínimo decoro, sem
o qual suas ações perdem eficácia. Na quarta-feira (29/10), por exemplo, O
Globo recoloca na pauta o caso do vazamento de uma suposta declaração do
doleiro Alberto Youssef, que foi intensamente explorada na véspera da eleição
em segundo turno (ver aqui). A acusação contra a presidente Dilma Rousseff e o
ex-presidente Lula da Silva virou de repente apenas um suposto “palpite” do
denunciante.
O eco das palavras
No futuro, cientistas políticos haverão de mergulhar nos
arquivos da antiga e decadente imprensa das primeiras décadas do século 21, e
tentarão entender como o tom do conteúdo jornalístico pode mudar tão
radicalmente em tão poucos dias. Como na canção de Chico Buarque,
escafandristas tentarão decifrar o eco de antigas palavras que mudam de sentido
conforme o contexto a que se referem. Na véspera da eleição, tentava-se impor
ao imaginário coletivo um valor absoluto para a palavra “mudança”. Terminada a
eleição, “mudança” passa a ser um palavrão.
Depois de protagonizar um dos momentos mais deletérios da
história da República, os principais veículos de comunicação do país pretendem
que a sociedade os leve a sério. Um ou outro colunista, ainda desavisado sobre
a necessidade de recuperar o que for possível de credibilidade, deixa escapar
expressões do discurso de baixo calão que contribuiu para a radicalização da
disputa eleitoral. Mas o tom geral da retórica jornalística agora é o da
contenção.
É preciso mudar os hábitos da política, mas também não vamos
exagerar com essa mania de consultar o povo sobre questões importantes, diz o
subtexto dos jornais. Pode-se questionar com argumentos razoáveis a efetividade
de recursos como o plebiscito para a tomada de decisão em questões complexas
como as garantias da democracia representativa. Pode-se também esgrimir ponderações
aceitáveis contra a participação direta da população em decisões que envolvem
saberes especializados. Mas não é isso que está em pauta no discurso pós
eleitoral da mídia.
O que está em jogo é o fato de que as forças mais
conservadoras do campo político têm ojeriza a tudo que cheira a povo – e a
imprensa hegemônica, agente e regente do campo reacionário, compartilha dessa
rejeição.
Plebiscito, referendo, conselhos populares, sistemas de
regulamentação e controle – tudo isso ameaça o poder sequestrado pelas
quadrilhas da política, com as quais a imprensa compactua.
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