Diante da crise na
Europa, a historiadora portuguesa só vê saída na democracia direta
por Alisson Avila — publicado 08/01/2016 23h56
Alexandre Azevedo/ Sabado
"O problema
aqui não é falta de consciência da situação, mas falta de organização"
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A historiadora portuguesa Raquel Varela ocupou o centro das
polêmicas em seu país após lançar no primeiro semestre um libelo contra a
austeridade e a forma tradicional de se fazer política denominado Para
Onde Vai Portugal. No livro e na entrevista a seguir, Varela descreve uma
realidade que atravessa fronteiras: a destruição do Estado de Bem-Estar Social na Europa e o
aumento brutal da desigualdade, uma marca do início do século XXI. “A diferença
entre um rico e um pobre europeus em 1945 era de 1 para 12. Hoje é de 1 para
530.” O grande desafio, afirma, é reconectar os trabalhadores com a política e
isso só seria possível por meio da adoção de uma democracia direta. “O modelo de eleições a cada
quatro anos não é mais suficiente. Os cidadãos precisam ter poder de fato.”
CartaCapital: Um dos aspectos interessantes de seu livro é a análise de que
os atuais governos liberais, ou voltados ao mercado, na União Europeia mantêm
um Estado mais inchado do que nunca. Poderia explicar?
Raquel Varela: O Estado controla a economia por meio da dívida pública. Vivemos um modelo no qual os
trabalhadores pagam ao Estado, que por sua vez entrega o dinheiro ao setor
privado por meio, entre outros, das Parcerias Público-Privadas. Por conta da
intervenção da Troika, Portugal teve a sua maior no setor
bancário, além de gerar uma desregulamentação do trabalho pela flexibilização
da mão de obra. Tudo isso é articulado pelo Estado, sem ter como objetivo a
manutenção do pacto social do pós-Guerra. O modelo que fundamenta a
social-democracia se esvaiu. A tendência em Portugal e na Europa é de alta
concentração da riqueza. Em 1945, a diferença entre um rico e um pobre, ou um
trabalhador manual qualificado na Europa, era de 1 para 12. Em 1980, subiu de 1
para 82. E hoje é de 1 para 530. A União Europeia é uma corporação de
acumulação de capitais. E a acumulação é incompatível com a manutenção de
serviços públicos de qualidade, por causa da queda tendencial da taxa de lucro.
Esse foco tem como consequência a destruição do Estado de Bem-Estar Social. O
que vemos em Portugal em particular e em outros países é na verdade a ascensão
de uma assistência social, com a educação e a saúde públicas focadas cada vez
mais nos pobres e desempregados e não em toda a sociedade.
CC: Os partidos na Europa ou em Portugal têm oferecido caminhos concretos de
mudança para salvar o Estado de Bem-Estar Social gradualmente sucateado?
RV: Em Portugal, não. Nem mesmo à esquerda, ao menos no que diz
respeito aos partidos com maior representação. Dizem ser preciso acabar com a
austeridade, mas não dizem como. Isso acontece porque os indivíduos, e os partidos,
associam a melhora das condições de vida a partir dos anos 1990 à União
Europeia, quando na verdade ela deveu-se, sobretudo, à redução dos preços dos
bens de consumo a partir da entrada da China no mercado mundial. Essa
facilitação do consumo abriu espaço para grandes endividamentos e a disparada
dos preços dos imóveis. O projeto da União Europeia teve muito mais a ver com a
“financeirização” do consumo dos trabalhadores do que com uma dádiva que nos
foi dada. Isso não é posto em causa por nenhum partido com alguma influência de
massas.
CC: Quem ou quais seriam os potenciais agentes ou instituições
viabilizadoras ou promotoras dessa mudança?
RV: É importante lembrar que a sociedade não é dirigida por quem sabe e
deve, e sim por quem se organiza politicamente. Mas com os partidos que temos
não vamos a lado nenhum. Ou melhor, vamos: rumo ao declínio. Talvez seja
preciso uma nova geração, diferente dessa que nasceu sob o pacto social
europeu, para voltarmos a ter dirigentes que mereçam o nosso respeito e
confiança. Os atuais olham para o pacto social do pós-Guerra, diretamente
associado a uma social-democracia sem nada de novo a oferecer, como uma viúva
vítima de violência doméstica no funeral do marido: ela chora, nem sabe por
quê.
CC: Seu livro ressalta a importância da criatividade, da cidadania e da
organização coletiva. Como isso se aplicaria ao Brasil?
RV: Os partidos políticos são fundamentais para um diálogo estratégico e um
pensamento teórico. As classes dominantes estão muito mais bem organizadas do
que os trabalhadores e temos de dar respostas a esses, mais fragmentados do que
nunca, por meio da política. No caso do Brasil, o problema é outro. Os partidos
com uma militância engajada, despojada, dedicada aos trabalhadores, são muito
minoritários. E o PT transformou-se em um partido de gestão do Estado, do seu
aparelho. Há uma fragilização e o grande desafio da política como um todo é
buscar os desiludidos, os desmoralizado. Como os partidos vão fazer para as
ideias emancipatórias voltarem a ter força social? É um desafio imenso, até
porque é preciso construir pontes com os trabalhadores organizados.
CC: E no caso da Europa?
RV: O problema aqui não é falta de consciência da situação, mas falta de
organização. Quem vive do trabalho está profundamente atomizado, disperso. A
retomada dessa consciência se dará por meio da democracia direta, e não
representativa. Não é só decidir quem vai decidir. É decidir de fato. Os
cidadãos têm de encontrar mecanismos de decisão nos seus locais de trabalho,
hospitais e escolas que frequentam. O modelo de eleições a cada quatro anos, ou
delegados sindicais a cada dois anos, não é mais suficiente. O desafio do
século XXI é fazer da democracia representativa uma democracia direta, na qual
os indivíduos têm o poder real e não de forma meramente ilustrativa.
*Entrevista publicada originalmente na edição 879 de CartaCapital, com o
título Todo poder, real, aos cidadãos
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