Professor de Ciência Política da UFF e presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o sociólogo Jessé Souza afirma que o país enfrenta uma tentativa de golpe jurídico e midiático. Em entrevista ao Portal Vermelho, ele avalia que a 24ª fase da Operação Lava Jato explicitou a “seletividade” com que a corrupção é tratada no Brasil. Para Souza, a mídia conservadora atua como partido político e manipula o tema para encobrir a “rapinagem econômica” da elite.
Por Joana Rozowykwiat
Na última sexta-feira (4), a Polícia Federal, a mando do juiz Sérgio Moro, cercou a casa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o conduziu coercitivamente para depor no aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Jessé Souza, 55 anos, surpreendeu-se. Para ele, houve “abuso jurídico” na ação, que tem sido criticada por juristas de todas as correntes políticas.
Mas não só isso. A operação deixou claro que a bandeira do combate à corrupção só está sendo erguida contra alguns e não atinge os partidos políticos da elite, avalia. Segundo ele, a mídia brasileira como é hoje tem sido o principal entrave à democracia e atua agora para difundir o discurso instrumental da moralidade. “A mídia compra, legitima e propaga esse discurso. No fundo, é o partido das elites no Brasil”, critica.
De acordo com ele, setores jurídicos e policiais se colocam, de forma autoproclamada, como responsáveis por uma higiene moral do país. “É uma ideia fascista. Isso nunca terminou bem em lugar nenhum”, aponta.
O professor defende que um debate sério sobre corrupção teria que girar em torno de um Reforma Polícia. “A questão mais importante sobre a corrupção é essa relação entre economia e política, é como o poderio econômico compra a política para os seus próprios interesses. E isso é posto de lado, ninguém discute isso”, lamenta.
Souza ressalta que, no fundo, está em jogo uma disputa antiga de projeto. A ofensiva da direita, que faz uso dessa “corrupção seletiva”, teria como objetivo a retirada de direitos dos trabalhadores e a apropriação privada das riquezas brasileiras. “Isso aconteceu sempre e, historicamente, se repete sobre outras formas. Antes era com os militares, agora, com os juízes”, diz.
Nesse sentido, a desestabilização do governo e do PT e a pauta conservadora do Congresso, que atenta contra o patrimônio nacional, seriam duas faces da mesma moeda. “Esse é o único projeto político da direita no Brasil há cem anos: o entreguismo”, conclui.
Jessé Souza é graduado em Direito, tem mestrado em Sociologia pela UnB, doutorado na Alemanha e pós-doutorado em Filosofia e Psicanálise na New School for Social Research, de Nova York. É, também, livre docente em sociologia pela Universität Flensburg, da Alemanha, e autor ou organizador de mais de vinte livros, incluindo o recentemente lançado A tolice da inteligência brasileira. Confira abaixo a íntegra da entrevista.
Portal Vermelho: Como o senhor avaliou a 24ª fase da Operação Lava Jato e os acontecimentos da última sexta-feira?
Jessé Souza: Confesso que achei surpreendente. E existem dois fatos mais importantes aí. Primeiro, o abuso jurídico, que já está sendo notado inclusive pelos juízes verdadeiramente liberais, como Marco Aurélio Mello. Não precisava, por exemplo, uma condução coercitiva, ela sequer se punha nesse caso. Quer dizer, é mais um atropelamento de procedimentos legais. As pessoas confundem, normalmente, procedimentos legais com bobagens. E eles são exatamente o contrário. Os procedimentos legais têm a ver com a universalização de critérios. Isso é extremamente importante. O Direito só se torna autônomo quando tem critérios próprios dele e, não, a esfera política invadindo a esfera jurídica.
E, de outro lado, isso mostra o quê? Por que se está invadindo a esfera jurídica e desrespeitando as garantias legais de alguns partidos, de alguns políticos, e de outros, não? Existem políticos de partidos da elite que podem ser denunciados trezentas vezes nessas tais delações premiadas, que não acontece nada com eles. Quer dizer, as “instâncias competentes” cuidam para que isso não aconteça. E a imprensa fica quieta nesses casos.
Como definiria esse cenário?
Na minha opinião, você tem uma tentativa de golpe, que seria, ao mesmo tempo, midiático e jurídico. A mídia já criou uma onda de moralismo, que pega setores da classe média e que vão se articular também com aparelhos de Estado – tanto jurídicos como policiais –, que querem a chance de serem agora vistos pela população como encarregados – autoproclamados – por uma higiene moral do país. Isso é uma ideia fascista. Isso nunca terminou bem em lugar nenhum. Quando você imagina que você é perfeito, o único virtuoso e os outros não.
A mídia compra, legitima e propaga esse discurso, tendo interesses partidários aí. A mídia, no fundo, é o partido das elites no Brasil, desde Getúlio Vargas. E ela se associa com setores específicos para conseguir seus fins, que são políticos. E o fim político desse golpe e da própria atuação da mídia fica claro na seletividade. Essa operação deixou essa seletividade ainda mais à mostra.
O discurso da corrupção tem sido instrumentalizado?
Eu acho que ele tem sido sempre instrumentalizado. Porque o debate sóbrio sobre a corrupção tem que ser sempre um debate sobre uma Reforma Política. Porque, obviamente, o que acontece com um partido tem que também acontecer com o outro. E aí são as relações entre economia e política, que são relações sempre muito encobertas e invisíveis. E isso se torna ainda mais invisível no contexto do novo tipo de capitalismo, com paraíso fiscal, lavagem de dinheiro fora. Quer dizer, você acompanhar isso fica cada vez mais difícil.
E todos os partidos estão envolvidos em coisas assim. Por exemplo, o que está acontecendo com as estatais no Brasil, já acontecia há décadas. Mas só interessa o que aconteceu agora. Quer dizer, outra seletividade.
A questão mais importante sobre a corrupção é essa relação entre economia e política, sobre como o poderio econômico compra a política para os seus próprios interesses. E isso é posto de lado, ninguém discute isso, o que mostra mais uma vez a partidarização, a seletividade e o uso instrumental, manipulativo e oportunista do uso da corrupção.
O que está por trás dessa manipulação?
No fundo, como a elite – essa meia dúzia de pessoas que mandam no país – vai legitimar o seu poder? Essa é a questão. Como grandes bancos, grandes corporações vão dizer ao povo que o que elas querem mesmo é o superlucro, o superjuro, não pagar imposto? Ou seja, é uma drenagem dos recursos de toda a sociedade para o bolso de uma meia dúzia. Como legitimar isso?
No Brasil, isso sempre foi legitimado por esse tema da corrupção seletiva, que só atinge partidos de esquerda ou que tenham vinculação com interesses populares. Em todos os casos aconteceu isso. Aconteceu com Getúlio Vargas, com Jango, está acontecendo com Lula e Dilma. Quer dizer, a manipulação do tema da corrupção é a única bandeira dos conservadores no Brasil.
Por conta disso, eles têm que se aliar, sempre, com órgãos e setores de classe para quem o tema do moralismo seletivo seja interessante. Aí você vai encontrar inclusive setores do Estado, que querem ganhar mais privilégios ainda, mais poder dentro do Estado, sendo sensíveis a esse tipo de discurso, por interesse corporativo.
A que setores do Estado o senhor se refere aqui?
Estou me referindo a setores jurídicos e policiais, no aparelho de Estado, que têm interesse, para aumentar seu próprio poder corporativo, no discurso da corrupção seletiva. O mais importante é dizer: o que se tenta não é um combate à corrupção, porque se fosse isso o tema seria uma Reforma Política que abrangesse a todos. O tema a é corrupção seletiva, para pegar alguns políticos e alguns partidos, a velha história no Brasil.
Que papel a classe média tem tido nesse processo?
É classe média é uma classe heterogênea. Diz-se que a classe média lê mais, compreende mais, e que, por conta disso, teria mais consciência que as outras classes. Bobagem maior que esta é impossível. Porque o tipo de classe média que apoia esse tipo de iniciativa é uma classe média que lê muito pouco, reflete pouco, a não ser pela dose de veneno midiático que recebe todos os dias, que é um veneno manipulativo.
O principal obstáculo para uma verdadeira democracia no Brasil é a existência de uma imprensa que posa de neutra, mas tem função de partido político das elites. É essa imprensa que vai cevando setores mais conservadores da classe média.
Só que a classe média não é só isso. A classe média também tem setores com mais capital cultural e crítico que essa outra. São setores minoritários, mas que eu acho que, agora, como a seletividade do processo está ficando mais clara, tendem a sair desse discurso. Acredito que essa ofensiva conservadora no Brasil pode ter outros desdobramentos porque está ficando muito óbvio para que ela serve.
Muitos analistas e políticos têm associado essa tentativa de desestabilizar o governo e o PT a uma pauta, digamos, antinacional, que tramita no Congresso e inclui, por exemplo, iniciativas para mudar as regras de exploração do pré-sal e alterar o estatuto das estatais. O senhor concorda com essa avaliação?
Concordo em gênero, número e grau. Qualquer pessoa em que, depois da lavagem midiática, tenha sobrado ainda dois neurônios para conversar um com o outro não vai ter dúvidas disso. A elite do Brasil sempre teve, desde Getúlio Vargas, um só programa, que se divide em duas coisas: tirar direitos da classe trabalhadora – a tal flexibilização – e a apropriação privada da riqueza brasileira, seja do ferro, seja do óleo, como agora, com a Petrobras. É sempre a rapina econômica.
A elite, no Brasil, o projeto dela é a rapinagem econômica da riqueza que é de todos. E, para legitimar a rapinagem, ela vai usar o seu partido, a imprensa conservadora, que é a dominante entre nós. Quer dizer, no fundo, a corrupção seletiva serve para encobrir a rapina, pegar o petróleo que é de todos e dar para os americanos um pouquinho e encher o bolso de meia dúzia aqui dentro. Esse é o único projeto político da direita no Brasil há cem anos: o entreguismo.
Que caminho o senhor enxerga para enfrentar essa ofensiva?
Acho que a saída é a luta política, uma forma de conscientização. A grande esperança que o povo brasileiro e setores progressistas podem ter é que a direita, no Brasil é burra. Ela é autoritária, ela é violenta, mas é burra. O que fizeram na sexta mostra isso.
Essa é a hora de apelar para a inteligência das pessoas que foram feitas de tolas com esse tipo de discurso, [que se apresenta] como se fosse uma limpeza, uma luta real contra a corrupção, porque isso tudo é lorota, fica óbvio agora. É uma corrupção seletiva, para acabar com as conquistas da classe trabalhadora. Isso aconteceu sempre e, historicamente, se repete sobre outras formas. Antes era com os militares, agora, com os juízes.
Alguns colunistas da grande imprensa têm falado que, com as convocações às ruas, o PT tenta incitar confrontos...
Isso também mostra a luta, que é sempre uma ação e uma reação. Você tem que criminalizar tudo que for da esquerda. E tudo que é da direita você tem que dizer que é um ganho moral, etc. É uma tentativa de fazer as pessoas de imbecis. É preciso mostrar isso.
Do Portal Vermelho
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