Por Olgamir Amancia Ferreira
O Projeto Escola sem Partido apresentado no Congresso Nacional pelo deputado Izalci Lucas- PSDB/DF, assim como similares encaminhados em diferentes assembleias estaduais e municipais, representa um ataque à educação, ao pluralismo de ideias e , principalmente à autonomia dos educadores. Usando o falso argumento da ideologização da educação, da partidarização da escola, objetiva amordaçar os professores, obstruir a construção dialógica e crítica do conhecimento. Busca impedir a escola de cumprir o seu papel constitucional de formação com vistas “ao pleno desenvolvimento da pessoa” e para “o exercício da cidadania” como prevê o artigo 205 da Constituição Federal/88.
O autor do projeto de lei(PL 867/2015) desconhece e/ou desconsidera que no processo educativo a aprendizagem ocorre como mediação entre sujeitos, baseada na troca de saberes, no diálogo, portanto o/a estudante não pode ser tratado como um incauto submetido a uma permanente “ audiência cativa”. Ao prever que se vede em sala de aula a “realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes” o projeto cerceia o debate, obstrui a atuação do/a educador/a e fere mais uma vez a constituição em seu artigo 206, que estabelece a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” como principio basilar para que seja ministrado o ensino no país.
Acusam a escola de partidarizar a educação ao trazer para a sua base curricular o debate acerca de questões sociais e políticas desconsiderando que este conjunto de conhecimentos compõe a base humanística que é parte da formação integral dos estudantes. Buscam descolar a escola do contexto onde ela está inserida, tratam-na como se fosse uma ilha. É fato que a escola não pode se constituir em espaço de doutrinação de qualquer ordem, entretanto, essa preocupação não poderá implicar em negar o debate acerca da realidade, das questões da vida cotidiana sob pena de subtrair dessa instituição o seu papel formador. Ao contrário, a escola tem a obrigação de fomentar o debate e assegurar que este ocorra na esteira de uma prática pedagógica emancipatória, de qualidade socialmente referenciada, prática sustentada no principio da laicidade do estado, fator determinante da garantia do pluralismo de ideias.
Laicidade é diferente de neutralidade. Ancorada no principio da laicidade a escola se consolida como espaço de formação de um sujeito integral, a escola se assume como espaço plural , como parte de uma sociedade diversa onde diferentes concepções de mundo se encontram e são confrontadas cotidianamente e nesse contexto cumpre o papel de fomentadora de uma visão crítica da realidade. A laicidade fundamento da pluralidade oportuniza que os conceitos e preconceitos possam ser refletidos, criticados, condição fundamental para a superação dos estereótipos e discriminações muitas vezes causas dos processos excludentes realizados pela e na escola.
Chama a atenção o fato de que os defensores da tese da “escola sem partido” se apresentem como porta-vozes da neutralidade da educação. Na verdade o que testemunhamos é uma construção ideológica que traduz, em essência, o sentido desse termo como falseamento da realidade. É isso, falseiam, negam o caráter ideológico de sua fala e acusam de ideológica a fala do outro. Cobram uma neutralidade da escola em relação a temas individuais, políticos e sociais, e se apresentam como assépticos, neutros, objetivados, por isso ocultam o lugar de onde falam.
Que tal nos perguntarmos quem são os sujeitos dessa proposição? Quais suas concepções de mundo, de sociedade? Ao construírem essa proposta deixaram de ser o que são, abdicaram de suas crenças, valores? Há que se pensar…
O meu lugar de fala é como professora que há 37 anos atua na esfera da educação pública (educação básica e superior). Que acompanha na condição militante a luta histórica dos/as educadores/as brasileiros/as, do movimento social organizado, em torno da defesa da educação publica, espaço de batalha aguerrida entre distintas concepções de educação. Grosso modo essas concepções respondem de um lado pelos que pretendem a educação elitista e excludente vigente desde o processo de colonização brasileira, quando se testemunhou o surgimento de uma escola que excluía mulheres, indígenas e negros/negras escravizados e de outro, os que defendem a educação como direito e que ao longo da história, por força da ação coletiva lançaram as bases para a construção de um projeto educacional emancipatório. Nesta concepção se inscrevem os lutadores/as incansáveis pela implantação de uma educação democrática, cujo conceito de democracia avançou da esfera da garantia do acesso para a democracia da gestão da escola e do sistema educacional, portanto, coautores do projeto educacional em vigor.
Nesse sentido, é certo afirmar que o projeto educacional em curso no país, ainda distante da qualidade pretendida, mas com grandes avanços especialmente na última década não é resultado da iniciativa deste ou daquele indivíduo ou grupo, é processo coletivo, histórico, múltiplo, plural. É resultado do debate acirrado entre diferentes e, muitas vezes, antagônicos sujeitos históricos, por isso mesmo legítimo. Ante essa realidade, é surpreendente que de repente pessoas que nunca estiveram nos fóruns de construção participativa da educação, como o ator Alexandre Frota e os líderes do Movimento Brasil Livre (MBL), se arvorem a condição de porta-vozes de um projeto educacional para o pais à revelia da luta histórica travada pela sociedade brasileira. Luta consolidada pelas entidades da educação, sejam as entidades estudantis e de trabalhadores/as, sejam as entidades de pesquisa educacional
Tais pessoas como qualquer cidadão ou cidadã podem pensar e propor questões sobre as politicas públicas. Vivemos em uma democracia, construída é verdade com muita luta, por isso tão cara para os brasileiros/as, entretanto, o que precisam compreender é que em democracias as proposições individuais ou de grupos precisam ser submetidas ao crivo da coletividade. Se assim agissem certamente teriam aprendido nos fóruns próprios, onde participam especialistas, professores/as, estudantes, funcionários de escola, pais e mãe, pessoas que vivenciam e refletem sobre a educação que essa verborragia em torno do chamado projeto da “escola sem partido” nada mais é que uma proposta dos setores conservadores, liderados pelos neopentecostais que não toleram a existência de negros, pobres, homossexuais, umbandistas enfim, a diversidade no ambiente da escola. Principalmente quando estes passam a ser reconhecidos como iguais e valorizados em suas diferenças. Descontrolam-se, como o fez Janaína Paschoal, ao testemunharem que as diferenças historicamente tratadas como menos valor são agora parte do currículo oficial, portanto, conteúdos de primeira categoria, retirados do gueto dos grupos marginalizados e tratados como riqueza constitutiva da diversidade brasileira.
Se assumissem o seu lugar de fala não precisariam falsear para a sociedade que o que os apavora é a construção nas escolas da negação da centralidade masculina, branca, heterossexual e elitista predominante na maior parte de nossa história. Não precisariam justificar porque precisam impedir o acesso das classes populares à educação básica e especialmente a educação superior de qualidade, assim como a desvalorização dos/as profissionais de educação, por meio do estancamento dos recursos, como o caso dos royalties do petróleo. A escola sem partido por eles desejada é a tradicional escola brasileira, elitista, reprodutora do status quo, naturalizadora do racismo, da homofobia, da misoginia e que por isso mesmo não questionaria a configuração do governo do presidente interino Michel Temer: masculino, branco e elitista e muito menos o golpe engendrado contra a primeira mulher eleita Presidenta do Brasil.
Há que se refletir sobre o quão neutro é o projeto da “escola sem partido”.
Olgamir Amancia é professora da UnB e vice-presidenta do PCdoB/DF
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