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Postagem: 10:30 08/07/2016

O que seria a tão falada, e pouco
explicada, ‘escola sem partido’? Basicamente, trata-se de uma falsa
dicotomia, pois não diz respeito a não partidarização das escolas, mas
sim à retirada do pensamento crítico, da problematização e da
possibilidade de se democratizar a escola, esse espaço de partilhas e
aprendizados ainda tão fechado, que precisa de abertura e diálogo.
A pauta que precisamos debater é a da qualidade da educação, e não
falácias ideológicas sobre a “não ideologização da escola”, algo que se
vê até mesmo em alguns diálogos sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
O Plano Nacional de Educação foi
aprovado há dois anos e, durante sua tramitação, uma das polêmicas
suscitadas foi acerca da promoção das equidades de gênero, raça/etnia,
regional, orientação sexual, que acabou excluída do texto do projeto.
Por consequência, isso influenciou a tramitação dos planos estaduais e
municipais, que também sucumbiram ao lobby conservador e refutaram
qualquer menção a gênero, por exemplo, difundindo a falsa tese da
aberração intitulada “ideologia de gênero”. Isso causou uma confusão
deliberada entre uma categoria teórica e uma pretensa ideologia.
Marivete Gesser, do Laboratório de Psicologia Escolar e Educacional da Universidade Federal de Santa Catarina,
explica que “gênero pode ser caracterizado como uma construção
discursiva sobre nascer com um corpo com genitália masculina ou
feminina” e, por meio de normas sobre masculinidade e feminilidade,
vamos nos construindo como sujeitos “generificados”. O preconceito vem
dos discursos que naturalizam os lugares sociais de homens e mulheres
como únicas representações, e segregam qualquer outra forma de
manifestação. Além disso, em pesquisa realizada com por estudantes do
ensino médio em Brasília, feita no âmbito do projeto Educação de
Qualidade (Inesc/Unicef), constatamos que uma das razões do abandono
escolar é a discriminação relativa ao público LGBTI. Razões mais do que suficientes para discutirmos gênero nas escolas.
Qual a ligação entre esses dois temas, ‘escola sem partido’ e
‘ideologia de gênero’, e momentos tão distintos? O que parece ter
diferentes motivações e origens resulta dos mesmos elementos: os
fundamentalismos conservadores que tentam passar às pessoas suas
ideologias e crenças. Afinal de contas, não são apenas os pensamentos
marxistas que são ideológicos, como tentam fazer crer os defensores da
“escola sem partido”. Sendo assim, o que significa ideologia então?
Um dos conceitos mais difundidos é o de Karl Marx em parceria com Friedrich Engels, na obra a Ideologia Alemã,
em que afirmam ser a ideologia uma consciência falsa da realidade,
importante para que determinada classe social exerça poder sobre a
outra, bem como a necessidade de a classe dominante fazer com que a
realidade seja vista a partir de seu enfoque.
O conceito, no entanto, sofreu inúmeras interpretações, como a de
Lênin para a ideologia socialista, como forma de definir o próprio
marxismo. Portanto, há ideologia nas diferentes formas de ver e conceber
o mundo. Não existe neutralidade. Quando defendem a ‘não
ideologização’, em nome dessa pretensa neutralidade, também estão
impregnados de ideologia. Os teóricos do projeto “escola sem partido”
advogam a neutralidade e se dizem não partidários. No entanto, suas
intenções são claras: a retroação dos avanços que tivemos nos últimos
tempos, especialmente com relação aos direitos humanos. Por exemplo,
quando dizem lutar contra a doutrinação, uma das situações apresentadas no site do
movimento da ‘escola sem partido’ é um seminário realizado pela
Comissão de Educação da Câmara dos Deputados sobre direitos LGBT e a
política de educação. Eles citam esse caso como uma afronta ao artigo 12
da Convenção Americana sobre Direitos humanos, afirmando que pais e
seus filhos têm que ter uma educação moral de acordo com suas
convicções. É uma deturpação do citado artigo, que diz respeito à
liberdade religiosa que deve ser respeitada individualmente. Além disso,
manipulam e fazem confusão deliberada com a discussão realizada no
seminário, que reafirmou a importância de se debater questões de gênero e
de sexualidade nas escolas, para que as diferenças não sejam
transformadas em desigualdades.
Em outro momento, dizem que os alunos (a quem chamam de ‘vítimas’)
acabam sofrendo de Síndrome de Estocolmo, se ligando emocionalmente a
seus algozes (‘professores doutrinadores’). Nesse caso, os estudantes se
recusariam a admitir que estão sendo manipulados por seus professores e
sairiam furiosos em suas defesas. Para exemplificar, citam momentos
identificados como “monstro totalitário arreganha os dentes” e chamam os estudantes de soldadinhos da guarda vermelha.
Em um dos livros desse movimento, é passada a noção de que o
professor não é um educador, separando assim o ato de ensinar (passar
conteúdos) e educar. O/A professor(a) deveria estar ali apenas para
passar conteúdo sem crítica, problematização ou contextualização, em um
ato mecânico. Paulo Freire é demonizado como o grande doutrinador –
justo ele, que construiu uma obra toda para combater doutrinações.
Esse movimento da ‘escola sem partido’ nasceu em 2004 e não gerou
muitas preocupações, porque parecia muito absurdo e coisa pequena. No
entanto, tem tomado corpo e crescido, na mesma toada de movimentos
fascistas tais como ‘revoltados online’, responsável por apresentar
recentemente a proposta da ‘escola sem partido’ ao ministro da Educação
do governo ilegítimo. Aliás, é bom dizer que foi a primeira audiência
concedida pela pasta da Educação nesta gestão ilegítima. E em vídeo, os
criadores da ‘escola sem partido’ e do ‘revoltados online’ explicam que
criaram tais coisas a partir de motivações pessoais. Ou seja, eles
tentam impingir ao país projeto com base em impressões e vivências
individuais.
A proposta foi apresentada em forma de projeto pela primeira vez no
Estado do Rio de Janeiro, pelo deputado Flávio Bolsonaro. A segunda vez
foi no Município do Rio de Janeiro, pelo vereador Carlos Bolsonaro –
ambos filhos do deputado federal Jair Bolsonaro. E tal proposta já se
espalhou por diversas câmaras municipais e assembleias legislativas. Em
âmbito nacional, o deputado Izalci (PSDB/DF) apresentou o PL 867/2015 à
Câmara Federal , que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação.
Dentre várias questões, o artigo 3º do referido projeto diz o seguinte: “Art.
3º. São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e
ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de
atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou
morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes.” O que
viola tais convicções provavelmente será julgado de acordo com o que e
com quem quiserem criminalizar. O projeto ainda levanta uma polêmica do
século XIX quando se discutia a dicotomia família e escola, o que
deveria estar superado no século XXI.
Há vários projetos tramitando apensados a esse, ainda mais perversos.
Um deles, do deputado Victório Galli, do PSC/MT, proíbe a distribuição
de livros didáticos que falem de diversidade sexual. E há ainda o
projeto de lei 1411/2015, do deputado Rogério Marinho PSDB/RN, cujo
relator é o mesmo deputado Izalci. Esse projeto tipifica o crime de
assédio ideológico, que, de acordo com o projeto, significa: “toda
prática que condicione o aluno a adotar determinado posicionamento
político, partidário, ideológico ou qualquer tipo de constrangimento
causado por outrem ao aluno por adotar posicionamento diverso do seu,
independente de quem seja o agente.” E diz ainda que o professor,
orientador, coordenador que o praticar dentro do estabelecimento de
ensino terá a pena acrescida de um terço. Ou seja, as opiniões fora da
escola, tais como nas redes sociais, poderão penalizar o profissional da
educação também.
O movimento criou recentemente uma ‘associação escola sem partido’
para ter uma entidade com a qual pudesse recorrer à Justiça em casos que
julgasse relevantes. E a primeira ação por eles promovida foi contra o
INEP, devido ao tema da redação do Enem de 2015, que tratava de
violência contra as mulheres, tema que julgaram doutrinador e
partidário. A violência contra as mulheres é reconhecida como grave
problema em diversos tratados internacionais de direitos humanos, como a
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra
as Mulheres (CEDAW), aprovada pela ONU em 1979 e outros que a seguiram.
No Brasil, a cada 4 minutos uma mulher dá entrada no SUS por ter
sofrido violência física, e 13 mulheres são assassinadas a cada dia -
uma a cada uma hora e 50 minutos. A violência está inclusive nas
próprias escolas, como demonstrou a iniciativa “Meu professor abusador”.
Há vários ovos de serpente chocando no momento em diversos locais,
sejam no âmbito dos legislativos municipais, estaduais, ou nacional, e
mesmo nos Executivos, e não temos garantias que o Judiciário irá barrar
tais aberrações. Portanto, nossa única arma é a manifestação, a nossa
presença nas ruas e a disseminação de informações a um público maior
possível, já que é na internet e em redes como whatsapp que esses grupos
tem angariado seguidores, muitos deles muito jovens. É preciso promover
debates que esclareçam essas situações que estão amadurecendo na
surdina, com pessoas que não nos representam, mas estão em cadeiras que
permitem tais movimentos.
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Fonte: INESC
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