Foto: Syvio Sirangelo/TRF4
A classe dominante brasileira não brinca de golpe. Ao longo da história todas as vezes nas quais ela sentiu necessidade de se desfazer de um governo ou de uma parte do poder de Estado para garantir a manutenção dos seus interesses econômicos e políticos fundamentais, ela o fez. E sempre que necessário também atacou com ferocidade os movimentos populares. No golpe em curso não é diferente.
A derrubada da presidenta Dilma, resultante de anos a fio de um processo de desestabilização política com fortes reflexos econômicos, associado à crise internacional do capitalismo e seus efeitos diretos sobre o Brasil, processo acompanhado por uma intensa campanha midiática de desmoralização avassaladora das principais lideranças da esquerda nacional, foi complementada pela dilaceração da principal fonte de financiamento do movimento sindical, de onde poderia vir uma reação mais imediata, articulada e massiva dos setores populares ao golpe.
Ao lado disso tudo, o governo golpista impôs ao país e aos trabalhadores o nefasto aprofundamento do neoliberalismo através do conjunto de reformas e medidas regressivas e antinacionais, compondo o pacote conhecido como “Ponte para o Futuro”, apresentado pelo PMDB quando Dilma ainda presidia o país e largamente apoiado pelo PSDB.
O golpe foi dado, portanto, para atender a antigas reivindicações dos velhos representantes do grande capital nacional em associação aos capitais externos para dilacerar as leis trabalhistas, terminar de dilapidar o pouco que restou de empresas e instituições sob o comando do Estado nacional através da privatização acelerada dos setores de energia e financiamento, bem como para garantir que o orçamento da União mantenha como principal gasto os pagamentos ao capital financeiro, uma média que tem se mantido na casa dos 45% ao longo dos anos.
Como se vê, trata-se, em essência, de intensificar no Brasil o nefasto neoliberalismo que havia sofrido revezes, mesmo que tímidos, durante o governo Lula e o primeiro governo Dilma. Elementos como o fim das privatizações e o constante crescimento no orçamento federal de serviços e programas de profundo alcance social e com algum grau de redistribuição de renda, pressionavam fortemente os interesses dessa gente.
Com a reafirmação da condenação de Lula pelo TRF-4, inclusive ampliando a sua pena de prisão para 12 anos, o clima de revolta na esquerda brasileira se intensificou e como sempre acontece nos momentos de aprofundamento da luta de classes, especialmente dos ataques da classe dominante sobre os interesses populares e aos partidos progressistas, surgem múltiplas ideias sobre a melhor maneira de resistir e, no nosso caso, buscar retomar o comando do governo do país, perdido com o golpe de 2016.
Se por um lado é natural que surjam diversas propostas, inclusive aquelas que apontam para a necessidade de uma “radicalização”, de um confronto aberto, direto e sem tréguas até a “vitória final”, é imprescindível que as forças políticas que combatem o golpe tenham muito claro algumas questões, sem o que, tendencialmente, ações de resistência se tornarão, na verdade, gasolina na fogueira do golpismo.
O maior problema hoje para o combate ao golpe chama-se correlação de forças. Ela está muito desfavorável para as forças progressistas que acumulam sucessivas derrotas desde 2014, imediatamente após a vitória de Dilma para um segundo mandato, uma vitória por pequena margem de votos em uma campanha presidencial de imensa dificuldade pois a força da oposição veio num crescente desde as chamadas jornadas de junho de 2013. A avalanche reacionária desaguou no impeachment da presidenta, efetivado em agosto de 2016.
Sua consolidação se deu em meio ao processo eleitoral municipal e os resultados foram desastrosos para o campo político que apoiou e participou dos governos Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016) e defendeu a presidenta até o fim, salvo honrosas exceções. Além de uma intensa derrota eleitoral nas principais cidades do país, cujas prefeituras foram assumidas por forças abertamente golpistas, a eleição de 2016 revelou a intensificação do absenteísmo eleitoral. Especialmente nos grandes centros urbanos o índice de comparecimento às urnas desabou em 2016.
O maior exemplo é São Paulo cujo prefeito eleito, no primeiro turno, “perdeu” para a o total de abstenção, votos brancos e nulos, que bateram na casa dos 35%! Para fechar a conta, o prefeito paulistano e diversos outros (as) prefeitos (as) foram eleitos (as) na onda da “antipolítica”, apresentando-se falsa e descaradamente como figuras sem ligações com a “política tradicional”, como empresários (as) de sucesso, gestores (as) competentes e por aí vai.
E tem a crise econômica, a grande recessão que atingiu a economia brasileira entre 2015 e 2017, destruindo milhões de empregos, jogando o desemprego em patamares dos anos 1990, com mais de 12 milhões de trabalhadores (as) na rua da amargura, fechamento de empresas, especialmente micros e pequenos empreendimentos, mas também afetando a grande produção industrial. A retração econômica desse período calou fundo no coração da massa trabalhadora e da classe média e a narrativa vitoriosa, amplamente difundida pela grande mídia oligopolista e golpista, foi a de que o baque econômico resultou do fracasso da política econômica de Lula e Dilma.
Para bem além da hipócrita campanha contra a corrupção, contra o petismo e setores da esquerda que governaram o país, calou – e segue calando – muito fundo no seio do povo trabalhador o efeito devastador da crise econômica. E deu base para as forças golpistas implementarem o conjunto de reformas regressivas sob a alegação de que elas eram fundamentais para resgatar o país do “desastre petista”, amplamente disseminada pela grande mídia e partidos golpistas.
Esses fenômenos são muito recentes, estão em desdobramento em “tempo real” e seguem causando profundo impacto sobre a massa popular e setores da classe média. O discurso de ódio contra a esquerda, em especial contra o petismo e contra Lula, segue elevado, ainda que a capacidade de mobilizar público para protestos pela direita tenha perdido muita força, como se pode ver nos atos convocados para comemorar a ratificação da condenação do ex presidente.
E aqui há que se conjugar as duas coisas: as reformas de Temer não têm efeito avassalador imediato, são medidas que tendem a ter impacto real e profundo no médio prazo, nos próximos anos. Aliada ao sentimento muito presente de que a crise toda é culpa de Lula/Dilma, associada à ideia de que o país esteve atolado em um profundo mar de lama moral cultivado pelo ex-presidente.
Se a essa altura da disputa essas constatações estiverem corretas, ao menos nas suas linhas gerais, em que patamar as forças progressistas estão hoje? Em profunda defensiva política. E se o estágio é de defensiva, quaisquer movimentos que impliquem em tentativas de radicalização, confronto aberto e direto com os golpistas, tende a resultar em intensificação do atual estado de exceção comandado pelo Judiciário e reforçar o discurso e ação política do aparato repressivo estatal contra os movimentos sociais, sindicatos e partidos progressistas. Então, parafraseando um grande revolucionário russo, “o que fazer”?
As grandes mudanças ocorridas no Brasil a favor dos (as) trabalhadores (as) – ainda que profundamente limitadas – se deram após longos períodos de governos autoritários e plenamente a serviço das classes dominantes. Movimentos mais avançados que destituíram ou derrotaram as forças conservadoras, como a Revolução de 1930 e a redemocratização do Brasil pós ditadura militar, foram vitoriosos após longo período de gestação.
Além disso, é preciso considerar com muita atenção que aqueles movimentos contaram com forte apoio das camadas médias urbanas que se descolaram do apoio aos regimes derrubados e embarcaram, por exemplo, na composição da Aliança Liberal getulista e na campanha pelas Diretas Já de 1984. Na contramão disso, as camadas médias aderiram ao processo de desestabilização de Getúlio na crise de 1954, ao golpe de 64 e ao golpe que derrubou Dilma. Especialmente nos grandes centros urbanos, servindo como tropa de choque e massa de manobra da classe dominante.
No presente cenário, com a neutralização da massa proletária que deu a Lula e Dilma enorme apoio eleitoral, com o já visível enfraquecimento da ação sindical – fenômeno que vem crescendo nos últimos anos e potencializado pela demolição das suas fontes de financiamento com o fim do imposto sindical – com a ainda elevadíssima rejeição à esquerda pela classe média urbana, que se expressa no ódio militante ou pela rejeição à política em vários setores sociais, acreditar que a esquerda terá um rápido retorno ao centro do poder de Estado é ilusão fenomenal. A tendência é termos um período longo de agudas lutas políticas, um processo mais prolongado de acumulação de forças.
Evidente que tendências podem ser revertidas por circunstâncias imprevisíveis – ninguém em sã consciência contava com aquela tentativa de derrubar Temer promovida pelo procurador Janot, através dos donos da JBS, por exemplo – mas não se faz análise política contando com “milagres”. Algo como crer que Lula será candidato e em torno dele um novo bloco de forças será composto e ele vencerá a eleição e a esquerda voltará em triunfo ao comando da nação.
Há que se constituir sim um novo bloco de forças de resistência, desenvolver a luta ininterrupta contra as forças golpistas apresentando ao povo e ao país uma nítida plataforma/programa mudancista e de recuperação do Brasil, dos direitos trabalhistas, etc., buscando avançar mais, plataforma ancorada na defesa sem trégua em um novo impulso industrial do Brasil, de potencialização das forças produtivas, reconquistando a soberania nacional e a democracia demolida pelo golpe. Mas isso não é simples e será preciso paciência, persistência, sagacidade e amplitude política.
O problema mais imediato para a montagem de um novo bloco, ou frente, em defesa do Brasil está relacionado ao enorme espaço que se abre, à esquerda e ao centro, da ausência de Lula na disputa eleitoral. Sem ele concorrendo, a tendência – de novo, tendência que pode ser revertida, mas é difícil de reverter – é a de os diversos partidos do campo democrático buscarem na eleição presidencial lançar seus próprios nomes no primeiro turno para uma eventual unidade no segundo, caso tenhamos um segundo turno.
Isso significa, objetivamente, praticamente um ano perdido para a composição real e efetiva de uma frente que congregue forças sociais, movimentos, partidos e personalidades em torno de um programa que galvanize corações e mentes da massa proletária e de setores da classe média que podem e devem ser resgatados para o campo democrático e popular.
Ainda que seja difícil, persistir é preciso. Assim como é preciso combinar o debate no campo das ideias com as lutas específicas dos movimentos sociais, das pautas sindicais das diversas categorias – fortemente pressionadas pela reforma trabalhista – denunciando sem trégua as ações do governo e campo golpista. Como em outros momentos da história brasileira, é necessário exercitar a dialética de “ampliar radicalizando e radicalizar ampliando”, levando em conta que ela só se efetiva tendo como eixo fundamental a “ampliação”.
Devemos persistir para buscar a maior unidade possível da esquerda mas não apenas isso. Ela precisa ser a espinha dorsal da retomada do poder de Estado, ser o polo aglutinador para a construção de um movimento muito mais amplo, inclusive buscando deslocar segmentos que se posicionaram a favor do golpe. E ir ao povo, falar com o povo, nas ruas, nas fábricas, nas grandes empresas, nos bairros. É luta que segue, é luta que precisa prosseguir. Lutar é o verbo fundamental.
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*Altair Freitas é professor e secretário executivo da Escola Nacional de Formação do PCdoB
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