quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Contra o neoliberalismo, radicalizar a democracia!

Alexandre Ganan de Brites Figueiredo *

Em regra, um regime autoritário procura suprimir o poder popular amparando-se em um argumento apresentado como “técnico”. A concentração do poder em poucas mãos não se deve, segundo esse argumento, ao impedimento da democracia, mas sim a uma necessidade.



Ilustração: Tainan Rocha

Como se não houvesse outro caminho... “Pouca política e muita administração” foi o lema da longa ditadura de Porfírio Díaz, no México (curiosamente, esse mesmo lema foi utilizado por um ex-prefeito de minha cidade natal, José Bonifácio-SP, no começo dos anos 90, com o mesmo ataque ao que seria o caráter pernicioso da política). Atualmente, esse é o mote, aqui no Brasil, dos que se apresentam como “gestores” em oposição aos “políticos”.

Trata-se de um discurso sedutor à primeira vista, especialmente em momentos de crise, pois ele apresenta a solução de conflitos e o processo de tomada de decisões como meras questões matemáticas. Bastaria, deixam deduzir, que um bom solucionador de equações fizesse suas contas, chegasse à única solução possível e tudo estaria resolvido. A política democrática – entendida como espaço da liberdade e do poder popular – seria assim um empecilho ao adequado exercício da “gestão”. Afinal, o povo não é “técnico”.

Esse pensamento subjaz ao modelo de Estado pregado pelo neoliberalismo. Seus defensores sustentam a necessidade da redução dos espaços do poder público, privatização de serviços, desregulamentação da economia, dentre outros, alegando exatamente que os entes privados seriam mais “racionais” e “técnicos” que os espaços da política.

Tal discurso indica – muito falsamente – a impossibilidade de um caminho diverso. Ele decreta o fim da democracia e da esperança, a submissão do povo aos ditames de uma casta pretensamente iluminada e mais preparada para decidir do que a maioria. Uma frase que voltou a circular por colunas de jornais, aulas de faculdades, análises de comentaristas de TV, discursos em sociedades empresariais e eventos promovidos por baqueiros, além de teses acadêmicas, ilustra esse pensamento (e sua hipocrisia): “a Constituição brasileira não cabe no PIB do Brasil”. Ou seja, os recursos à disposição seriam escassos e insuficientes para garantir a realização dos direitos constitucionais do povo.

Porém, não se trata de um dado da realidade, mas apenas de uma opinião. Para ressaltar isso, basta discutir onde esses “recursos escassos” estão alocados e por quê? Ou então, indagar quanto às razões de os mais ricos gozarem de benefícios tributários, enquanto a massa empobrecida custeia o Estado. Por muito que digam os “técnicos” e “especialistas”, o problema da garantia dos direitos constitucionais não é uma questão de insuficiência dos recursos, mas sim de apropriacao da riqueza por uma minoria. É o fato de essa minoria ser, em geral, o berço de acadêmicos e funcionários do Estado que leva a defesa de privilégios a ser apresentada como “técnica” e invariável.

Portanto, há uma dupla falsidade nesse discurso.

Primeiro, nenhuma técnica é neutra: seja qual for, está sempre ancorada no mundo da vida e da luta, expressando as contradições desse mundo. Há muitas soluções “técnicas” diferentes e a escolha cabe à política. Um dia, há pouco tempo, a escravidão foi uma solução perfeitamente técnica defendida por muitos “especialistas” de então. Hoje, a reforma da Previdência que o governo Temer pretende emplacar é vendida como uma necessidade técnica invariável. Contudo, a CPI do Senado Federal concluiu o contrário, usando também uma linguagem técnica...

Em segundo lugar, a seleção dos “especialistas” de cada turno tampouco é neutra: ela é produto da luta de classes e de todas as tensões e desigualdades da sociedade. Para citar um exemplo importante nosa dias de hoje, basta questionar quantos dos magistrados brasileiros são negros para perceber a existência de disparidades e privilégios gritantes. E quantas são mulheres? Dados do Censo Judiciário elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça demonstram o predomínio de homens brancos na magistratura, enquanto tanto os homens como os brancos são minoria na população do país.

Um governo de “técnicos” será necessariamente anti-democrático tanto porque suas decisões são apresentadas como o único caminho possível como porque a escolha de quem serão esses “técnicos” está de saída maculada pela desigualdade social. Em outras palavras, será sempre o governo dos mais ricos em defesa dos seus interesses, sem que haja espaço institucional possível para o questionamento e a busca por alternativas. É exatamente isso que o neoliberalismo procura impor por meio de golpes de estado e fraudulentas campanhas midiáticas para solapar direitos.

O Estado de Bem-Estar Social e as instituições democráticas foram, em alguma medida, tolerados pelo capital na segunda metade do século XX porque a existência da União Soviética o constrangia a manter uma aparência de liberdade. Uma vez que o oponente desapareceu, vem agora essa ofensiva sobre os direitos dos povos. A democracia, antes peça central da propaganda “ocidental”, passa a ser vista pelas elites econômicas como o que sempre foi: um entrave a seus interesses. Radicalizado, o neoliberalismo exige que o estado de exceção torne-se regra geral enquanto a tecnocracia assume o poder dizendo a todos que não há outros caminhos.

Hoje, no Brasil e pelo mundo, a crise de legitimidade da política, ou melhor, do sistema político-eleitoral, é reflexo desse déficit democrático criado pelo avanço do próprio neoliberalismo. Partidos políticos e instituições do poder são desacreditadas, enquanto se alastra uma propaganda acadêmica e midiática (o capital tem seus servidores “técnicos” bem posicionados) afirmando as maravilhas do setor privado em detrimento do setor público. Quem ganha com isso são os mais ricos.

As instituições públicas e os partidos políticos são essenciais e devem ser fortalecidos, mas é preciso compreender que a luta contra o avanço do estado de exceção neoliberal exige mais que a defesa dos mecanismos da representação política. É preciso radicalizar também a democracia, seja com a utilização dos instrumentos constitucionais da participação popular direta – plebiscistos e referendos - seja com novas instituições. As experiências das conferências nacionais e a inclusão da sociedade civil em debates tão complexos como a integração regional (com espaços próprios no Mercosul e na Unasul) são referências a se retomar e ampliar.

Os privilegiados de todas as épocas sempre vêem como um cataclisma a ameaça a qualquer de seus privilégios e reagem com violência quando um adversário toca, por pouco que seja, na sua posição e na de sua classe. É isso que vivenciamos atualmente. A defesa radical da democracia e de sua expansão é o caminho para a preservação da política como espaço do exercício da liberdade. Ela é a chama que pode lançar luzes sobre a escuridão da tecnocracia e do ataque aos direitos.
* Advogado, bacharel em História e doutor em Integração da América Latina pelo PROLAM (Program de pós-graduação em Integração da América Latina) da Universidade de São Paulo (USP).

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