Os editoriais dos jornais e os economistas do
‘mercado’ fazem um movimento de marcha à ré na história
por Elias
Jabbour, Luiz Gonzaga Belluzzo
Publicado 23/12/2022 13:16 | Editado 23/12/2022
17:21
Foto: Wesfoto
Em 1985 um filme fez bastante sucesso e bateu
recordes de bilheteria. Dirigida por Robert Zemeckis, a obra conta a história
de um adolescente que volta ao ano de 1955. De volta para o futuro é também a
história de alguém desesperado, em 1985, para que a vida voltasse a ser como
antes. No linguajar dos jovens brasileiros, “deu ruim”.
Há que constatar: no mundo real a arte pode estar
correndo atrás da vida. E não existe campo mais fértil para esse tipo de
fenômeno que os retrocessos intelectuais praticados pelos “arautos” da ciência
econômica e seus comentaristas midiáticos.
Faz de conta que todos nós fomos levados a
acompanhar a imprensa inglesa especializada em economia na chamada “era
Vitoriana” (1837-1901). Época em que, a despeito de o capitalismo ter sofrido
mudanças em sua forma de funcionamento, ainda imperava uma versão
liberal-conservadora do Estado e das contas públicas. Era clara a resistência a
gastos que sobrecarregassem as gerações futuras. Os liberais postulavam o
“teorema da equivalência ricardiana”: o agente racional sabe que os truques
nominais e o déficit fiscal de hoje serão corrigidos “estruturalmente” por mais
impostos amanhã. A tentativa política econômica para reduzir o desemprego só
resultaria em maiores taxas de inflação e necessidade de maiores impostos no
futuro.
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Unicamp
Uma meia verdade, na prática, diante do papel
político que a Inglaterra concedeu à dívida pública diante dos custos militares
incorridos para financiar seu expansionismo.
No livro In Defense of Public Debt, Barry
Eichengreen examina a gestão da dívida pública nas Guerras Napoleônicas. O
Banco da Inglaterra financiava não diretamente o Tesouro, mas, sim, cuidou de
garantir o sistema de pagamentos e, portanto, funcionamento da economia. O
banco conseguiu isso ao adiantar crédito contra os recebíveis de comerciantes e
industriais. Entre 1797 e 1816, essas operações quase quintuplicaram, de £ 5
milhões para £ 24 milhões.
Aqui vem o truque privado-público. A maioria dos
títulos de dívida emitidos pelo governo britânico foram colocados nos
portfólios dos investidores privados. As autoridades cultivaram o apoio dos
investidores sinalizando seu compromisso de manter o valor de suas obrigações e
continuando a pagar o fundo garantia, criado em 1786 por William Pitt. O fundo
era uma conta especial cujos recursos eram destinados à rolagem da dívida.
Nas últimas semanas, os editoriais dos jornais e os
economistas do “mercado” fazem um movimento de marcha à ré na história. No
planeta em que vivem os sabichões da pedra lascada não estão os Estados Unidos
e China “queimando dinheiro” para vencer as batalhas empenhadas na conquista da
fronteira tecnológica.
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Mais: uma guerra na qual um dos alvos não é Kiev ou
Moscou, mas sim Berlim, a cidadela que os Estados Unidos pretendem conquistar
para transportar a excelência tecnológica da indústria alemã ao território
americano.
A cada quinze dias um pacote fiscal novo é lançado
pelos chineses. Cada um com um alvo. O último, “só” de US$ 200 bilhões voltado
à geração de empregos urbanos para jovens entre 18 e 25 anos. A Coreia do Sul
anuncia mais uma rodada de queima de dinheiro em praça pública: querem liderar
a construção de chips de cinco nanômetro.
Na imprensa “especializada”, nos editoriais dos
grandes jornais e na caneta dos economistas, tudo se passa como se nada disso
estivesse ocorrendo ao nosso redor. E pior: é como se não estivéssemos em um
país com dezenas de milhões de pessoas ou literalmente passando fome ou em
plena insegurança alimentar. A deterioração do debate público é de tal
magnitude que os financistas acolhidos no ministério da Fazenda de Bolsonaro
não somente furaram o “teto sagrado” seguidamente, mas também prometiam a
privatização do Banco do Brasil por valores irrisórios.
No entanto, diriam os sabichões das cavernas, a
maior hecatombe estaria por vir no “rombo” de 2% do PIB, agora executado pelo
‘fura bolo” da PEC da Gastança. As “narrativas” dessa turma nos recordam as
brincadeiras da primeira idade quando as mamães ensinavam as funções dos 5
dedos das mãos às crianças: mindinho, seu vizinho, pai de todos, fura-bolo e
mata-piolho.
Mais vitorianos que a rainha Vitória, os oráculos
da desgraça correm para acusar o futuro governo de portador de uma tragédia
anunciada com o aumento de gastos. Uns falam em “volta da burrice”, outros em
“desconfiança endêmica”, manchetes deploram a “gastança”.
Quanto mais ideológico, mais vulgar. Parte-se para
a fulanização e a acusação de “gostar de gastar”, como foi o caso de um artigo
recente. Nele, o sabichão de Neandertal escarafunchou com seu tacape um trecho
da dissertação de mestrado do futuro secretário-executivo do Ministério da
Fazenda, Gabriel Galípolo.
Nesse trecho, Gabriel chama a atenção para o papel
central da coordenação estatal no processo de desenvolvimento. Incontinenti, o
Pitecantropos Erectus brandiu o tacape!
O assalto teórico muito bem orquestrado entre as
décadas de 1980 e 1990 empenhou-se em separar Estado e Mercado, assim como se
separa Deus e o Diabo. Nosso grande cineasta Glauber Rocha juntou Deus e o
Diabo na Terra do Sol para desvelar as agruras do vaqueiro Manuel.
Super-explorado pelo Coronel Moraes, Manuel matou o patrão em uma briga. Sofreu
a perseguição implacável dos jagunços capitaneados por Antônio das Mortes. Os
jagunços do mercado e da ortodoxia não se cansam de perseguir os divergentes.
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desigualdade
O que passa pela cabeça dos liberais das cavernas?
Será que a “mão invisível” foi responsável por todas as inovações
institucionais ocorridas entre a Revolução Puritana, a lei dos cercamentos e a
criação do Banco da Inglaterra? Historiadores atentos, até mesmo alguns um
tanto desatentos, reconhecem que tais inovações institucionais abriram caminho
à Revolução Industrial. A “mão invisível” teria criado o “Credit
Mobilier” francês, o primeiro banco de desenvolvimento de uma história? Sob os
auspícios de Napoleão III, o banco de investimento empreendido pelos irmãos
Pereira, Emile e Isaac, tinha o propósito de “concentrar grandes somas de
capital de empréstimo para investimento em empresas industriais”.
O capitalismo alemão, precocemente concentrado,
centralizado e com alta simbiose entre produção e finança foi obra de Deus ou
do Diabo? A ortodoxia brasileira não se apercebeu que Bismarck valeu-se do
Espírito Hegeliano para se apoderar do corpo de Guilherme III e lhe incutir os
desdobramentos dialéticos da Ideia.
Um simpático articulista do jornal O Globo nos
ofereceu uma pérola do pensamento anti-industrialista: “O mundo é outro,
moderno, tecnológico, digital, não cabe mais basear o crescimento econômico na
produção industrial”.
Na visão da turma anti-industrialista, os
defensores das políticas industriais insistem em ilusões, tais como a
ocorrência da Revolução Industrial no final do século XVIII. A humanidade, até
então sossegada nos misteres do arado e do pastoreio, foi abalroada por esse
acontecimento infausto que despertou os devaneios de Alexander Hamilton, nos
Estados Unidos, com seu Relatório sobre as Manufaturas e as truculências de
Otto von Bismark, encantado com os maquinismos e a ferrovia.
A industrialização dos Estados Unidos e da Alemanha
se confunde com as inovações da Segunda Revolução Industrial. O aço, a
eletricidade, o motor a combustão, a química e a farmacêutica são os
protagonistas dos combates competitivos da Belle Époque. As transformações
financeiras do crepúsculo do século XIX promoveram a centralização do capital
requerida para o aumento das escalas de produção implícitas nas novas
tecnologias. Isso seria inconcebível sem a concentração das relações de
débito-crédito nos bancos de depósito e nas proezas dos bancos de negócios,
sôfregos em “fixar” capital-dinheiro em novos investimentos.
Aí estão as inovações da inteligência artificial,
da biotecnologia, das alterações nas estruturas atômicas dos materiais, da
impressão 3D, das novas energias limpas. Como disse Alfred Whitehead: “o homem
inventou o método de inventar”. Resta aos homens (no plural) a incumbência de
reinventar a vida social para fruir as liberdades e benesses oferecidas pelas
proezas de Prometeu.
Mas, não poderíamos deixar de observar que uma
pessoa em especial não perde a oportunidade de passar vergonha. Deltan Dallagnol.
Sim, o ex-procurador que como o “mercado” coloca-se acima do bem e do mal,
acusa o Gabriel Galípolo de adepto da MMT.
Recentemente Gabriel escreveu na
revista CartaCapital:
“O debate precisa escapar da tentação das
soluções superficiais e simples oferecidas pelas oposições binárias entre
público e privado, para integrar Estado e mercado no diálogo sobre a qualidade
das políticas, despesas e tributos que fazem sentido. Cabe aos bancos
públicos protagonismo na coordenação e financiamento dos investimentos necessários
à construção da sociedade desejada. Diante das banalidades liberaloides
dos tempos das cavernas, somos tentados a concluir o artigo com as
considerações de Keynes a respeito da participação do Estado nas decisões de
investimento no capitalismo examinadas no Capítulo XII da Teoria Geral,
Expectativas a Longo Prazo: Como o Estado está em condições de poder calcular a
eficiência marginal dos bens de capital no longo prazo e com base nos
interesses gerais da comunidade, espero vê-lo assumir uma responsabilidade cada
vez maior na organização direta dos investimentos, visto que se afigura
provável que as flutuações observadas na estimativa do mercado da eficiência
marginal dos diversos tipos de capital, calculada segundo os princípios aqui
descritos, serão demasiado grandes para poder ser compensadas por meio de
mudanças viáveis da taxa de juros”.
O debate público brasileiro, principalmente o
relacionado às políticas monetária e fiscal, deveria ser mais amplo. Um país
não pode ficar refém de pessoas que pensam e escrevem a mesma coisa há tanto
tempo, sem o tempero do contraditório.
Não nos escondemos atrás de fórmulas mágicas ou
“modelos” de equilíbrio onde as necessidades materiais do povo são um desvio
padrão. Desconfiem de fanáticos. Mais questões: qual a razão nessa fé cega na
“taxa de juro neutra”, o filhote bastardo dos modelos DSGE? O que buscam é
desmonetizar a moeda, transformá-la em um fenômeno “real” e, assim,
desconstituí-la como forma geral da riqueza. A taxa de juros – instrumento de
avaliação intertemporal da riqueza monetário-financeira – o elo entre o
presente e o futuro – estaria sempre muito mais inquieta em suas trepidações se
entregue aos desencontros e aflições dos mercados ocupados na precificação de
ativos. Sem a regulação pelo Banco Central da taxa básica que remunera os
títulos da dívida pública, o mercado financeiro seria uma mixórdia.
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catástrofe climática mundial
Qual a distância entre a ciência que eles dizem
defender e o oportunismo mercadista? Afinal de contas, o que queremos? No que
acreditamos? Não defendemos um “Estado forte” ou adoramos “gastar” por conta de
uma compulsão que nasce de uma fixação por uma visão demiúrgica do Estado.
A história econômica e o mundo ao nosso redor nos
mostram que a riqueza de uma nação demanda uma inteligência nacional
comprometida com uma estratégia de longo prazo, que o avançar do país à
fronteira tecnológica nunca ocorrerá partindo da vontade do setor privado. O
mesmo vale para o investimento. Desde o golpe de 2016 que esta mesma
ortodoxia nos vende a estória da retirada do Estado da economia em favor da
entrada do setor privado e sua potência.
Outro comportamento pode ser avaliado em países
como os Estados Unidos, não aqui. Lá as compras governamentais são um poderoso
instrumento tanto de políticas de inovações tecnológicas quanto de proteção (isso,
PROTEÇÃO) de seu mercado interno. Na Alemanha existe um muro levantado de 600
bilhões de euros votados à contenção do avanço chinês sobre sua manufatura. Na
China, nem se fala. Meninos mimados não leram Alexander Hamilton, muito menos
suas (escandalosas?) correspondências com List.
Não por acaso, as crianças no parquinho da
ortodoxia, correm para falar em poupança prévia para financiar o investimento.
“Batatinha quando nasce, esparrama pelo chão, a menina quando dorme põe a mão
no coração.” Joseph Schumpeter descascou a mexerica: “É extraordinariamente
difícil para os economistas reconhecerem que os empréstimos bancários e os
investimentos financiados a crédito criam depósitos” (e poupança,
acrescentamos).
Adultos falam em projeto nacional de desenvolvimento.
Moeda pública. Crédito direcionado. Conglomerados empresariais. Coordenação
estatal (como em qualquer país capitalista). Imensos bancos públicos de
investimento. Conta de capitais controlada. Taxa de câmbio administrada. E o
principal: intelectuais comprometidos com o que de mais caro pode existir a um
povo: a sua dignidade.
*Artigo publicado originalmente na Carta
Capital
TAGS
CONSERVADORISMO, CRÉDITO, DESENVOLVIMENTO, ECONOMIA, INDUSTRIALIZAÇÃO, LIBERALISMO, MERCADO FINANCEIRO, PROJETO NACIONAL DE
DESENVOLVIMENTO
AUTORES
Professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Econômicas (PPGCE)
e em Relações Internacionais (PPGRI) da UERJ. Membro do Comitê Central do
PCdoB.
Economista e professor.
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