Crise do neoliberalismo tem levado à elevação de diversas crises a nível
internacional
João Estevam dos Santos Filho/Le Monde Diplomatique
Nos últimos meses, dois eventos
marcaram o contexto internacional: a expansão dos Brics e
a escalada de tensões envolvendo Israel e Palestina. Apesar de diferentes
em sua natureza, os dois fenômenos estão ligados por um único processo
histórico que estamos testemunhando: a crise da ordem internacional – um evento
que tem levado à elevação de diversas crises a nível internacional,
principalmente a partir do que pode se considerar como uma crise hegemônica em
um contexto de acirramento da disputa com outras grandes potências.
FORMAÇÃO DA ORDEM INTERNACIONAL LIBERAL
O que se denomina ordem internacional
liberal foi criado na esteira dos eventos após a Segunda Guerra Mundial
(1939-1945). Seus ideais fundamentais são os princípios do multilateralismo –
ou seja, da resolução conjunta de problemas internacionais e do aumento
das trocas comerciais de bens e serviços, o que implica no aumento dos fluxos
de capitais, seja na forma de investimentos diretos, seja como empréstimos
financeiros. Além disso, essa nova ordem estaria alicerçada na criação de
relações pacíficas entre as grandes potências. Por fim, a criação de regimes
políticos democráticos liberais nos países capitalistas desenvolvidos foi outra
base para a formação dessa nova ordem global.
A fim de assegurar o cumprimento
desses princípios, foram criadas instituições multilaterais. Estas serviram
para apoiar a construção de regimes liberais nos temas de paz e segurança, bem
como na economia global. No primeiro caso, foi criada a Organização das
Nações Unidas (ONU), um sistema de segurança coletiva [1], que reunia todos os
Estados independentes considerados legítimos. Já no segundo, foram criadas três
instituições que se seguiram à Conferência de Bretton Woods (1944):
o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Acordo Geral de Tarifas e
Comércio (GATT) e o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento
(Bird), depois chamado Banco Mundial. Além dessas instituições, o incentivo à
integração regional como forma de contribuir para a reconstrução das economias
europeias foi outro elemento significativo.
Entretanto, essa ordem internacional
liberal só poderia ser criada a partir da atuação de uma potência hegemônica
que, nesse caso, foram os Estados Unidos (EUA). Emergindo como a principal
economia do sistema internacional e detendo grande capacidade exercício de
poder, os EUA ocuparam a posição de hegemon, cumprindo o papel de
incentivador do conjunto de relações internacionais próprias da ordem liberal
criada. Tais incentivos tomaram a forma tanto do que alguns autores denominaram
“bens públicos” – ou seja, um conjunto de elementos que beneficiavam dos Estados
dos sistemas, particularmente os capitalistas avançados, como livre fluxo
econômico, regime democrático liberal, estabilidade na relação entre as grandes
potências, cooperação entre os países, dentre outros. Por outro lado, essa
hegemonia era protegida por um “cinturão de ferro” da coerção, ou seja, da
capacidade dos EUA de utilizar seu poder coercitivo contra os Estados que não
correspondessem aos princípios dessa ordem internacional, sobretudo em termos
de perturbação da segurança e do livre fluxo de bens e capitais (IKENBERRY,
1998).
Apesar da relativa longevidade da
ordem internacional liberal, ela passou por um momento de crise durante a
década de 1970, a partir das crises que viveram a potência hegemônica e seus
aliados ocidentais: derrota na Guerra do Vietnã, choques de petróleo (1973 e
1979), estagflação e desnacionalização do setor produtivo – que passou a
incrementar sua produção transnacional ao transferir indústrias para países do
então chamado Terceiro Mundo. Além disso, a partir desse período, viu-se uma
tendência cada vez menor dos EUA de prover os bens públicos referidos
anteriormente, como demonstra o aumento do protecionismo estadunidense, a
decretação do fim do padrão dólar-ouro (estabelecido em Bretton Woods). Essa
crise foi acentuada nos anos 1980, com o fim do comprometimento norte-americano
com uma economia liberal baseada no Estado de bem-estar e a adoração de
princípios neoliberais na organização econômica e política das relações
com sua sociedade (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009).
CRISE DA ORDEM E
SEUS EFEITOS
Em que pese a permanência de algumas
de suas instituições básicas e de princípios que fundamentaram essa ordem
internacional, seu conteúdo já havia passado por uma modificação significativa
quando a Guerra Fria chegou ao fim. Desse modo, desde a década de 1990, o
ordenamento global e a hegemonia que a embasa têm sido atrelados a três
objetivos centrais: estabilização da periferia global, propagação do sistema
político de democracia liberal e implementação da economia de mercado nas
sociedades centrais e periféricas. O primeiro foi buscado através tanto de
intervenções multilaterais, como as missões de paz da ONU e da OTAN e de
organizações regionais, como a Organização dos Estados Americanos, a União
Africana e a União Europeia, quanto por meio de intervenções unilaterais
promovidas pela potência hegemônica, como as realizadas no Panamá, no
Haiti, na Somália, no Afeganistão e no Iraque (SANAHUJA, 2012).
O segundo objetivo foi perseguido
através da propagação da ideologia liberal em diversos fóruns e organizações
internacionais e regionais, think tanks e instituições de
planejamento político (CARROLL, 2013). Além disso, nesse período, foram
realizadas intervenções políticas por instituições norte-americanas, como a
USAID e a NED, a fim de apoiar os processos de democratização existentes em
diversas partes da periferia. Porém, tais processos foram guiados de um modo
geral pelo princípio da “democracia de baixa intensidade”, ou seja, uma
democratização baseada em reformas institucionais limitadas, que não atendesse
as demandas mais radicais da sociedade civil, nem aumentasse em grande medida a
capacidade de influência da população sobre os processos de tomada de decisão
no Estado (BARBOSA, 2019).
Por fim, a construção de economias de
mercado ocorreu, por um lado, mediante a criação de uma agenda coordenada entre
as elites políticas, econômicas e intelectuais do Ocidente, conforme
manifestado no Consenso de Washington de 1989. Por outro, foram criados
mecanismos para implementação de reformas neoliberais, dentre os quais se
destacaram os programas de reforma estrutural propostos pelo FMI nas décadas de
1980 e 1990 – ou seja, medidas pressionadas pela instituição a fim de negociar
a dívida de países periféricos. Entre elas, era exigido diminuição nos gastos
públicos, privatizações de empresas nacionais e flexibilização de legislações
trabalhistas.
Apesar de essas alterações da ordem
internacional liberal terem sido consideradas um êxito pela potência hegemônica
e pelos tomadores de decisão nos países desenvolvidos e em parcela da periferia
global, elas acabaram por aumentar sua capacidade de geração de instabilidade
no sistema internacional como um todo. Em primeiro lugar, as intervenções
militares promovidas pela ONU e por organizações regionais não levaram a uma
estabilidade de longo prazo dos países periféricos, como demonstram os casos
da República Democrática do Congo, do Haiti e da Somália.
Por sua vez, as intervenções de membros da OTAN no Leste Europeu e no Oriente
Médio levou a tensões com outras potências, como a Rússia e o Irã,
sem levaram a uma estabilidade a países como Iraque, Afeganistão e Líbia.
Na dimensão da defesa do regime
democrático liberal, a limitação das demandas populares nas décadas de 1980 e
1990 levou, por um lado, à continuidade da desigualdade socioeconômica em
diversos países da periferia e semi-periferia global. Por outro, a falta de
mecanismos sociais compensatórios para as reformas neoliberais nas sociedades
desenvolvidas precipitou a atual crise democrática vivida pelos países europeus
e dos EUA, marcados pela ascensão da extrema-direita e, no caso da
União Europeia, pelo “euroceticismo”. Por fim, economicamente, a criação de
economias de mercado não levou a um aumento do crescimento econômico, nem à
redução da desigualdade conforme esperado, tendo alimentado a instabilidade nos
fluxos financeiros internacionais, conforme atestado pela crise da bolha
especulativa da internet (1994), pela crise financeira asiática (1997) e pela
crise do subprime (2008) – o que acabou levando a discussões
sobre o fim do Consenso de Washington.
Por fim, cabe comentar que a crise da
ordem internacional liberal parece estar atrelada à própria crise da hegemonia
norte-americana. Essa crise pode ser vista tanto pela incapacidade ou falta de
vontade dos tomadores de decisão de Washington de continuarem a prover bens
públicos globais, como incentivos à utilização de mecanismos multilaterais de
governança global – o que ficou demonstrado recentemente na preferência
norte-americana por tratar a crise envolvendo Israel e Palestina
diretamente, ao invés de através do Conselho de Segurança da ONU.
Entretanto, essa crise também pode ser percebida a partir do aumento das
disputas com Rússia e China, tanto do ponto de vista econômico, quanto do
militar – levando, inclusive, a uma intensificação da aliança entre essas duas
grandes potências, especialmente a partir de 2014, com a crise da Crimeia
(SCHUTTE; DEBONE, 2020).
Portanto, o que se verifica
atualmente, é uma tendência de a atual ordem internacional liberal gerar mais
crises do que instabilidades. As modificações por que passou nas décadas de
1980 e 1990, bem como a propensão da potência hegemônica de ampliar sua
capacidade de ação sem gerar os bens públicos globais que haviam sido um dos
fundamentos desse ordenamento internacional no século passado têm levado uma
ineficiência cada vez maior dos modelos econômico e políticos propostos por
essa mesma ordem.
Por sua vez, esse momento de crise
coloca cada vez mais constrangimentos para a política externa brasileira,
ao inviabilizar uma inserção internacional autônoma. Isso porque, em um momento
de crise internacional, uma disputa entre as grandes potências aprofunda a
necessidade de o país se vincular a um dos lados do conflito. Isso foi visto na
recusa de mediação brasileira no caso da Guerra da Ucrânia, a partir da
rejeição da criação de um Clube de Paz que apoiaria os esforços de
estabilização das relações entre Rússia e Ucrânia; também foi percebido pelo
veto norte-americano à proposta de resolução brasileira no Conselho de
Segurança da ONU, em contraposição a Rússia e China. Além disso, o governo
brasileiro também recebeu críticas devido aos diálogos travados com a
administração russa e às críticas brasileiras à atuação do Ocidente na guerra.
Assim, a capacidade de atuação sistêmica do Brasil também tem sofrido com as
instabilidades que marcam a crise da ordem internacional neoliberal.
João Estevam dos
Santos Filho é Professor de Relações Internacionais na Universidade Anhembi
Morumbi. Doutorando pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).
Pesquisador pelo Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e
pelo Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO). E-mail:
joaoestevam08@gmail.com.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARBOSA, Letícia. A assistência
externa de promoção da democracia liberal dos Estados Unidos na América Latina:
uma observação desde a Análise das Redes Sociais (ARS). Revista Carta
Internacional, v. 14, n. 3, p. 84–109, 2019.
BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO,
Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2009.
CARROLL, William K. The
Making of a Transnational Capitalist Class. [s.l.]: Zed Books,
2013.
IKENBERRY, G.
John. Institutions, Strategic Restraint, and the Persistence of American
Postwar Order. International Security, v. 23, n. 3, 1998.
SANAHUJA, José Antonio. El nexo
seguridad-desarrollo: entre la construcción de la paz y la securitización de la
ayuda. In: Construcción de la paz, seguridad y desarrollo.
Visiones, políticas y actores. Madrid: UCM, 2012, p. 17–70.
SCHUTTE, Giorgio; SANT’ANNA DEBONE,
Victor. Parceria China e Rússia. Carta Internacional, v. 15,
n. 2, 2020.
[1] Sistema de segurança
coletiva é um regime ou organização internacional destinado a proteger a
segurança de todos os seus membros ao declarar que o ataque a um deles deve ser
respondido pelos demais.
Conflitos pelo
mundo pedem solução https://bit.ly/3Ye45TD
Postado por Luciano Siqueira às 10:00 Nenhum comentário:
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