Copiar e colar: o plano econômico de Milei
As propostas econômicas de Milei não têm nada de original. É um
copia-e-cola de um passado que foi muito caro e que gerou muitos danos para a
Argentina
Guilermo Oglietti/Opera Mundi
Analisamos as propostas econômicas de
Javier Milei incluídas no programa apresentado pela coalizão La Libertad Avanza
à Justiça Nacional Eleitoral da Argentina.
No plano encontramos 64 propostas de
caráter econômico. Excluímos 27 propostas da análise, 43%, porque são propostas
"triviais", ou seja, são generalidades que nenhum candidato poderia
rejeitar ou opor-se e, portanto, não nos permitem distinguir entre os
candidatos e não contribuem para a compreensão do plano.
Por exemplo, a proposta n.º 5 da
seção sobre Reforma Econômica, que afirma: "Incentivar o investimento
privado" ou a proposta n.º 2 da seção sobre Tecnologia e Infraestrutura:
"Incentivar o investimento no turismo". Nenhum candidato poderia
opor-se ou propor asfixiar o investimento privado.
Também não incluímos na análise o que
chamamos de propostas supérfluas. Ou seja, aquelas que propõem o que já existe
ou já foi resolvido, como é o caso do ponto 25 da seção de Saúde, que para o
PAMI (agência de saúde pública argentina) propõe: "Que os profissionais de
saúde comprovem a sua especialidade", ou seja, propõe uma exigência que
atualmente é um requisito de acesso ao cargo.
Excluímos também propostas de
consequências imprevisíveis e de moralidade duvidosa, como a n.º 27 da seção de
Saúde (sim, saúde), que propõe: "Criar empresas produtivas em todos os
serviços penitenciários". Poderia ser uma boa iniciativa para que os
presos pudessem trabalhar e contribuir para a sociedade, o que serviria para a
sua reintegração, no entanto, dada a hegemonia do mercado que rege os
princípios do anarco-capitalismo de Milei e a sua inspiração no modelo
norte-americano de capitalismo, esta proposta seria rapidamente transformada em
um negócio de prisões privadas, de superlotação das prisões e de grandes lucros
baseados nos baixos salários de uma população abundante e semi-escrava[1].
Resumo do plano de
Milei e contraste com a Ditadura, Cavallo e Macri
Na primeira parte mostramos as 27
propostas restantes que resumem o plano econômico de Milei. Comparamos estas
propostas com três outras experiências conhecidas de políticas neoliberais na
Argentina: a ditadura, apoiando a liderança econômica de Martínez de Hoz entre
1976 e 1983, o programa econômico concebido e liderado por Cavallo durante os
governos Menem e De la Rúa entre 1991 e 2001 e, finalmente, a experiência de
quatro anos do governo de Macri e dos seus quatro ministros da Economia entre
2016 e 2019.
Apenas três propostas são originais
por parte de Milei, ou seja, não têm precedentes em nenhum dos outros três governos
anteriores: eliminar o Banco Central, eliminar a coparticipação e implementar
os vouchers educacionais.
Em outras palavras, apenas 10% das
políticas propostas são originais, em comparação com as políticas implementadas
pelos últimos três governos juntos:
- O programa econômico de Milei
coincide em quase 70% com a política econômica promovida por Cavallo, Menem e
de la Rúa.
- Com 68% de semelhanças, o plano de
Milei parece o plano de Martínez, de Hoz e da Ditadura./
- Não muito distante, com 63% de
coincidências, estão as semelhanças entre o programa de Milei e o governo de
Macri.
Cronograma
Milei promete que desenvolverá o seu
plano econômico em três fases, as quais levarão cerca de 35 anos para serem
totalmente implementadas. Não especifica como será capaz de perpetuar as suas
políticas ao longo de "8,75" governos.
O cronograma não indica quanto tempo
levará cada etapa, nem quanto de progresso será alcançado em cada uma delas.
Também não detalha o progresso que fará em suas propostas. Apresentar um
cronograma sem estas definições não é uma boa conduta.
Propostas repetidas
90% das propostas de Milei têm resultados
que podemos antecipar, porque repetem políticas neoliberais que foram
praticadas em pelo menos uma das três tentativas anteriores. Milei define-se
como austríaco ou anarco-capitalista, mas o seu plano assemelha-se a 90% dos
programas neoliberais que consolidaram três experiências de fracasso no nosso
país.
Estas medidas repetidas consistem
basicamente em:
• Abertura financeira: que sempre
conduziu à especulação financeira, à fuga de capitais estrangeiros e à crise da
balança comercial, entre outras consequências negativas como o aumento dos
rendimentos financeiros à custa da rentabilidade dos setores produtivos.
• Liberalização comercial: que sempre
levou a déficits comerciais e à desindustrialização.
• Eliminação da política
fiscal:
·
Redução de impostos, que gera sempre mais desigualdade, inflação e fuga
de capital.
·
Corte de gastos: que sempre leva à deterioração de serviços públicos e
privados e aumenta da inflação.
·
Haverá alguma economia nos gastos com saúde e educação, porque os
cidadãos dos países vizinhos já não virão para cá para se tratarem ou estudar,
mas, pelo contrário, começaremos a enviar doentes e estudantes para esses
países, porque a educação e a saúde públicas desaparecerão aqui.
·
Estado mínimo, o que significa péssimos serviços públicos, maiores
custos de saúde e educação, menos ciência e mais fuga de cérebros.
• Flexibilização trabalhista, que
conduz a empregos precários, instáveis, inseguros e mal pagos. A formalidade
aumentará, porque os empregos formais passarão a ser mais parecidos com os
empregos informais atuais.
• Aumento da iniciativa privada e do
empreendedorismo, à semelhança do Equador, El Salvador e Colômbia, onde as
pessoas decidem seguir o caminho apontado por Elon Musk e abrrir quiosques,
carrinhos de cachorros-quentes e empresas de lançamento de satélites.
• Aumento da emigração para aqueles
que procuram melhores empregos e, consequentemente, as receitas externas
melhorarão graças às transferências dos emigrantes que enviarão dinheiro aos
seus familiares.
• Privatização de empresas e serviços
públicos, como a saúde e a educação.
• Eliminação da política monetária.
Esta política já foi aplicada com a Convertibilidade e sabemos os seus
resultados. Há muitas maneiras de abolir a política monetária sem perder a
soberania monetária. Por exemplo, adotando uma regra monetária muito rígida,
adotar um caixa de conversão como a Convertibilidade (que terminou com taxas de
desemprego de 14% com Menem, 18% com de la Rúa e mais de 21% na crise de 2001).
• Sistema de pensões por
capitalização. Proposta totalmente implementada durante a Convertibilidade com
enormes consequências fiscais. A transferência das receitas das contribuições
para as AFJP (Administradora de Fondos de Jubilaciones y Pensiones - empresas
que administram fundos de pensão ) custará ao país uma redução de quase 6,7%
das receitas, que serão transferidas para as AFJP. O governo continuaria a
assumir os pagamentos aos atuais aposentados e pensionistas, que representam
quase 8% do PIB. Como é que o governo vai financiar essas despesas? Emitindo
mais dívida, sobre a qual a sociedade terá de pagar juros adicionais, que, aos
níveis atuais de despesa, representariam quase 1% do PIB por ano a mais? Ou
seja, teria de assumir um déficit de quase 9% do PIB suplementar durante vários
anos até que o regime de capitaliza&ccedi l;ão estivesse plenamente
operacional.
A parte 2, que sintetiza alguns
resultados econômicos de governos anteriores que aplicaram as mesmas políticas
hoje propostas por Milei, mostra que se trataram de períodos de baixo
crescimento e de uma economia baseada na dívida e no setor financeiro, o que
resultou na diminuição do bem-estar dos trabalhadores e no crescimento
insustentável da dívida, representando um pesado fardo para as gerações e
governos futuros. A dívida da ditadura foi o gatilho para a década perdida, a
do governo Menem-Cavallo terminou com a crise de 2001 e a do governo Macri com
a sua derrota no primeiro turno e o retorno do FMI.
Propostas originais
• Dolarização. Milei explicou que o
seu plano não é dolarizar, mas sim que o público escolha a moeda, que pode ser
qualquer uma, por exemplo, o guarani paraguaio, o dólar americano ou o renminbi
chinês (bem, não o chinês porque é comunista), que são todas moedas estáveis,
ou o peso argentino e o Bitcoin, que não são.
·
Quando o menu só tem sapos, cobras e milanesas, não é um menu, porque as
opções são falsas e só há uma alternativa. A dolarização não será uma
consequência da liberdade de escolha, mas de um processo que visa destruir o
peso, no qual o próprio Milei está envolvido ao anunciar, como candidato, que
vai eliminar a moeda e que uma taxa de câmbio elevada é conveniente, gerando
assim a expectativa auto-realizável de que ela será desvalorizada.
·
Em termos geopolíticos e de defesa nacional, a dolarização é um salto
para a subordinação definitiva. Perde-se não só a soberania monetária, mas
também a soberania política e econômica. Com a dolarização, até à Reserva
Federal dos EUA será necessário pedir autorização para renovar as notas
antigas[2]. Imaginem como as nossas decisões políticas se tornarão mais
dependentes da vontade dos EUA e das suas corporações, que têm uma influência
decisiva na política externa dos EUA[3].
·
A inflação não acabará com a dolarização. Diminuirá, mas a inflação
depende também de variáveis estruturais como a produtividade e a concorrência
de mercado, que avançam mais lentamente em países médios como a Argentina. A
inflação continuará com a dolarização e, embora seja mais baixa, será quase sempre
mais elevada do que nos Estados Unidos, e perderemos gradualmente a
competitividade internacional. A longo prazo, a Argentina será um país muito
caro, como são hoje El Salvador, o Panamá e o Equador, e os investimentos
produtivos no país deixarão de ser atrativos.
·
Quando a economia for cara em relação ao resto do mundo, não será
possível corrigir o desequilíbrio das contas externas alterando apenas um
preço, a taxa de câmbio nominal (porque não haverá moeda e não haverá taxa de
câmbio) e a única alternativa será baixar todos os preços, o que só será
possível através de uma grande recessão.
·
Um aspecto que não é levado em conta é que, com a dolarização, teremos
de acrescentar mais um item de importação às nossas frágeis contas externas. À
medida que a economia cresce, vai precisar de mais dinheiro, ou seja, notas de
dólar, que terão de ser importadas dos EUA. O lado negativo destas compras é
que as receitas fiscais da senhoriagem (lucro do governo derivado da emissão de
moeda ou diferença entre valor nominal do dinheiro e custo para produzí-lo)
serão perdidas e entregues à Reserva Federal dos EUA. As receitas de
senhoriagem geradas pelo aumento do montante de moeda não inflacionista (ou
seja, a parte não inflacionista da emissão monetária) exigido pela economia
argentina em anos normais foram estimadas em cerca de 1,6% do PIB entre 2004 e
2014, ou seja, cerca de 7,7 bilhões de dólares em valo res atuais de receitas
que perderíamos e um montante semelhante que teríamos de gastar na importação
anual de notas de banco dos EUA[4]. O déficit fiscal aumentará num montante
indeterminado, porque em países dolarizados como o Equador, o Estado é
normalmente responsável pelo fornecimento de parte da moeda estrangeira ao
mercado interno.
·
Outro aspecto que não se leva em conta com a dolarização é que, embora o
"risco cambial" seja reduzido,[5] o "risco bancário"
aumentará e, com ele, os custos financeiros. Tal como durante a
Convertibilidade, a dolarização requer não só uma disciplina fiscal rigorosa,
mas também saldos excedentários no comércio externo, algo muito difícil de
conseguir na Argentina e ainda mais se a taxa de câmbio se valorizar[6]. Se
houver escassez de moeda estrangeira, como durante uma seca, por exemplo, não
haverá desvalorizações para melhorar as contas externas e, em vez disso, existe
o risco de corridas aos bancos, porque os dólares disponívei s não serão
suficientes para cobrir os saques de depósitos que existem em qualquer sistema
bancário fracionário.
·
O Banco Central deixará de ter capacidade de socorrer os bancos que
sofrerem fugas de capital logo que o público perceba que há poucos dólares e
muitos depósitos dolarizados. Os bancos terão de manter mais reservas líquidas
do que num sistema com soberania monetária – criando um Fundo de Liquidez, como
no caso do Equador, por exemplo – o que resultará em enormes quantidades de
liquidez ociosa, racionamento de crédito e taxas de juro mais elevadas para
compensar os baixos rendimentos das reservas obrigatórias. [7] Assim,
as taxas de juro nominais cairão, mas serão permanentemente mais elevadas do
que nos EUA, o que representa outra desvantagem competitiva sistêmica como
resultado da dolarização.
·
O plano de dolarização delineado por Milei baseia-se na emissão de mais
dívida externa, que ele garantirá com os ativos do FGS da ANSES e os títulos do
Estado detidos pelo BCRA e/ou com a colocação desses títulos no mercado
internacional. É uma questão de emitir nova dívida ou vender ativos, o que na
prática é a mesma coisa, reduzindo o patrimônio líquido de todos os argentinos.
·
Atualmente, 2% do déficit do PIB é explicado pelos juros da dívida, e a
nova dívida implicaria mais 1% do PIB em juros. Será que a dolarização será
capaz de suportar um encargo financeiro de 3% do PIB?
• Os vouchers educacionais.
Nada melhor do que os estudantes chilenos que saíram à rua para demonstrar a
sua felicidade com a bondade do modelo educativo chileno para provar que é um
paraíso. Concebidos para atrair os incautos, a realidade é que os vales ou
cupons – para os chamar pelo seu nome espanhol – aumentarão temporariamente a
procura de estudantes por instituições privadas, que poderão aumentar os seus
preços à vontade. Em outras palavras, eles não permitirão que as famílias de
baixa renda tenham acesso à universidade pública e tornarão o serviço mais caro
para as famílias de renda média, as principais vítimas.
• Eliminar a coparticipação. Não há
pormenores a analisar nesta proposta, nem uma única pista de como se pretende
conseguir o impossível de, por um lado, não cumprir a constituição de 1994, que
mandava aprovar uma nova lei, e, ao mesmo tempo, conseguir o consenso de todas
as províncias para o fazer.
Conclusão
O modelo econômico proposto por Milei
não tem nada de original. É um copia-e-cola de um passado que se revelou muito
caro para a Argentina, pelos danos sociais que gerou e pela dívida que deixou
como herança para as gerações e governos seguintes.
Notas:
[1] O documentário
altamente recomendável "A 13ª Emenda" nos permite antecipar os riscos
sociais de deixar o sistema penitenciário nas mãos de pessoas inescrupulosas.
[2] Essa foi a
experiência de Rafael Correa no Equador.
[3] A capacidade de
dissuasão da Defesa Nacional ficará comprometida. Se tivéssemos uma disputa por
interesses legítimos, por exemplo, em relação às Malvinas ou à defesa de
qualquer recurso, nunca conseguiríamos deter qualquer agressor, pois
dependeríamos de crédito externo até mesmo para transações internas. Como já
dissemos, a dolarização exige disciplina fiscal, o que é impossível durante uma
guerra e, portanto, a dolarização aumenta nossa vulnerabilidade externa. Com
relação à Defesa, a proposta de Milei de modificar a lei de terras, tornando-a
mais liberal e facilitando explicitamente as aquisições estrangeiras, também
contribui para a perda de soberania.
[4] De acordo com
Renna, E. (2015). “Señoreaje e impuesto inflacionario en Argentina 1993-2014”.
Trabajo de Investigación FCE, UNC, as receitas poderiam aumentar para 4,5% do
PIB, como em 2002. Nos últimos 10 anos de sua estimativa, os valores estão
entre um mínimo de 0,4 % e 3 % do PIB. Esses cálculos estão de acordo com os de
outros países da região. No caso da Colômbia, a senhoriagem primária ficou
entre 0,4% e 1,3% do PIB entre 2000 e 2014. Muñoz Zambrano, A. e M. Ramirez
Velandia (2016). “El señoreaje primario fiscal y sus efectos sobre las finanzas
públicas – periodo 1999 al 2014 en Colombia”. Ciencia UniSalle.
[5] A margem da
taxa de câmbio se traduz em um excesso de custo que aumenta os juros da dívida
emitida em pesos para cobrir os credores contra possíveis desvalorizações.
Espera-se que a dolarização elimine esse risco, pois, teoricamente, os
poupadores sempre poderiam sacar suas economias em dólares. No entanto, como a
quantidade de dólares depende das contas externas, o risco nunca desaparecerá,
pois há sempre o risco de que a dolarização não seja sustentável, da mesma
forma que a conversibilidade (que também se dizia que faria o risco cambial
desaparecer, mas não o fez).
[6] Em 12 dos 21
anos entre 2000 e 2021, a conta corrente da Argentina foi deficitária, no valor
de US$ 81 bilhões (a preços constantes de 2021).
Veja: https://www.celag.org/por-donde-desangran-las-cuentas-externas-latinoamericanas/.
[7] Montero Lince
V. (2011). "El encaje bancario y el fondo de liquidez en el Ecuador.
Análisis de su incidencia en la operación del sistema bancario nacional
(2000-2009)". PUCE. "Apesar de o Fundo de Liquidez ter sido criado
para cumprir as funções de um emprestador de última instância, ele não gerou a
confiança necessária e os setores produtivos foram prejudicados devido a uma
oferta reduzida de crédito. Os bancos canalizaram grande parte dos recursos
para instrumentos excessivamente líquidos, compensando sua menor rentabilidade
com taxas de juros mais altas". Villalba, M. (2019). "Dos décadas de
dolarización ¿qué hemos aprendido sobre este esquema monetario?" em
Dolarización: Dos décadas después, Editorial CONGOPE, Quito. "... no
Equador, as instituições financeiras tendem a ser em grande parte &
quot;excessivamente encapsuladas", ou seja, mantêm depósitos no Banco
Central muito acima do que os regulamentos exigem para cobrir a exigência de
reservas e outros requisitos legais. Isso ocorre justamente porque as
instituições financeiras usam o Banco Central como provedor de reservas para
cobrir suas necessidades de caixa e de transferência externa. Portanto, está
claro que o problema real para a sustentabilidade da dolarização pode surgir se
o Banco Central não tiver reservas internacionais suficientes para atender à
demanda da economia por dinheiro (cédulas e moedas) e transferências para o
exterior".
Grande
civilização do século à espera de um estadista https://bit.ly/3uc8Sdz
Postado por Luciano Siqueira às 16:38 Nenhum comentário:
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