Redução dos recursos para políticas públicas com Bolsonaro e ascensão da
extrema-direita estão entre fatores que levaram ao aumento da violência contra
mulheres
Priscila Lobregatte/Vermelho
Em onze anos, de 2011 a 2021, mais de
49 mil mulheres foram assassinadas no Brasil. Somente em 2021, foram 3.858, o
que significa uma média superior a dez por dia. Deste total, 2.601, ou 67,4%,
eram negras, o que faz com que estas mulheres tenham um risco 1,8% maior de
serem mortas em relação a uma não-negra. Esse quadro estarrecedor compõe a
realidade cotidiana feminina e faz das brasileiras um dos maiores grupos
vitimados pelo alto índice de violência no país.
Os dados fazem parte do Atlas da
Violência 2023, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). A pesquisa usa
como base o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e do Sistema de
Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, e deverá
nortear ações do governo federal no combate à violência em geral.
Embora já seja alto, o número de
vítimas fatais pode ser ainda maior, uma vez que em 2021, 3.940 mulheres foram
vítimas de Morte Violenta por Causa Indeterminada (MVCI), o que representou
aumento de 8,5% em relação ao ano anterior.
Considerando esse dado, o Atlas
estima que, em números absolutos, o total dessas mortes violentas pode ter sido
de 4.603. “Ou seja, outras 745 mulheres sofreram agressões fatais sem que o
Estado tivesse conseguido registrar corretamente as causas dessas mortes”,
alerta.
Vale destacar que, segundo outra
pesquisa, feita pelo FBSP especificamente sobre a violência geral que atinge as
mulheres (Visível e Invisível – a Vitimização de Mulheres no Brasil, 2023),
33,4% das brasileiras com 16 anos ou mais sofreram violência física e/ou sexual
por parte de parceiro íntimo ou ex em algum momento da vida, percentual bem
maior do que a média global, de 27%, de acordo com a Organização Mundial de
Saúde (OMS).
No ano passado, 28,9% sofreram algum
tipo de violência ou agressão, o que corresponde a 18,6 milhões de mulheres.
Quanto à percepção dos brasileiros, mais de 65% acreditam que a violência
contra a mulher aumentou em 2022.
Leia também: Governo cria
pacto de prevenção ao feminicídio; veja como funcionará
Na análise por estado, entre 2020 e
2021, o maior crescimento constatado pelo Atlas no número de homicídios de
mulheres foi no Amazonas (48,2%), seguido por Piauí (27,7%) e Espírito Santo
(22,7%). No extremo oposto, Roraima teve a maior queda (40,8%); na sequência
estão Alagoas (29,2%) e Mato Grosso (22,7%).
São Paulo é o estado com menos
homicídios de mulheres no país, com taxa de 1,5 morte para cada 100 mil
mulheres, seguido por Minas Gerais (2,3), Santa Catarina (2,5) e Distrito
Federal (2,6) por 100 mil. Em sentido oposto, Roraima está no topo dos estados
com maiores taxas de homicídios de mulheres no ano de 2021 (taxa de 7,4
mulheres mortas a cada 100 mil), seguido do Ceará (7,1) e do Acre (6,4).
Feminicídios
Considerando o tipo de classificação
usada nos sistemas do Ministério da Saúde, o Atlas procurou identificar quantos
desses crimes seriam feminicídios. Para tanto, os pesquisadores partiram de
evidências nacionais e internacionais, segundo as quais “quando uma pessoa é
assassinada dentro da residência, na esmagadora maioria dos casos o perpetrador
é conhecido, cônjuge ou familiar da vítima”.
Deste modo, aponta o Atlas, “os
homicídios de mulheres dentro das residências podem servir como medida indireta
dos casos de feminicídio, de modo a capturar a dinâmica e tendência desse
fenômeno social, ainda que não capture o nível absoluto da incidência, mesmo
porque uma proporção dos casos de feminicídio ocorre fora da residência”.
Ainda de acordo com a pesquisa, “a
taxa de homicídios de mulheres seguiu a tendência de queda dos homicídios no
Brasil a partir de 2018. Entretanto, quando olhamos a taxa de homicídios de
mulheres dentro das residências, vemos uma incrível estabilidade, o que revela
uma sórdida constância do feminicídio enquanto fenômeno social, que independe
de fatores circunstanciais, como a pandemia, ou da alternância de
governos”.
Saiba mais sobre o
Atlas da Violência:
Brasil perdeu mais de 616 mil vidas para a violência em 11 anos
Em 11 anos, mais de 326 mil jovens
foram mortos pela violência no Brasil
No caso do Anuário 2023 do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública, tendo como base os registros policiais, em
2022, houve 1.437 feminicídios, crescimento de 6,1% em relação ao ano anterior
e as tentativas de feminicídio cresceram 16,9%. A maioria também é de mulheres
negras, com 61,1% dos casos; sete em cada dez do total ocorreram em
casa.
“Os poucos avanços que a gente tem
tido na redução da violência letal têm alcançado somente uma parcela da
população, que são as parcelas branca e amarela, mas muitas vezes não são
capazes de proteger a população negra e a mulher negra”, explicou a
pesquisadora do FBSP, Samira Bueno, durante coletiva de lançamento do Atlas, na
semana passada.
Entre 2020 e 2021, enquanto a taxa de
homicídios para mulheres negras cresceu 0,5%, entre as mulheres não negras
houve uma redução de 2,8%. “As desigualdades raciais, assim, são aprofundadas
quando se trata da violência letal contra as mulheres”, explica o estudo.
Ao analisar o período de 2011 e 2021,
diz o Atlas, “é possível notar uma redução nas taxas de homicídios tanto para
mulheres negras quanto para as demais. No entanto, entre as não negras houve
uma queda mais acentuada (-21,5%) em comparação com as negras (-18,8%). Nos últimos
cinco anos (2016 a 2021), a queda no número de mulheres negras mortas foi de
17,6%, enquanto a de mulheres não negras foi de 21,3%”.
Hipóteses para a
violência
Na avaliação de Samira Bueno, há ao
menos três hipóteses preponderantes para o aumento da violência contra as
brasileiras nos últimos anos. “A primeira tem a ver com a redução, muito
expressiva, do orçamento público, especialmente o federal, voltado às políticas
de enfrentamento à violência contra a mulher. Estudo do Inesc (Instituto de Estudos
Socioeconômicos) mostrava uma redução da ordem de 95% do orçamento (do governo
Bolsonaro) voltado a essas políticas”, destacou.
Leia também: Violência contra a
mulher cresce e atinge 18 milhões de brasileiras
O segundo elemento apontado por Samira “tem a ver com a ascensão de um movimento muito conservador, da extrema-direita no Brasil, que veta completamente o debate sobre gênero. E se a gente não fala de gênero, de educação sexual, a gente não tem como prevenir a violência doméstica, de gênero e a violência intrafamiliar. O movimento Escola sem Partido, por exemplo, é um dos que compromete esse debate e que faz com que muitas vezes não se consiga formular política para essas áreas porque o assunto fica totalmente interditado”.
O terceiro fator tem relação com a
Covid-19. “A pandemia comprometeu os serviços de assistência social, de acesso
à justiça e à segurança pública”, salientou. Além disso, a forma como a
pandemia foi tratada no Brasil levou ao aumento no tempo de isolamento social —
fazendo com que as mulheres acabassem ficando mais tempo com o agressor dentro
de casa — e à perda da autonomia financeira devido ao aumento do desemprego,
fatores que deixam a mulher mais dependente e suscetível a conflitos.
Armas de fogo
Vale lembrar, ainda, que o aumento na
circulação de armas de fogo contribui diretamente para o aumento da violência
letal em geral e contra as mulheres em particular.
O Anuário 2023 mostra que em 2022,
quando a alta nos feminicídios foi de 6,1% (com 1.437 casos), 26,3% tiveram a
arma de fogo como instrumento. Nos demais assassinatos de mulheres, as armas
ganham maior protagonismo e representam 68,6% dos casos, enquanto a arma branca
foi utilizada em 18,4% dos eventos violentos.
Leia também: Número de
armas pessoais dispara e chega a quase 3 milhões
“Há consenso na literatura científica
de que a difusão de armas aumenta os homicídios”, diz o Atlas, lembrando que
entre os três principais canais causais está o fato de que “uma arma de fogo
dentro do lar conspira contra a segurança da própria família, pois faz aumentar
as chances de feminicídios e vitimização fatal, em meio a brigas
domésticas”.
Os outros dois aspectos são a
“sensação de empoderamento que a posse da arma gera no indivíduo que se envolve
em alguma contenda” e o fato de “que quanto mais armas (houver) no mercado
legal, mais armas migrarão para o mercado ilegal”.
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
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Postado por Luciano Siqueira às 09:13 Nenhum
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