No reino da arapongagem
Como os órgãos oficiais abriram as comportas da espionagem ilegal no governo Bolsonaro
Allan de Abreu/revista Piauí
Em março de 2019, três meses depois
da posse de Jair Bolsonaro, o Brasil começou a abrir um mercado fértil para um
setor que atua nas sombras – a espionagem. Um dos mais bem-sucedidos
fabricantes de material de escuta e monitoramento do mundo, o israelense NSO
Group percebeu a maré favorável e acionou seus representantes para vender
equipamentos ao governo. Afinal, o então presidente dizia publicamente que não
confiava no sistema de inteligência oficial. Suas declarações soavam como um
convite às fabricantes para vender suas ferramentas intrusivas, sobretudo à
Polícia Federal e à Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Um dos lobistas
do NSO, o brasileiro Marcelo Comité Ferreira da Silva, arregaçou as mangas. Em
um áudio de WhatsApp, obtido no âmbito de uma investigação do Ministério
Público Federal e ao qual a piauí teve acesso, o lobista
comenta as boas possibilidades que surgiam com o novo governo para oferecer
seus produtos:
O Eduardo
Bolsonaro, por exemplo, é um cara que é…. Dá pra gente chegar e fazer essa
apresentação, entendeu? Eu vou fazer o seguinte, cara. Eu vou pegar, ver se eu
pego o Ramagem, que é o cara que… é… ver se eu faço lá na DPF mesmo, que é uma
coisa transparente pro Ramagem, e chamar o pessoal da inteligência do gsi, para
apresentar isso lá… lá na DPF.
No áudio, Ferreira da Silva se refere
a Alexandre Ramagem, um policial federal que, quatro meses depois ocuparia o
cargo de diretor-geral da Abin. O lobista do NSO queria apresentar seu produto
no DPF, que é como se refere à Polícia Federal, e esperava contar com a
presença de integrantes do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), órgão
então sob comando do general Augusto Heleno. No entanto, a presença de Ramagem,
hoje deputado federal pelo PL do Rio de Janeiro, era especialmente importante.
Prossegue o áudio:
Porque ele [Ramagem] é o cara de extrema confiança do
Bolsonaro. […] É delegado de polícia, sabe investigar pra
cacete. Esse cara vai ver a importância disso. Acho que é o melhor cara pra
gente chamar na DPF, né? Às claras, na DPF ali, e fazer uma apresentação para
ele, cara. É um… é o cara ‘top’ para gente fazer isso aí. Se é pra chegar no
Bolsonaro, esse é o cara.
O material de alta “importância” que
Ferreira da Silva pretendia vender ao governo chama-se Pegasus. É a mais
agressiva e eficiente ferramenta cibernética de espionagem de que se tem
notícia. Sua primeira versão surgiu em 2011 e revolucionou os serviços de
inteligência estatal no mundo ao oferecer múltiplas funções: invade qualquer
aparelho celular, em qualquer dispositivo operacional (Android ou IOS), sem que
o usuário perceba, driblando qualquer criptografia de aplicativos de mensagens
– e tudo isso sem depender de nenhuma ação por parte do investigado, como um
clique em algum link malicioso, para iniciar o monitoramento. O Pegasus
revelou-se tão poderoso que só pode ser negociado com entes governamentais e
toda a venda depende de uma autorização formal do governo israelense.
A sugestão de um encontro do NSO com
Ramagem ganhou impulso poucos dias depois, quando Bolsonaro e seu filho Flávio
retornaram de uma viagem a Israel, durante a qual se encontraram com representantes
do grupo. Em novo áudio, o Ministério Público Federal suspeita de que Alyson
Rainer de Barros, outro representante do NSO, é quem comemora com Ferreira da
Silva que a reunião de apresentação já estava marcada e dá a entender que
Bolsonaro, na visita a Israel, conheceu o Pegasus e gostou do que viu:
Fala, chefe. […] Tá marcado quarta-feira, 15 horas,
apresentação pro Ramagem, que é o braço direito do presidente. Cara, que quando
o presidente viu o Pegasus, chegou no Brasil e mandou o Ramagem atrás, tá? E aí
o Ramagem vai chamar o presidente pra ver a apresentação.
Ramagem demonstrou interesse no
Pegasus, as negociações se prolongaram, mas o Ministério Público Federal não
conseguiu confirmar se a Abin, de fato, comprou a ferramenta. Ao MPF, o órgão
negou ter adquirido o programa israelense. “A intrusão, a interceptação de
comunicações ou a obtenção de arquivos em dispositivos eletrônicos […] não têm
amparo legal e não é permitida à Abin”, disse a Secretaria de Planejamento e
Gestão da agência. Não se sabe qual uso Bolsonaro pretendia dar ao Pegasus
quando se interessou pelo programa, mas a Abin, naquela mesma época, vinha
operando ilegalmente um programa de espionagem que adquirira um ano antes – o
FirstMile. Fabricado pela Cognyte Software Ltd., empresa também israelense e
concorrente do NSO Group. O FirstMile é uma ferramenta potente, mas não tem as
mesmas propriedades que o Pegasus. Seu forte é monitorar em tempo real a
localização geográfica de um celular, mas não é capaz de invadir seu conteúdo.
Substituí-lo pelo Pegasus seria uma enorme vantagem.
O FirstMile vinha sendo útil aos
arapongas. Em março deste ano, o jornal O Globo revelou que
servidores da Abin estavam usando o programa para bisbilhotar adversários
ilegalmente. Diante da denúncia pública, a Polícia Federal abriu uma
investigação e constatou que a Abin fizera mais de 30 mil rastreamentos de
celulares por meio do FirstMile. A polícia já descobriu a identidade de metade
dos 1,8 mil monitorados. Entre eles, estavam o jornalista americano Glenn Greenwald
e seu marido, o deputado federal David Miranda, falecido em maio de 2023, além
de um agente do Ibama, Hugo Loss, chefe de fiscalização exonerado depois de
realizar operações contra garimpeiros e madeireiros ilegais no Sul do Pará.
Entre os alvos da investigação da PF, que tramita em sigilo, está Caio Cesar
dos Santos Cruz, filho do general Carlos Alberto Santos Cruz, ministro-chefe da
Secretaria de Governo no início da gestão Bolsonaro que depois rompeu com o
governo. Caio Santos Cruz trabalhava como lobista da Cognyte, a fabricante do
FirstMile. Outro alvo da PF é Paulo Maurício Fortunato Pinto, terceiro na
hierarquia da Abin, de onde foi demitido. Em sua casa, os agentes encontraram
172 mil dólares em espécie. Fortunato Pinto trabalhou no Serviço Nacional de
Informações (SNI), o serviço secreto do regime militar. No governo Bolsonaro,
foi diretor de operações da Abin, nomeado por Alexandre Ramagem.
A venda do FirstMile e o trabalho do
NSO para oferecer o Pegasus ao governo é uma operação comercial regular e
dentro da lei, bem como o interesse do governo em adquirir uma ferramenta capaz
de ampliar sua capacidade de combater o crime. “Não se discute a importância de
o Estado usar ferramentas tecnológicas na investigação de organizações
criminosas que há tempos escondem suas atividades sob o escudo de aplicativos
criptografados”, diz Bárbara Simão, coordenadora de pesquisa na área de
privacidade e vigilância do InternetLab, centro de pesquisa em direito e
tecnologia, localizado em São Paulo. “Mas é necessário haver regras claras no
uso desses dispositivos, e hoje essas regras não existem no Brasil, o que
permite todo tipo de desvio ético e legal.”
O Ministério Público Federal entende
que casos de monitoramento por geolocalização também requerem aval da Justiça.
O argumento dos procuradores é baseado numa analogia simples: a lei nº 13812,
de 2019, exige essa autorização para localizar pessoas desaparecidas. Portanto,
é natural que a Justiça também precise autorizar o uso de programas de
geolocalização.
Nos Estados Unidos, desde 2018, por
decisão da Suprema Corte, as polícias só podem usar esses programas com
autorização judicial.
Encerradas as negociações com a Abin
para a compra do Pegasus, o governo Bolsonaro voltou ao assunto em julho de
2020. Em seus primeiros dez anos de existência, o programa fora adquirido pelas
mais renomadas polícias e serviços de inteligência do mundo, como o FBI. Seu
uso permitiu que a polícia mexicana prendesse o megatraficante Joaquín “El
Chapo” Guzmán, levou ao desmonte de ações terroristas na Europa e revelou uma
rede global de abusos de crianças. Mas, como tecnologias são amorais, houve
danos colaterais gravíssimos.
O mesmo Pegasus que viabilizou a
captura de El Chapo foi usado pelo governo do México para espionar jornalistas,
advogados e ativistas dos direitos humanos. Em El Salvador, ocorreu uma invasão
idêntica, com perseguição aos jornalistas do El Faro, site
independente de notícias que resiste às hostilidades autoritárias do governo de
Nayib Bukele. No caso mais rumoroso, uma série de reportagens do consórcio de
jornalistas Forbidden Stories (Histórias proibidas) trouxe indícios de uso da
ferramenta na perseguição a dois jornalistas que acabaram assassinados: o
mexicano Cecilio Pineda Brito e o saudita Jamal Khashoggi, esquartejado dentro
da Embaixada da Arábia Saudita em Istambul. O consórcio ainda revelou que o
Pegasus espionou o presidente da França, Emmanuel Macron, e opositores do
primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu. Depois da publica&ccedi
l;ão dos escândalos, os Estados Unidos desistiram de adquirir produtos do NSO.
A Meta e a Apple processaram o NSO acusando o grupo de ser “cibermercenário” e
promover “pseudoguardiões que distribuem softwares intrusivos e prestam
serviços de vigilância indiscriminada, leia-se espionagem”.
A Polícia Federal brasileira, porém,
não viu nenhum inconveniente em tratar com o NSO. Naquele mês de julho de 2020,
Rolando Souza, ex-subordinado de Ramagem na Abin, estava no comando da PF e
reabriu a discussão para comprar o Pegasus. O Serviço de Operações de
Inteligência da corporação fez uma descrição minuciosa das funções que um
programa de escuta e monitoramento precisava ter – e a descrição se encaixava
com o Pegasus. Alexandre da Silveira Isbarrola, então diretor de inteligência
policial, encabeçou as negociações com o NSO. Nos diálogos captados pelo
Ministério Público, os representantes do grupo israelense, curiosamente, não
tratam o programa pelo nome, mas por um código – “boi”. A PF queria quinze
licenças do “boi”, capazes de vigiar 5 mil alvos por ano, a um custo de 7,5
milhões de dólares.
De novo, as negociações se
arrastaram, e a Polícia Federal acabou adquirindo outra ferramenta do NSO, o
PixCell. O programa custou 28 milhões de reais. Não é igual ao Pegasus, mas
também é altamente invasivo. Conforme a descrição da própria empresa, o PixCell
“localiza, intercepta, bloqueia, manipula comunicações”. É o que o mercado
conhece como “IMSI-catcher” – ou “receptor IMSI”, sigla, em inglês, para
“interceptador de identidade do assinante móvel internacional”. Um IMSI-catcher
é especialmente adequado para escutas ilegais porque dispensa a intermediação
de uma companhia telefônica. A ferramenta realiza a interceptação de forma
direta e autônoma – driblando, portanto, a autorização da Justiça.
A Polícia Federal não apenas comprou
o PixCell como tentou esconder a aquisição das autoridades. Em 2015, a
corporação já havia comprado uma ferramenta bastante invasiva, o RCS Galileo,
fabricada pela italiana Hacking Team, que é representada no Brasil pela
YasNiTech. A PF também tentou ocultar a compra do RCS Galileo. No bojo da
investigação, o Ministério Público perguntou formalmente se a PF tinha algum
desses programas espiões. A corporação respondeu que não, mas a fabricante
italiana entregou o jogo, ao confirmar a venda da ferramenta e apresentar a
nota fiscal. (Estranhamente, uma das parcelas do RCS Galileo não foi paga pela
PF, mas por um delegado, Hugo de Barros Correia, então chefe da divisão de
crimes fazendários da corporação. Procurado pela piauí, Correia não
quis falar.)
A falsa negativa da PF sobre a posse
das duas ferramentas levantou suspeitas. Em uma ação civil pública contra a
União, os procuradores escreveram: “Em quais procedimentos, investigações e
análises as tais ferramentas foram usadas? Por que manter a aquisição e uso
desses instrumentos de investigação e de obtenção de informação ocultos do
Ministério Público? Não se pode sequer afirmar que seria necessário manter
sigilo absoluto a respeito das ferramentas adquiridas. Considerando que seu uso
depende de autorização judicial, e sendo o processo criminal brasileiro
acusatório e dialético, tendo a defesa acesso a todas as provas produzidas, no
primeiro caso que fosse usada a ferramenta, seu uso tornar-se-ia público.”
A investigação dos procuradores
também colheu indícios de que o governo do Rio de Janeiro, durante a gestão de
Wilson Witzel, comprou quinze licenças do Pegasus. (Nas conversas por WhatsApp,
o valor do negócio variava de 45 a 73 milhões de reais.) O então secretário de
Polícia Civil, Marcus Vinicius de Almeida Braga, chegou a assinar uma licença
de importação do produto, documento exigido pelo governo de Israel. (Consultada
pela piauí, a Polícia Civil do Rio negou que tenha comprado o Pegasus.) Dias
antes da posse, Witzel visitou Israel, encontrou-se com o ministro da Segurança
Pública, Gilad Erdan, e prometeu assinar acordos de cooperação. “Os problemas
que existem em Israel são muito parecidos com os que nós temos hoje no estado
do Rio. Temos grupos armados similares a grupos terroristas”, disse Witzel. Em
&aac ute;udios recuperados, o Ministério Público achou indícios de que o
contato do governador era o lobista Ferreira da Silva, do NSO Group.
O Ministério Público Federal está
preocupado com a desordem na espionagem de órgãos estatais. “O que se verifica
aqui é um estado de coisas de patente ilicitude, de flagrante desconformidade
ao direito”, criticou. Em março de 2022, o MPF ingressou com ação civil pública
contra a União pedindo que a Abin e a Polícia Federal suspendessem o uso de
ferramentas invasivas sem autorização judicial e que o governo, no prazo de
trinta dias, apresentasse uma proposta de regulamentação do uso desses
programas. O pedido foi rejeitado em primeira e segunda instâncias. Está hoje
no Supremo Tribunal Federal, sob relatoria do ministro Edson Fachin. O caso
tramita sob sigilo.
A legislação nunca foi capaz de
eliminar a arapongagem. Há quase três décadas, a lei nº 9296/1996 proíbe e pune
o grampo ilegal. Três anos depois da promulgação da lei, a Polícia Militar do
Paraná foi flagrada invadindo os telefonemas de cinco lideranças do movimento
sem-terra. O caso terminou em pizza nos tribunais brasileiros, mas, dez anos
depois, o país foi condenado a pagar 100 mil dólares às vítimas pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Em 2008, a revista Veja revelou
que o então presidente do STF, Gilmar Mendes, tivera conversas captadas dentro
do seu gabinete. Suspeitou-se que a operação fora comandada pela Abin, que
havia pouco adquirira uma maleta de escuta telefônica.
Os casos são numerosos, mas a
confluência de dois fatores ajudou a agravar o quadro: o surgimento dos
smartphones nos anos 2000, com aplicativos de conversa que prescindem do
telefone convencional, se somou à disposição bisbilhoteira de integrantes do
governo Bolsonaro, o que estimulou a atividade das fabricantes de equipamentos
intrusivos no Brasil. Criou-se assim um descontrole ainda maior. “Por lei, cabe
ao Ministério Público o controle da atividade policial. Na prática, não há
controle algum. Não se sabe com qual finalidade esses dispositivos estão sendo
usados Brasil afora, nem por quem, nem contra quem. Estamos completamente no
escuro”, diz o procurador Vladimir Aras, do Ministério Público Federal.
Durante seis meses, a piauí investigou
o mercado de espionagem ilegal por parte de órgãos do Estado, ouvindo
policiais, promotores de Justiça, especialistas em cibersegurança, ativistas
ligados aos direitos humanos e políticos em seis estados e no Distrito Federal.
A conclusão é que, operando nas brechas da lei ou violando abertamente a
legislação, o Brasil virou um celeiro da arapongagem clandestina nas esferas
oficiais, o que não envolve apenas a Abin e a Polícia Federal, mas também as
polícias estaduais e até o Exército. A bisbilhotice oficial ocorre tanto para
fora dos órgãos oficiais, atingindo cidadãos comuns, como para dentro dos
órgãos oficiais, envolvendo disputas intestinas por espaço e poder.
Oprocurador Gilberto Valente Martins
estava em seu amplo gabinete na sede do Ministério Público do Pará, na manhã de
26 de maio de 2020, quando seu telefone fixo tocou. De um orelhão, um amigo,
delegado da Polícia Civil, pediu um encontro urgente, mas fez uma recomendação:
o procurador não devia levar seu aparelho de celular. Assim que se sentaram em
um banco da Praça Batista Campos, numa área central de Belém, o delegado,
assustado, certificou-se de que o procurador não fora seguido, nem estava sendo
observado. Então, alertou que as conversas por celular de Martins e outros
promotores estavam sendo interceptadas ilegalmente pela Polícia Civil. Era uma
notícia assustadora.
Naquela época, o Ministério Público e
a Polícia Federal investigavam o governador Helder Barbalho (MDB-PA) e seus
secretários no âmbito de três esquemas de corrupção: fraudes milionárias na
contratação de organizações sociais (OSS) para gerir hospitais públicos e
compra superfaturada de cestas básicas e de aparelhos respiradores para
tratamento de pacientes com Covid. Um dos principais alvos dos investigadores
era Parsifal de Jesus Pontes, então chefe da Casa Civil de Barbalho. Pontes era
suspeito de atuar como operador de propinas do governador. Em seu celular, a
polícia encontrara comprovantes de compras de roupas caras para a mulher de
Barbalho.
De imediato, suspeitou-se que a
intercepção ilegal da Polícia Civil se devia a essas investigações em curso. A escuta
vinha acontecendo por meio de um programa chamado GI-2, fabricado pela empresa
israelense Verint Systems, que depois desmembrou o setor de inteligência e
deu-lhe o nome de Cognyte Software. A Polícia Civil do Pará havia adquirido o
produto em fevereiro daquele ano. Não fez licitação e escolheu um modelo que
custava 5 milhões de reais.
Com o tamanho de uma mala de viagem
grande, o equipamento do GI-2 – que é um tipo de IMSI-catcher – cabe no
porta-malas de um veículo de médio porte e é controlado a partir de um
notebook. O aparelho opera como se fosse uma Estação Rádio Base (ERB), cujas
populares antenas capturam os sinais do celular. Todos os celulares em
funcionamento numa certa área (o alcance depende da potência da antena acoplada
ao GI-2) deixam de enviar seus sinais para a ERB mais próxima, como acontece
regularmente, e passam a enviá-los ao equipamento do GI-2.
A Cognyte costuma vender o GI-2 junto
com o programa FirstMile, o mesmo que a Abin de Bolsonaro usou para espionar
adversários políticos. Uma ferramenta complementa a outra. O GI-2 também
localiza celulares em tempo real, mas o FirstMile tem um alcance espacial
maior. Assim, com os dois programas, é possível localizar um telefone a
quilômetros de distância por meio do FirstMile, aproximar-se fisicamente do
alvo e, então, recorrer ao GI-2 para interceptar a comunicação. O GI-2 tem um
funcionamento engenhoso. Quando capta o sinal de um telefone, o programa
rebaixa a conexão para 2G, que é mais antiga, mais lenta e não é criptografada.
Com isso, consegue interceptar as ligações telefônicas convencionais e
mensagens de SMS, dentro da área monitorada. Mais que isso: é capaz até de
editar uma mensagem do SMS, sem que a pessoa espionada perceba. O GI-2 ainda
bloqueia o sinal de internet do celular, mas não consegue quebrar a
criptografia de aplicativos como o WhatsApp.
Com uma versão potencializada, o GI-2
também é capaz de abrir o microfone do celular do alvo de espionagem para
captar a conversa ambiente. O portfólio da Cognyte sobre o programa, obtido
pela piauí, descreve textualmente as capacidades do GI-2: “Controle
as chamadas de voz e mensagens de texto enviadas ou recebidas pelo dispositivo
do alvo […], ative o microfone do dispositivo do alvo e escute secretamente nas
imediações.” Neste ponto, a lei brasileira é clara e criminaliza interceptações
de comunicação sem autorização judicial.
Mas nada disso deteve a espionagem.
Naquele maio de 2020, também chegou à
Superintendência da Polícia Federal em Belém a informação de que os próprios
agentes também estavam sendo vigiados pela Polícia Civil por meio do GI-2
instalado numa van ali perto. Discretamente, policiais da PF foram até o
estacionamento da sede da corporação no bairro de Nazaré, em Belém, e
encontraram a maleta do GI-2 no porta-malas de uma van. A partir daquele
momento, promotores e policiais federais passaram a evitar o uso de celulares e
priorizar conversas presenciais, sem telefone no bolso.
O então delegado-geral da Polícia
Civil paraense, Alberto Henrique Teixeira de Barros, tinha razões familiares
para investigar promotores e policiais federais. Parsifal Pontes, o chefe da
Casa Civil do governo, é seu cunhado. Além disso, a mulher do delegado-geral,
Denise, estava lotada na Casa Civil e havia participado da comissão de
licitação que resultou na contratação de duas OSS – e num desvio estimado em
455 milhões de reais. Quando desconfiou que sua mulher e seu cunhado estavam na
mira dos agentes federais e promotores, o delegado Alberto Barros começou a
bisbilhotá-los com o GI-2 e instaurou um inquérito na Polícia Civil. Queria
apurar se um dos testas de ferro do esquema de compras fraudulentas de cestas
básicas estava, ou não, sob a mira da investigação da PF.
No dia 29 de setembro de 2020, numa
operação deflagrada pela Polícia Federal, Parsifal Pontes foi preso no caso da
contratação das oss. O apartamento do delegado Barros e de sua mulher e o
gabinete do governador foram alvos de uma operação de busca e apreensão. A
Polícia Federal também apreendeu o equipamento de GI-2 na sede da Polícia
Civil. Pontes e Barros perderam os cargos – mas Barros, tempos depois, acabou
nomeado por Barbalho para ser secretário de Justiça e Direitos Humanos do Pará,
cargo que ocupou até o início deste ano. Todos os três – Barbalho, Pontes e
Barros – respondem a ação de improbidade administrativa no Tribunal de Justiça
do Pará, ainda sem sentença. No âmbito penal, o inquérito da pf continua em
curso.
A reportagem apurou que a perícia
realizada pela Polícia Federal no equipamento de GI-2 não encontrou indícios da
suposta vigilância feita contra promotores e policiais federais. A piauí perguntou
à assessoria da pf se os peritos encontraram algum indício de apagamento de
informações coletadas pelo GI-2, mas a assessoria não respondeu. No entanto, um
especialista, ouvido pela piauí sob anonimato para não se
indispor com as empresas, diz que é possível apagar informações coletadas pelo
GI-2 sem deixar rastros. Sem os indícios, o equipamento foi devolvido à Polícia
Civil. Indagada se o programa espião segue em uso, a assessoria de imprensa da
Polícia Civil informou apenas que “o equipamento de inteligência é utilizado de
acordo com as normas legais que regulame ntam as investigações criminais”.
OGI-2 tornou-se uma febre no governo
Bolsonaro, mas começou a entrar no Brasil a partir de 2015. Na época, ainda na
gestão de Dilma Rousseff, aprovou-se uma emenda à lei de combate às
organizações criminosas permitindo a compra de equipamentos de inteligência sem
licitação ou publicidade. “Abriu-se ali uma brecha legal para todo tipo de
abuso, com o argumento de que o crime não pode conhecer as ferramentas do
Estado para combatê-lo”, diz Bruno Brandão, diretor executivo da Transparência
Internacional no Brasil. “O argumento não cola porque esse tipo de equipamento
é oferecido abertamente pelas empresas do ramo em feiras mundo afora.”
Com a nova legislação, o equipamento
e respectivo programa foram adquiridos – sempre sem licitação – por sete
governos estaduais: além do Pará, a compra foi feita pelos estados de Alagoas,
Amazonas, Espírito Santo, Mato Grosso, São Paulo e Rio Grande do Sul. O
Exército, então sob o comando do general Eduardo Villas Bôas, também está na
lista. A apuração da piauí não encontrou elementos sólidos
sobre o uso do GI-2 por parte do Exército. A Polícia Federal, no entanto, abriu
uma investigação para apurar se os militares recorreram ao equipamento nas
maquinações golpistas durante o governo Bolsonaro. O Exército não informa se
fez uso do GI-2, nem mesmo se comprou o equipamento, por se tratar de
“atividade de inteligência”, coberta por sigilo legal.
A Cognyte, fabricante do GI-2, soube
penetrar no mundo militar. Além do lobista Caio Santos Cruz, o filho do ex-ministro,
a empresa recorreu aos trabalhos dos sócios Luiz Adolfo Sodré de Castro,
general da reserva, e Hélcio Bruno de Almeida, tenente-coronel do Exército que
foi acusado pela CPI da Covid de irregularidades na compra de vacinas contra o
coronavírus. Dos três, o general Sodré de Castro tinha a maior influência. Ele
é amigo do general Villas Bôas, comandante do Exército de 2015 a 2019 e hoje
recluso devido a uma doença degenerativa. Quando assumiu, Villas Bôas criou um
grupo de generais amigos, batizado de “conselho de notáveis”, que se reunia em
almoços e rodas de chimarrão em Brasília. Villas Bôas e Sodré de Castro são
gaúchos.
Nesses encontros, não era incomum que
Sodré de Castro conversasse com Villas Bôas sobre equipamentos de inteligência
da então Verint e futura Cognyte. A certa altura, Villas Bôas repassou ao
vice-chefe do Estado-Maior, general Luiz Eduardo Ramos, a tarefa de abrir
licitações para adquirir algumas ferramentas. Como as compras eram em dólar,
optou-se por fazê-las por meio da Comissão do Exército em Washington, vinculada
ao Comando do Exército em Brasília, a fim de contornar as flutuações cambiais.
De acordo com um oficial próximo de Villas Bôas e de Sodré de Castro, Ramos
costumava telefonar do Brasil para a comissão pedindo agilidade na burocracia
para apressar as negociações.
Deu certo. As compras começaram em
2016, ainda no governo de Michel Temer, e só cessaram em 2020, um ano depois da
saída de Villas Bôas do Comando do Exército, quando o general Ramos já era
ministro-chefe da Secretaria de Governo de Bolsonaro. Nesses quatro anos, de
acordo com o Portal da Transparência do governo federal, o Exército pagou 70,7
milhões de reais à empresa israelense. Como todos os contratos estão sob
sigilo, não é possível afirmar quanto desse dinheiro foi destinado à compra do
GI-2. Mas a piauí teve acesso a uma proposta comercial da
ex-Verint, na qual a empresa israelense oferecia o GI-2 à Comissão do Exército
em Washington, em 2019. A proposta ocupava apenas uma página e oferecia a
ferramenta por 4,5 milhões de dólares. A reportagem apurou com fontes na pf
que, de fato, o produto foi adq uirido pelo Exército.
A piauí também
consultou os sete governos estaduais que compraram o GI-2 para saber em que
tipo de investigação o produto é usado e se sua aplicação se dá mediante
autorização judicial. Além do Pará, as assessorias das Polícias Civis de Mato
Grosso, Rio Grande do Sul e São Paulo responderam, ainda que parcialmente. Em
Mato Grosso, a polícia disse que usa a ferramenta na “localização de indivíduos
alvos de mandado judicial”. A polícia gaúcha disse que a ferramenta ainda não
está em atividade e só será usada com ordem da Justiça. Em São Paulo, a polícia
confirmou a compra do GI-2, mas não falou sobre seu uso. Os demais estados não
se manifestaram, mas é no Amazonas que se tem o caso mais repulsivo. Ali,
aconteceu o uso mais brutal do GI-2 de que se tem notícia até agora.
Tão logo assumiu o poder, em janeiro
de 2018, o governador do Amazonas, Wilson Lima (na época do PSC e hoje filiado
ao União Brasil), anunciou o nome do novo secretário de Segurança Pública:
Louismar Bonates, um coronel da reserva da Polícia Militar. Os especialistas e
estudiosos na área de segurança chegaram a pensar que se tratava de uma
brincadeira de mau gosto. Afinal, Bonates tinha um currículo demoníaco. Já fora
investigado por envolvimento em um grupo de extermínio formado por policiais
militares em Manaus – o corpo de uma vítima fora enterrado no sítio de Bonates
depois de ser obrigado a cavar a própria sepultura. Além disso, era próximo de
Wallace Souza, o apresentador de tevê suspeito de mandar matar pessoas para
aumentar a audiência de seu programa Canal livre, exibido na antiga
TV Rio Negro. O caso de Wallace Souz a, que morreu em 2010, apareceu no
documentário Bandidos na TV, da Netflix.
Bonates tinha outra nódoa grave no
currículo. Em 2015, quando exercia o cargo de secretário de Administração
Penitenciária, ele fez uma reunião na biblioteca de um presídio em Manaus com o
líder da facção criminosa conhecida como Família do Norte (FDN). Na reunião,
combinou-se uma trégua. A FDN reduziria os homicídios na sua disputa com a
facção rival, o Primeiro Comando da Capital (PCC), e em troca receberia tratamento
privilegiado na prisão. Para a Polícia Federal, esse acordo fortaleceu tanto a
FDN que resultou, em janeiro de 2017, em uma das maiores chacinas
penitenciárias da história nacional: 56 mortos.
Quando tomou posse como secretário de
Segurança Pública, Bonates passou a ter acesso a um equipamento de espionagem
que o órgão havia comprado em 2016 por 6,7 milhões de reais – o GI-2. Dois anos
depois de sua posse, chegou ao Ministério Público do Amazonas a informação de
que agentes da Secretaria de Segurança estavam extorquindo comerciantes de ouro
depois de monitorá-los com o GI-2 e outro programa, conhecido como Guardião.
“Na investigação, muitos desses comerciantes de ouro relatavam que os policiais
tinham informações muito precisas dos contatos e das rotinas deles”, diz um dos
membros do Ministério Público ouvido pela piauí sob a condição de manter sua
identidade em sigilo.
Em 25 de janeiro de 2021, um dos
empresários, Raimundo José da Cruz Júnior, contou ao 10º Distrito Integrado de
Polícia em Manaus que seu motorista transportava 38,5 kg de ouro de origem
legal quando foi abordado por dezesseis policiais civis armados. Levado para a
Secretaria de Segurança Pública, o motorista foi obrigado a assinar um recibo
de restituição do ouro. Era falso. Os policiais civis ficaram com a mercadoria
e, dias depois, devolveram apenas 9 kg a Cruz Júnior. Ficaram com 25 kg de
ouro, avaliados em 11 milhões de reais.
Ao investigar o caso, o Ministério
Público descobriu outra extorsão, dessa vez contra o garimpeiro Wagner Flexa
Saita, também monitorado com o GI-2. Em 22 de fevereiro de 2021, apenas um mês
depois do achaque ao comerciante Cruz Júnior, o garimpeiro taxiava um avião
fretado no Aeroclube de Manaus quando quatro policiais civis armados invadiram
a pista e impediram a decolagem, alegando que havia suspeita da presença de
drogas na aeronave. A bordo, encontram 7 kg de ouro – de origem legal – e
ficaram com 2,2 kg. O garimpeiro denunciou o caso ao Departamento de Repressão
ao Crime Organizado da própria Polícia Civil – e logo foi chamado para uma
reunião incomum. Bonates e o subsecretário, o delegado Samir Garzedim Freire,
queriam conversar com o garimpeiro. Não se sabe o que disseram, mas o fato é
que o garimpeiro mudou sua versão, dizendo que havia achado o ouro no avião e
que tudo não passara de “um mal-entendido”. Garzedim Freire e mais três
policiais são réus em ação penal, acusados de associação criminosa, extorsão e
fraude processual. O processo não foi julgado. Bonates não chegou a ser
denunciado no caso, mas, desgastado com o episódio, pediu demissão da
secretaria.
Segundo suspeitas do Ministério
Público, Bonates e Garzedim Freire também usaram o GI-2 para espionar políticos
de oposição ao governo. Entre eles, o deputado estadual Péricles Rodrigues do
Nascimento, do PL, conhecido como Delegado Péricles. Em 2021, o parlamentar foi
relator da CPI da Covid na Assembleia Legislativa que investigou o alto índice
de mortes nos hospitais do estado no início daquele ano, em razão da pandemia.
“Fui informado por fontes na polícia que eu fui monitorado com o GI-2”, disse
Nascimento à piauí. Ele é delegado aposentado e hoje integra a base
de apoio ao governador Lima.
Mas as coisas ainda ficariam piores.
Depois de passar vinte dias preso,
Garzedim Freire voltou a ser ouvido pelo Ministério Público. A certa altura,
deu uma informação gravíssima. Disse que, durante a gestão de Bonates, a
Secretaria de Segurança Pública do Amazonas usara o GI-2 para localizar – e
depois torturar e assassinar – ribeirinhos ao longo do Rio Abacaxis. A história
começou quando o secretário executivo do Fundo de Promoção Social do Amazonas,
Saulo Moysés Rezende Costa, fazia pesca esportiva no Abacaxis, uma atividade
ilegal na região, e foi hostilizado por indígenas e ribeirinhos. No entrevero,
o secretário acabou levando um tiro de raspão. Dez dias depois, dez policiais
militares à paisana, encapuzados e armados com fuzis, apareceram na comunidade
em busca do autor do tiro. Foram recebidos a bala. Dois policiais morreram e
dois ficaram feridos. A vingança veio dois dias depois, na forma de um
massacre.
A Secretaria de Segurança mobilizou
130 policiais militares para caçar Valdelice Dias da Silva, o Bacurau, apontado
como autor do tiro de raspão. E fez toda a operação com o uso do GI-2, segundo
Garzedim Freire. Como prova, entregou o termo de retirada da maleta do
equipamento pela PM. O aparato localizou os ribeirinhos e monitorou seus
movimentos. Durante dez dias, de 4 a 14 de agosto de 2020, os policiais, usando
balaclavas e sem identificação nas fardas, percorreram as comunidades
ribeirinhas aterrorizando os moradores: dezenas de homens e mulheres torturados
(alguns foram sufocados com sacos plásticos na cabeça, outros foram ameaçados
com fogo depois de terem o corpo embebido em gasolina), crianças foram
trancafiadas por vários minutos dentro de freezers, três casas foram
incendiadas em aldeia indígena e oito pessoas foram assassinadas – dois corpos
seguem desaparecidos. Em r azão da barbárie, a Polícia Federal indiciou Bonates
e o comandante da PM na ocasião, coronel Ayrton Norte, por homicídio, tortura,
associação criminosa, cárcere privado e obstrução de Justiça. Até o fim de
novembro, Bacurau seguia foragido.
A Polícia Federal apreendeu o GI-2 e
encaminhou para o Instituto Nacional de Criminalística, em Brasília. A perícia
confirmou que o GI-2 consegue captar conversas telefônicas e encontrou
registros de uso do equipamento de 2015 até julho de 2021, mas não obteve dados
de quais telefones foram interceptados. As ferramentas, então, foram devolvidas
à Secretaria de Segurança e continuam sob uso da corporação policial. Em julho
de 2022, a Polícia Civil fez outro negócio com a Cognyte: comprou, por 6
milhões de reais, uma maleta capaz de monitorar telefones satelitais, muito
comuns na Amazônia devido à escassa cobertura de sinal dos celulares
convencionais. A ferramenta é semelhante ao GI-2 e, segundo a proposta
comercial da empresa enviada ao governo amazonense, intercepta chamadas de voz
e de SMS.
Procurados pela piauí, nem Garzedim
Freire, nem Bonates, nem a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas se
manifestaram.
Em 1996, dois jovens engenheiros
catarinenses abriram uma loja de produtos de informática em Florianópolis.
Vendiam computadores e impressoras. Chamava-se Suntech Informática Ltda. Na década
seguinte, a loja passou a desenvolver e a vender dispositivos de monitoramento
telefônico e telemático, como o Vigia. É um programa não intrusivo que faz
apenas a interface entre as operadoras de telefonia e a polícia ou o Ministério
Público no monitoramento de suspeitos com ordem judicial. Em 2011, porém, a
Suntech mudou de status: tornou-se a representante oficial no Brasil da empresa
israelense Verint Systems Inc., mais tarde chamada de Cognyte.
Depois desse movimento, começou a
surgir a desconfiança de que a Suntech deixara de ser uma inocente loja de
informática e passara a vender equipamentos de escuta ilegal. Em maio de 2016,
a suspeita ganhou novos contornos. O delegado aposentado Diógenes Duarte Barros
de Medeiros, que acabara de ser nomeado procurador-geral da Assembleia
Legislativa de Santa Catarina, compareceu à PF em Brasília para fazer uma
denúncia. Contou que a Assembleia estava montando um tal de “núcleo de
informações estratégicas de caráter público”. Era uma iniciativa invasiva e
estranha à rotina do Parlamento, pois previa “operações de investigação” e
“quebras de sigilo”, em parceria com o Ministério Público. No cumprimento dessa
tarefa, Barros de Medeiros recebia representantes de equipamentos de
espionagem. Numa ocasião, re cebeu José Augusto Alves, que se apresentou como
representante da Suntech. A certa altura da conversa, Alves lhe ofereceu uma
maleta de interceptação telefônica “à pronta entrega”. O delegado recusou a
oferta e resolveu denunciar o caso à PF na capital federal.
Seis meses mais tarde, em 9 de
novembro de 2016, um grupo de agentes da PF em Florianópolis confirmou que a
Suntech vendia aparato de espionagem. Em visita à empresa – na qual não ficou
claro se os agentes se identificaram como policiais federais –, um funcionário,
Fabio Shimizu, demonstrou o funcionamento dos equipamentos que vendia. Entre
eles, estavam o GI-2, o programa SkyLock, muito semelhante ao FirstMile, e o
WI2, que finge ser uma rede wi-fi já conhecida pelo aparelho celular e o leva a
registrar-se nesta rede automaticamente. A partir disso, o programa permite
capturar dados, como contas e senhas de e-mail e redes sociais. Em relatório da
visita, ao qual a piauí teve acesso, os agentes federais informam que a Suntech
garantiu que usava redes de operadoras de telefonia “de fora do país”, de modo
que não havia interação “com as operadoras nacionais”.
A partir daí, começaram movimentos
estranhos. A PF pediu a quebra do sigilo bancário, fiscal e telefônico de José
Augusto Alves e cinco diretores da Suntech. (Um funcionário da empresa, Luciano
Teixeira, respondia a processo na Justiça Federal por contrabando de
bloqueadores de sinal de celular do Paraguai.) No entanto, o MPF e a juíza do
caso não atenderam ao pedido, dizendo que configuraria “verdadeira devassa nos
negócios de uma empresa que aparentemente opera legalmente no mercado”. Diante
dessa negativa, a investigação da PF mudou completamente de foco. A Suntech não
apenas sumiu do inquérito como passou a ser elogiada pelo delegado da
investigação, enquanto as atenções se voltaram para as suspeitas de que José
Augusto Alves teria informantes entre policiais civis e federais de Santa
Catarina. Alves e outros seis investigados, incluin do dois delegados, um da
Polícia Civil e outro da Polícia Federal, respondem a ação penal por
organização criminosa, ainda não julgada.
Até hoje não se sabe por que a
Polícia Federal começou a investigar a Suntech e, pouco depois, o delegado da
investigação, Érico Barboza Alves, passou a considerá-la uma empresa de
primeira linha. A Assembleia Legislativa, por sua vez, também não explica por
que queria montar uma central de monitoramento dentro do próprio Parlamento. O
então presidente da Casa, Gelson Merisio, e o delegado Barros de Medeiros não
quiseram falar. A assessoria de imprensa da Assembleia informou que o tal
“núcleo de informações estratégicas de caráter público” não foi constituído,
sem dar detalhes. A assessoria do Ministério Público de Santa Catarina não se
manifestou.
Em 2021, quando a Verint finalmente
passou a chamar-se Cognyte Software Ltd., a Suntech adotou o nome Cognyte
Brasil S.A. Sua sede ocupa quatro andares de um moderno edifício no Centro de
Florianópolis e dispõe de um rigoroso sistema de segurança. A empresa já
assinou pelo menos trinta contratos com o poder público, cujos valores somados
chegam perto de 100 milhões de reais. (É possível que o número de contratos e
os valores sejam superiores, considerando que, nos portais de transparência e
diários oficiais, não aparecem os contratos considerados sigilosos.)
Entre os contratos públicos, sete
referem-se à compra do polêmico GI-2. Uma unidade de elite da Polícia Civil de
São Paulo comprou o equipamento por 5,9 milhões de reais. (O governo paulista,
acionado pela piauí por meio da Lei de Acesso à Informação,
negou-se a revelar a íntegra do contrato.) O responsável pela compra, Osvaldo
Nico Gonçalves, é hoje o número dois da Secretaria de Segurança Pública da
gestão do governador Tarcísio de Freitas. Em março passado, a Polícia Militar
paulista reservou 9 milhões de reais no orçamento para adquirir um “sistema de
radiofrequência portátil”. A piauí perguntou se a verba se
destinava à compra do GI-2, mas a assessoria de imprensa da PM não se
manifestou.
No início de novembro, a piauí procurou
a Cognyte em Florianópolis para, entre outros pontos, entender a posição da
empresa sobre as características intrusivas dos produtos que oferece. Uma
funcionária orientou a revista a deixar telefone e e-mail para um futuro
contato, que nunca ocorreu. A reportagem também enviou mensagens via WhatsApp
para três dos quatro diretores da empresa. Nenhum deles respondeu.
“A opacidade das polícias é enorme e
o controle externo da atividade policial é muito precário, para não dizer
inexistente”, critica Pedro Amaral, pesquisador do IP.rec, instituto de
pesquisa em direito e tecnologia do Recife. Em Mato Grosso, a falta de
transparência e controle da atuação policial eram de tal ordem que resultaram
no escândalo que ficou conhecido como “grampolândia pantaneira”. Um grupo de
policiais militares montou uma central clandestina de monitoramento telefônico
em Cuiabá para bisbilhotar ilegalmente deputados, juízes e jornalistas. Segundo
a Polícia Civil, oitenta números de telefone foram grampeados ilegalmente.
Em abril de 2022, a seis meses das
eleições, a Secretaria de Segurança Pública de Mato Grosso comprou o GI-2 da
Cognyte por 4,67 milhão de reais. Entre as justificativas para a compra está o
“combate de fake news, através da localização de aparelhos
celulares suspeitos de criar ou disseminar [notícias falsas]”. É uma
justificativa exótica. Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, comenta: “É estranho, do ponto de vista estritamente
policial, usar uma ferramenta tão cara e poderosa para investigar crimes contra
a honra, cujas penas são muito baixas. Esse argumento de combate a fake
news, para mim, tangencia a política eleitoral.” Procurada pela piauí, a
Polícia Civil mato-grossense enviou uma nota em que faz diversos comentários,
mas não se manifesta sobre o uso do GI-2 contra fake news.
As explicações oficiais para o uso de
equipamentos de espionagem vêm gerando desconfianças. A Secretaria da
Ressocialização e Inclusão Social de Alagoas, por exemplo, abriu processo para
a compra do GI-2 em outubro de 2019. A justificativa: monitorar os cerca de 5
mil detentos das oito unidades do complexo penitenciário de Maceió,
considerando que boa parte deles pertence ao Primeiro Comando da Capital e ao
Comando Vermelho. Os equipamentos do tipo IMSI-catcher, de fato, têm sido
usados para monitorar celulares nos presídios. O diretor de inteligência do
Departamento Penitenciário Nacional, Sandro Abel Sousa Barradas, informa que
existem hoje dez maletas do tipo no Brasil. Todas são antigas, com mais de
cinco anos de uso, e não têm o módulo que ativa interceptação de conversa.
Quando encomendou a compra do GI-2, o
governo de Alagoas disse que o monitoramento só seria feito “com mandados
judiciais que serão solicitados à Vara de Execuções Penais”. No entanto, três
anos depois da compra do equipamento, a 16ª Vara Criminal da Capital, que cuida
das execuções penais no estado, ao ser indagada pela piauí sobre
o número de pedidos de mandado judicial que recebeu, informou que “não dispõe
dessa informação”. O presidente do Sindicato dos Policiais Penais de Alagoas,
Vitor Leite da Silva, nem sabia que o GI-2 fora comprado. “A Secretaria não nos
informou sobre isso, estou sabendo agora por você”, disse. “Quem garante que há
autorização judicial no uso desse equipamento? Policiais penais também podem
estar sendo monitorados ilegalmente”, disse. Em n ota, a Secretaria da
Ressocialização e Inclusão Social limitou-se a dizer que o equipamento não é
mais utilizado, sem fornecer mais detalhes.
OInstituto Nupef, no Rio de Janeiro,
mantém programas de segurança digital voltados para ajudar ativistas ambientais
e de direitos humanos no Brasil a contornar as tentativas de espionagem. Os
programas envolvem a criação de data centers desvinculados das
nuvens de dados do Google ou da Apple, e a construção de sistemas de
comunicação fora da internet. Nos últimos seis anos, o Nupef criou 35 redes
desse tipo pelo país. Atualmente, a entidade estuda o desenvolvimento de
ferramentas tecnológicas para detectar a presença de programas espiões
individualmente em cada celular, nos moldes do que fazem organizações voltadas
ao tema na América do Norte e na Europa, como o Citizen Lab, da Universidade de
Toronto, Canadá. Diz Oona Castro, diretora de Desenvolvimento Institucional do
Nupef: “De fato, os ambientalistas e os defensores de direitos human os carecem
de uma organização de referência para atendimento individual. Mas as ameaças
são muitas e nós somos uma organização pequena.”
As perspectivas não são muito
animadoras. No ano passado, a Abin, depois de negar ter comprado o Pegasus,
estava avaliando a compra de um equipamento do tipo IMSI-catcher. Queria
adquirir o GI-2 ou o PixCell para “contramedidas de vigilância”. Ou seja:
verificar, por exemplo, se uma determinada área tem escuta ambiental instalada
– nada mais. É uma ferramenta comum nas atividades de um órgão de inteligência,
mas, como mostram os casos relatados nesta reportagem, um IMSI-catcher pode ser
altamente invasivo e tem sido usado à margem da lei. Indagada se comprou o GI-2
ou o PixCell, a Abin – a mesma agência que está sendo investigada por mais de
30 mil rastreamentos ilegais – não quis informar nem se comprou essas
ferramentas.
Esse conteúdo foi
publicado originalmente na piauí_207 com o título “Os espiões
estão aí”.
A
realidade é furta-cor https://bit.ly/3Ye45TD
Postado por Luciano Siqueira às 10:15 Nenhum
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