Papa Francisco, um passo adiante
Edison Veiga/BBC
E essa habilidade, embora tenha
atingido proporções globais nos últimos anos, não é nova.
"Quando arcebispo de Buenos
Aires, recordo que [Jorge] Bergoglio [seu nome antes de se tornar papa]
enfrentava a oposição de alguns bispos mais conservadores, como o monsenhor
[Héctor] Aguer [que, quando arcebispo de La Plata, era considerado o maior
antagonista de Bergoglio no episcopado argentino]", afirma à BBC News
Brasil o jornalista e escritor argentino Luis Rosales, biógrafo do papa e autor
do livro Francisco: El Argentino Que Puede Cambiar El Mundo ("Francisco:
o argentino que pode mudar o mundo", em tradução livre).
"Ele lidava com isso da mesma
forma como tudo se lida na Igreja: com sórdidas relações de equilíbrio, algumas
vezes há ofensas, em outras há a convivência um tanto hipócrita", comenta
o biógrafo.
Nos últimos meses, Francisco mexeu algumas peças no tabuleiro e, ao
que parece, vem preferindo fazer valer o seu poder, em vez de seguir na
"convivência um tanto hipócrita".
Em 11 de novembro, ele demitiu do posto o então bispo de Tyler, no Texas,
Joseph Strickland.
Duas semanas depois, veio à público
outra decisão do papa no sentido de punir um opositor, também do clero
americano: em uma decisão sem precedentes, Francisco decidiu despejar o
cardeal Raymond Burke de seu apartamento funcional no Vaticano e cortar
seu salário.
Burke é um dos maiores críticos do papa, sendo considerado um dos líderes da
oposição na cúpula da Igreja. Strickland costuma se posicionar contra as pautas
de Francisco, sobretudo quanto ao acolhimento de homossexuais e outras questões
morais.
Francisco vem ainda reduzindo os
poderes do grupo católico conservador Opus Dei, organização presente em mais de
60 países.
Antes considerada uma intocável
prelazia pessoal do papa, a instituição é mantida na rédea curta por Francisco.
No ano passado, o Vaticano diminuiu o
poder e a independência do grupo, obrigando-o a reportar-se ao Dicastério para
o Clero, com submissão anual de relatórios.
Em agosto de 2023, mais um golpe
contra o Opus: em decreto, Francisco extinguiu os privilégios de uma prelazia —
e a única que vigorava era esta —, relegando a organização à categoria de
associação clerical pública.
Parece apenas uma questão
burocrática, mas não é.
Como prelazia pessoal do papa, criada
há 40 anos — assim oficializada em 1982 por João Paulo 2º (1920-2005) —, ela
não estava sob a jurisdição de nenhum bispo, uma condição única dentro dos
organismos canônicos.
Mais recentemente, em decisão
histórica, Francisco autorizou bençãos a casais homossexuais.
Professor na Pontifícia Universidade
Gregoriana, em Roma, e vice-diretor do Lay Centre, também em Roma, o
vaticanista Filipe Domingues entende que Francisco sempre soube receber as
críticas, mas agora "vem agindo com uma mão mais dura onde enxerga que
está existindo divisão".
"Foi o mesmo com a missa antiga:
ele começou a ver que aqueles que celebram a missa antiga não estavam indo mais
na missa por causa dela. Muitos estavam indo porque virou um grupo, quase que
uma seita dentro da Igreja. E eles estavam articulando de forma
ideológica", compara Domingues, citando o caso do rito tridentino, em
entrevista à BBC News Brasil.
As celebrações no rito antigo, em
latim e com o padre de costas para os fiéis, eram norma na Igreja do século 16
até o concílio Vaticano 2º — realizado entre 1962 e 1963.
Nas últimas décadas, seguiu sendo
permitida, mas apenas em contextos específicos.
Em 2021, Francisco entendeu que
muitos dos que diziam "preferir" este rito em detrimento do
contemporâneo estavam, na verdade, instrumentalizando a liturgia, em um
processo de negacionismo dos tempos atuais e, em última instância, da própria
condição do argentino como papa.
Então, decidiu praticamente proibir
esse tipo de missa.
"Ele fez isso, agiu de forma
mais dura, com os dois casos americanos, Burke e Strickland", pontua o
vaticanista.
Já quanto ao Opus Dei, ele vê
diferenças.
"O grupo é muito fiel ao papa
Francisco. Cito sempre o Opus Dei como exemplo de que a questão chave não é ser
conservador, mas sim ser ideologizado e instrumentalizado como contrário ao
sucessor de Pedro dentro da Igreja."
Pela tradição católica, Pedro, um dos
12 apóstolos, é considerado o primeiro papa da história. E todos os que vieram
depois passariam a integrar uma linha sucessória sagrada.
"O Opus Dei, como instituição,
não faz isso. Pode até ter nela indivíduos um pouco mais radicais, um pouco
mais críticos. Mas o Opus não é um movimento de resistência ao papa Francisco.
Eles têm hesitações e questões, como todo mundo, quanto a algumas posições do
papa, mas não são um movimento de resistência", explica.
Para o vaticanista italiano Andrea
Gagliarducci, do grupo ACI-EWTN, condutas do tipo colocam em xeque a própria
ideia de abertura proposta pelo pontífice.
"Eu não sei qual é o projeto do
papa Francisco para a Igreja. Há uma visão, mas não um plano específico, nem
algo que se assemelhe a um plano", critica.
"Fala-se muito dessa ideia de
abertura sinodal do papa na Igreja, mas depois é o próprio papa quem não aplica
a sinodalidade, utilizando suas prerrogativas de soberano absoluto até o
fim."
"Há como uma contradição
fundamental, a ideia de um rei que impõe a liberdade sem praticá-la".
Preocupações sociais e ambientais
Para especialistas, as questões de
fundo moral que são utilizadas para criticar Francisco podem ser só
"cortina de fumaça" para que não se enxergue aquilo que realmente
incomoda parte do status quo: as preocupações sociais e ambientais do
argentino.
"Ele enfrenta uma resistência
mais ou menos desde o começo do pontificado e, principalmente, depois da
Laudato Si', a encíclica sobre questões econômicas e ambientais que teve uma
grande repercussão no ambiente diplomático, boa recepção no mundo da ciência e
influenciou o Acordo de Paris (tratado internacional sobre mudanças climáticas,
adotado em 2015)", contextualiza Domingues.
"Algumas pessoas dentro da
Igreja acharam que não era posição do papa falar dessas coisas."
Antes, como lembra o vaticanista, ele
já havia publicado um texto em que afirmava que "essa economia mata".
"Os críticos começaram a dizer
que o papel dele não era esse, que ele deveria se concentrar mais nas questões
pastorais", prossegue.
Desta forma, segundo o especialista,
o problema não é teológico, mas social.
"Os resistentes, em geral mais
conservadores, não criticam a teologia de Francisco, mas a crítica social que
ele faz. Isso, em contextos polarizados como o Brasil, os Estados Unidos e
parte da Europa, onde há movimentos de extrema-direita na sociedade, se reflete
também na Igreja", acrescenta.
Para Domingues, isso faz com que toda
questão de ordem moral abordada por Francisco seja posta em descrédito por esse
grupo barulhento.
"A função é desqualificar a
autoridade moral do papa para que tudo aquilo que ele diga perca valor",
explica. "Para que as pessoas não o ouçam."
Nesse sentido, ele entende que a
atenção acaba desviada dos temas que realmente seriam mais caros a Francisco,
"a crítica à política econômica, ao nacionalismo, à religião desencarnada
[alheia aos problemas do mundo]".
A tática desses grupos conservadores
consiste em rotulá-lo de forma a desqualificar sua autoridade perante a parte
da sociedade.
"Chamam-no de comunista e várias
outras coisas. Dizem que ele está cometendo heresias. Aos poucos, isso passou a
ser ideologizado. O antes era uma crítica orientada por discordâncias
políticas, agora é uma questão mais ampla, havendo pessoas, inclusive entre os
bispos, que começam a pôr resistência a qualquer coisa que venha de
Francisco", argumenta.
"Os mais radicais são os
sede-vacantistas, ou seja, aqueles que não o aceitam como papa, baseados em
algumas teorias da conspiração de que [seu antecessor] Bento 16 [(1927-2022)]
teria renunciado à força."
Para o historiador e teólogo Gerson
Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o azar de
Francisco foi seu pontificado "acabar coincidindo com essa onda
conservadora e reacionária que assola o mundo, presente na política secular e
na política eclesiástica".
"É uma situação muito presente
na realidade política e me parece que isso também invade de maneira muito forte
a temática religiosa. O que há em comum entre os grupos reacionários é a
questão da sexualidade", destaca ele à BBC News Brasil, aludindo às pautas
morais presentes nas discussões da Igreja.
"No caso do cardeal americano
[Burke], a gente percebe que as críticas começam exatamente por dizer que
Francisco está, de alguma maneira, desrespeitando a tradição, indo longe
demais, principalmente nas questões sexuais", acrescenta.
Em sua visão, o papa está
"dialogando com temas pertinentes ao nosso momento histórico" ao
tratar do acolhimento a homossexuais, por exemplo.
Mas o teólogo entende que se "a
cosmovisão de Francisco incomoda" esses grupos ultraconservadores,
"que acreditam que ele está se posicionando de maneira heterodoxa", o
pano de fundo são as questões socioeconômicas abordadas por ele.
"Francisco tem plena convicção
de que suas ações são ações que representam o Cristo, esse tipo de opção pelos
oprimidos, pelos pobres, pelos excluídos. E os ultraconservadores acham que
isso é um discurso demagógico, populista. Por isso as divisões e as
oposições", acrescenta.
"Eles são
fundamentalistas", define Moraes.
Para o teólogo, a "visão
progressista" do papa Francisco incomoda esse grupo "porque ele quer
colocar a Igreja Católica, de fato, no século 21", fazendo-a
"relevante ao debate ambiental, à luta pela qualidade de vida, à luta contra
a exploração desenfreada pelo modo de produção capitalista", entre outras
questões.
Incomodadas, essas pessoas acabam
"se unindo".
"E chama muito a atenção o fato
de que esses grupos geralmente começam as críticas nas questões morais.
Francisco estaria, segundo eles, levando a Igreja para um caminho muito
perigoso, ele estaria indo longe demais", acrescenta.
Mais pragmático que ideológico
"[Quando arcebispo de Buenos
Aires,] ele não era classificado como um bispo demasiado progressista",
recorda o biógrafo Rosales.
E talvez nem hoje ele se veja assim.
Sua postura pode ser, na verdade, mais pragmática do que ideológica, no sentido
de que ele busca fazer as transformações que acredita compatíveis com a
mensagem do cristianismo, não se importando se esses atos são vistos como
"de esquerda".
"Em geral, na Igreja, sempre
houve diferentes posturas, diferentes grupos", comenta Rosales.
"Hoje há uma divisão bem forte
entre conservadores e progressistas e Bergoglio flutua um pouco, tem tentando
manter certo equilíbrio."
"Às vezes os progressistas os
veem como muito pouco progressistas. E os conservadores, como muito pouco
conservador", argumenta.
Segundo o biógrafo, o golpe de mestre
de Francisco no sentido de apaziguar ânimos das duas frentes foi a canonização
conjunta, em 2014, dos papas João 23 e João Paulo 2º.
O primeiro, por conta da ideia do
Concílio Vaticano 2º, é "venerado pelos setores mais progressistas";
"o polaco, muito mais pelos setores mais conservadores, por sua
contribuição [entre outras questões] na guerra ao comunismo".
"Ele canonizou os dois em
conjunto e conseguiu reunir milhares e milhares de fiéis dos dois lados, dos
dois grupos da Igreja. É um bom exemplo da ideia de Bergoglio de tentar
compatibilizar ambos os mundos", aponta Rosales.
Redes sociais
Mas a oposição a Francisco é maior do
que a enfrentada por outros papas? Não necessariamente.
O que ocorre é que nunca antes da história
da humanidade um líder esteve tão exposto como nesta época de comunicação
instantânea e redes sociais — além de haters e polarização, é claro.
A isto tudo, se soma o carisma do
argentino, um homem que costuma se expressar com espontaneidade e, não raras
vezes, de modo autêntico.
"Não considero correto afirmar
que há muitos opositores ao pontificado de Francisco", analisa
Gagliarducci.
"É mais apropriado dizer que se
trata de um fenômeno mais visível, mais vivo e mais presente. A personalidade
do papa não ajuda nesse sentido. Ele é um papa que toma decisões, polarizador
por natureza."
Moraes lembra que
"tradicionalmente, todas as organizações sociais, sejam elas
declaradamente políticas, sem nenhuma aura sobrenatural, ou seja uma
organização política dedicada ao sagrado", todas são feitas de segmentos,
de facções.
"Não acho que o papa tenha mais
oposição do que os do passado. Só acho que a gente vive numa realidade muito
mais midiática, então essas coisas se espalham, se difundem de forma muito mais
rápida", afirma Domingues.
"As redes sociais são um canal
forte, essa é a realidade que a gente vê. E não é uma questão da Igreja: é uma
questão social do mundo hoje, de polarização, de instrumentalização das redes
sociais."
Para o especialista, contudo, a oposição
a Francisco não será capaz de fazer um sucessor antagônico a ele, em um
eventual conclave.
"Ele teve habilidade política
muito grande na recomposição do colégio de cardeais, cercando-se de pessoas com
uma visão mais progressista da realidade", diz Moraes.
Pelas regras da Igreja, um papa é
escolhido após a morte ou renúncia do titular em um processo de votação em que
cardeais de todas as partes do mundo são os eleitores.
"Francisco sabe que a
reorganização interna da igreja que ele fez, na verdade, significa plantar o
futuro, significa que ele está olhando para a frente, para que sua obra
continue pela mão de alguém que pense como ele, e não de alguém que pense como
os reacionários", acredita o teólogo.
Amigos para postos de confiança
Mas se Francisco está buscando
resolver os atritos afastando os opositores, isto não é feito de forma
descuidada.
"Ele afasta dos cargos, mas não
de forma humilhante", avalia Domingues.
"O cardeal Burke, por exemplo,
primeiro foi retirado de algumas funções e, talvez por outros motivos também.
Mas manteve cargos. Ele foi sendo gradualmente retirado, sabendo que havia uma
resistência."
Um processo de fritura semelhante
ocorreu com o cardeal alemão Gerhard Müller, que havia sido nomeado para a
Congregação para a Doutrina da Fé pelo antecessor de Francisco, Bento 16.
Quando o argentino assumiu, manteve-o
no cargo. "Ele tentou, não só manteve como ainda fez dele cardeal [em
2014]. Mas aí o Müller começou a bater cabeça com o papa, começou a dizer o
contrário do que o papa dizia, forçar a mão… Não teve jeito: ele foi
afastado".
Não aconteceu da noite para o dia,
contudo. Müller acabou destituído apenas em 2017, sem muito alarde, quando para
seu lugar foi nomeado o jesuíta espanhol Luis Ladaria.
Domingues vislumbra que a fase atual
do pontificado de Francisco seja o momento desses acertos acontecerem.
"Porque entramos numa fase de
consolidação, provavelmente uma fase final. E, como vimos no caso do Burke,
Francisco tentou dialogar, apresentar [pontos de vista] e tal. Eles não só
continuam atacando, criticando, como elevaram o tom", assinala.
Francisco também tem nomeado
argentinos de sua confiança para postos-chave no Vaticano.
É o caso da própria Doutrina da Fé,
que desde julho é comandada por Victor Fernández, amigo pessoal e ghost
writer de Francisco.
"O problema do papa não é a
crítica, é a forma como ela vem. Eles começaram a forçar, a envolver outras
pessoas, a agir de um jeito mais agressivo. E aí Francisco começou a responder
de uma forma mais agressiva também", acrescenta.
Observadores do Vaticano também
acreditam que a morte de Bento 16, em 31 de dezembro do ano passado, acabou
dando mais autonomia a Francisco na hora de nomear para cargos e destituir
pessoas de seus cargos.
Não que ele não tivesse esse poder —
mas a sombra do papa emérito acabava sendo um polo de atração para diversos
religiosos mais conservadores que são considerados oposição a Francisco.
O
outro lado do que acontece https://bit.ly/3Ye45TD
Postado por Luciano Siqueira às 12:41 Nenhum comentário:
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