Alberto Gabriele se junta a Ignacio Rangel, Milton Santos, Carlos Augusto Figueiredo Monteiro, João Amazonas, Haroldo Lima e Aziz Ab´Saber entre os que convivi, aprendi o que é fazer ciência e me fez crescer
por Elias
Jabbour
Publicado 14/02/2024 13:35 | Editado 14/02/2024 13:37
Elias, Alberto Gabriele e Francesco Schettino. Foto: Instagram Elias
Jabbour
Perdi uma alma
gêmea. Sim, Alberto Gabriele e eu nos entendíamos quase que por telepatia. O
que nos unia? Nossas ideias sobre o socialismo, nossa negação às visões
utópicas, desconexas da realidade e a busca por um corpo teórico, conceitual e
categorial capaz de entregar um marxismo como poderosa arma de enfrentamento da
realidade a partir das experiências socialistas. Eu e Alberto nos
distanciávamos do ascetismo e do discurso fácil, pois entendíamos que o
marxismo é uma ciência do poder político. Por isso, nossa aversão a bravatas e
performances de falsos revolucionários e “radicais” que infestam as redes
sociais. Falávamos muito em detalhes da construção do socialismo: sistema
empresarial, de preços, constrangimentos internos e externos (metamodo de produção),
sistema financeiro, lei do valor, contabilidade da firma, contabilidade social,
planejamento, projetamento etc. Foi minha alma gêmea que conheci por
insistência.
Na minha tese de
doutorado (que ampliada, converteu-se em livro prefaciado por Domenico Losurdo)
já era vagamente presente a ideia de que na China emergia uma nova formação
econômico-social. Mas foi após ler “Market Socialism as a distinct
socioeconomic formation internal to the modern mode of production”, escrito por
ele e o gigante Francesco Schettino, foi que me convenci de que deveria ir
atrás desse gênio italiano. Após anos de insistência, somente em 2015 ele
aceitou um call para conversar comigo. Alberto era muito tímido e desconfiado.
Já na primeira conversa ficaram claras nossas convergências quase totais.
Alberto já era autor de artigos disruptivos sobre política industrial e sistema
empresarial chinês e vietnamita (o Vietnã era sua grande paixão). Com o próprio
Francesco Schettino escreveu para revistas como o Cambridge Journal of Economics
uma pérola sobre distribuição de renda em Cuba.
Sua grande bomba
intelectual foi lançada em 2020 pela Springer, “Enterprises, Industry and
Innovation in the People’s Republic of China – Questioning Socialism from Deng
to the Trade and Tech War”. Ali Alberto se apresenta em sua melhor forma, se
consolidando como o grande economista do mundo no que que se refere a análises
da dinâmica empresarial e de inovação tecnológica do socialismo no século XXI.
Nenhum pensador ocidental chegou próximo de Alberto Gabriele neste aspecto. Por
trinta anos foi economista de projetos na UNCTAD com ampla experiência
internacional. Tudo isso contribuiu na sua transformação no mais capaz
economista voltado a compreender o socialismo da forma como ele se apresenta.
Após anos de
conversas, decidimos escrever um livro. Já estava madura em nossas cabeças uma
série de ideias e a montagem dos capítulos já estavam claros. Partíamos do
mesmo cabedal categorial: formação econômico-social, modo de produção e lei do
valor. A reconstrução dessas categorias, à luz do que ocorre na China seria o
pulo do gato, que neoclássicos, marxistas acadêmicos/ocidentais e keynesianos,
sobre o muro que história colocava diante de teorias datadas.
A análise de uma
nova formação econômico-social demandava outra gama de categorias, uma outra
gramática e um ponto cego que ainda nos faltava: o que emergia após a elevação
das relações entre ser-humano e natureza na China após a apropriação pelo
Estado socialista de inovações tecnológicas disruptivas, não somente elevando a
capacidade de planificar, mas inaugurando uma coisa nova – da mesma forma que
Adam Smith percebeu esse novo com o surgimento de novos esquemas de divisão
social do trabalho como resultado da elevação da técnica em sua época,
inaugurando o capitalismo em sua forma industrial?
Um esboço de
resposta eu já tinha após ler diversas vezes “Elementos de Economia do
Projetamento”. Sabia que para Alberto demoraria um tempo para digerir a ideia.
Fui à Roma em 2019 com minha família para me “trancar” com Alberto por três
meses, convencê-lo da ideia de “Nova Economia do Projetamento” e colocar na
praça um livro onde todas as nossas ideias construídas ao longo de anos
estivessem lá, novas e vivas.
Cada categoria ou
conceito era uma longa discussão para sua elaboração. O conceito de “metamodo
de produção” foi quase um ano de idas e vindas entre nós dois. O mesmo sobre
como abordaríamos a questão do valor e, por fim, Alberto se tornou o mais
entusiasmado com a ideia de projetamento. Nosso livro lançado pela Boitempo em
2019 (com uma live sensacional com a presença de Dilma Roussef, Silvio Almeida
e Tings Chak) já se transformou em best-seller. Uma versão ampliada em inglês
foi lançada pela Routedge (“Socialist Economic Development in the 21st Century
– A Century after the Bolshevik Revolution”). As ideias contidas nele são
vistas na China como verdadeiras “descobertas científicas” e até semana passada
eu e Alberto já discutíamos um volume 2 deste livro.
Novas ideias já
estavam em acúmulo e já permeavam alguns artigos científicos que
recém-publicados sob minha lavra. O mais triste de tudo é que além de perder
minha alma gêmea intelectual, é saber – também – que nossa colaboração estava
apenas no início e que muito tínhamos a fazer juntos, pois as mudanças em andamento
na China iam ao encontro de nossas ideias. O combate que estávamos enfrentando
com os marxistas acadêmicos/ocidentais era feroz, mas tínhamos certeza de nossa
correção.
Alberto Gabriele se
junta a Ignacio Rangel, Milton Santos, Carlos Augusto Figueiredo Monteiro, João
Amazonas, Haroldo Lima e Aziz Ab´Saber entre os que convivi, aprendi o que é
fazer ciência e me fez crescer. No fundo sou um homem de sorte. Enfim, escrevi
aqui o que minha emoção permitiu. Acordei com uma mensagem de Francesco
Schettino me informando de sua morte. Triste e impactado fico por aqui. Perdi
uma alma gêmea. Dói muito.
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