Milei ataca o mundo da cultura, baseado na sua compreensão limitada da
liberdade – uma liberdade autoritária e ultra individualista
Andrés del Río/Le Monde Diplomatique
Em pouco mais de dois meses, a
Argentina entrou numa espiral inflacionária e de miséria poucas vezes vista.
Entre os vários desacertos, a decisão política contra subsídios nos serviços
essenciais alterou a vida de milhares de cidadãos, jogando-os na pobreza (cerca
de 57% da população). Nesse percurso, o presidente argentino Javier Milei
mostrou suas limitações na articulação política e seu repertório emprestado.
Neste breve texto, abordaremos seu ataque à cultura e os paralelos com o
governo de Bolsonaro.
DE FORA PARA
DENTRO
Internacionalmente, a extrema direita
tem roteiro, nortes e ações comuns. Talvez o ícone do desmonte e da erosão
democrática tenha sido o governo do ex-presidente Bolsonaro. Ele foi adaptando
nortes e estratégias implementadas pelo ex-presidente Trump, entre outras
lideranças e mandatários da mesma linha. Nesses tipos de governos,
a cultura sempre foi alvo.
A extrema direita é misógina e
racista, odeia o diverso e fomenta a violência (simbólica e material). A
homogeneização cultural é parte do roteiro dos fascistas. A reflexão, o
pensamento crítico e a sensibilidade são aspectos a serem apagados. A arte, a
ciência e as universidades são foco principal dos ataques. Sem eles, não
existem limites, e a impunidade é garantida.
Bolsonaro é um ser desinteressado
pela cultura, sem inquietude intelectual e que tem um rudimentar senso do
coletivo. Ele enxerga a cultura como uma ameaça e um desperdício. Por sua
parte, Milei, desde sua aparição pública, de forma idêntica, atacou o mundo da
cultura, baseado na sua compreensão limitada da liberdade – uma liberdade
autoritária e ultra individualista. Nela, não existe solidariedade, comunidade
ou humanidade.
O caso dos ataques recentes do
presidente argentino tem nas suas ações as marcas das pegadas do ex-mandatário
brasileiro. É difícil identificar a autoria das seguintes frases: “o ensino de
artes nas escolas é uma perda de tempo”, “as universidades são centros de
doutrinação ideológica”, “a pesquisa científica é um luxo que o país não pode
se dar”. Poderiam ser de Bolsonaro, mas foram ditas por Milei.
Se, por um lado, os inimigos são os
espaços de construção de imaginários e futuros, de reflexão e criação; pelo
outro, enaltecer a liberdade ultra individualista, a tradição e o patriotismo,
misturando tudo no liquidificador das fake news, garante a crença de que se
trata de um governo que defende o nacional.
Também são interessantes as formas de
criar oponentes e culpáveis, os inimigos. Se, por um lado, o Bolsonaro falava
de eliminar o marxismo cultural, Milei fala de desarmar o Gramsci Kultural.
Assim, colocam na sociedade teorias conspiratórias, importadas do hemisfério
norte, indicando que o problema local se deve a um esvaziamento da moral e da
perda do rumo das tradições nacionais por culpa de uma esquerda que dominou o
mundo. Tudo na interseção e no limite do delírio, dos desejos e do “até poderia
ser”.
A CULTURA COMO
ALVO
O primeiro decreto de Milei como
presidente da nação, ainda no seu primeiro dia de trabalho, extinguiu o
Ministério da Cultura para ser incorporado como Secretaria do Ministério de
Capital Humano, liderado por Sandra Pettovello. O novo ministério abraçou
também os antigos ministérios de educação, de desenvolvimento social, do
trabalho, emprego e seguridade social e das mulheres, gênero e diversidade. Ou
seja, um ministério cambalache: tem tudo para que não funcione nada. Uma
redução violenta de espaços fundamentais da dinâmica democrática.
Da mesma forma, aconteceu no governo
Bolsonaro. Anunciada antes de tomar posse, em novembro de 2018, a dissolução do
Ministério da Cultura já estava na agenda. Do mesmo modo que o mandatário
argentino, no seu primeiro dia de trabalho, Bolsonaro eliminou o Ministério de
Cultura. O que sobrou do MinC foi ao Ministério da Cidadania, como Secretaria
especial de Cultura, logo transferida para o Ministério de Turismo – designado
como responsável, Roberto Alvim. O flamante secretário não ficaria muito tempo
no cargo: em 16 de janeiro de 2020, Alvim divulgou um vídeo institucional
anunciando o Prêmio Nacional das Artes, um programa antigo de incentivo à
cultura. Mas foi o vídeo que chocou a todos: nele Alvim copiou trechos do
discurso de Joseph Goebbels, ministro de propaganda nazista: “a arte brasileira
da próxima década será heroica e será nacional.” Alvim atuou caricatamente no
vídeo. Mas não foram só as palavras, também a estética, preocupação nazista. No
vídeo, a estética foi imposta: a aparência do secretário, seu tom de voz e a
música de fundo, de Richard Wagner, o compositor favorito de Hitler.
Outros falaram que se tratou de um apito de cachorro, mensagem codificada que
só a turma cativa de apoiadores compreende, estratégia da extrema direita
internacional.
MILEI CONTRA O
SETOR
Desde o início da campanha eleitoral,
Milei mostrava desprezo e desinteresse pela arte. No segundo turno, Milei fez
declarações que reverberaram no ambiente da cultura, ao sinalizar sua intenção
de fechar o Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais (INCAA).
Rapidamente, o setor se mobilizou e lançou uma carta aberta contra a
candidatura do líder de extrema direita, que entre outras coisas defendia: “…
políticas públicas que estão focadas na redução das desigualdades em todo o
território, essenciais para garantir o acesso à cultura e um futuro do cinema
federal e diverso”.
A resposta não demorou. Assim que
Milei alcançou o poder, a cultura ganhou um capítulo específico no projeto da
“Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos” – conhecida
como Lei ônibus, pela quantidade de artigos e de modificações que
produz em outras leis. Ela propôs a eliminação de instituições (Fundo Nacional
das Artes e Instituto do Teatro), alteração da forma de financiamento (INCAA e
Instituto Nacional de Música), corte orçamentário, além da restruturação de
diversos órgãos (livros e bibliotecas) e da eliminação de 70% dos
trabalhadores do INCAA. A reconfiguração dos editais e sua forma de
acesso, também limitaram a quantidade de filmes que as produtoras podem
concorrer por financiamento por ano. Também foram colocadas em cargos chaves da
área pessoas desqualificadas e defensoras da ideologia do presidente,
replicando a fórmula implementada por Bolsonaro e Trump.
Diferentes setores se opuseram ao
projeto de lei, realizando extensos protestos. Nesse contexto, entre as
agressões presidenciais via redes sociais, Milei provocou o setor declarando
que: “…ou escolher entre usar os recursos do Estado para financiar filmes
que ninguém assiste … ou colocar esse dinheiro para alimentar as pessoas”.
Foram várias as manifestações de diferentes coletivos, como por exemplo a carta
“A cultura está em perigo”, assinada por Charly Garcia, Cecilia Roth, Leon
Gieco, Fito Paez e outros pilares da cultura nacional. O ator Ricardo Darin
indicou, num vídeo do coletivo SAGAI, que o governo atual não aponta a
destruir privilégios, mas direitos. A resposta do descabelado presidente
foi a mesma que outros líderes da extrema direita: cultura ou comida.
Finalmente, pelo absurdo do conteúdo da Lei Ônibus, pela falta de articulação e
inoperância do próprio oficialismo, a lei não foi aprovada. Mas isso se tratou
apenas de uma batalha, e não da guerra.
A CULTURA NÃO
SERVE, SE NÃO É DO MEU AGRADO
Uma constante é a indicação que
dinheiro na cultura não serve. Ou seja, o fomento à cultura deve ser
desativado, ou redirecionado para artistas que constroem e apoiam a imagem do
governo. Claro, primeiro devemos falar do uso das redes sociais. Os dois
personagens tiveram e têm uma grande vantagem nas plataformas. São parte do
movimento de extrema direita que utiliza as redes de forma sofisticada e aperfeiçoada,
com várias vitórias internacionais na lista. A rede social X, foi e é a
preferida destes mandatários. As campanhas de desinformação que brotam nessas
plataformas, engrandecem os problemas, manipulando os sensibilizados cidadãos.
Todo o dito e escrito é sempre simulando sinceridade e espontaneidade, mas é
plástico, artificial, premeditado e organizado. Na terra sem lei, a banalidade
dos discursos agressivos e ofensivos, sintoma da sociedade desigual e violenta,
facilita as divisões sociais em benefício de interesses
específicos.
Milei indicou que os artistas
com financiamento público são parasitas. Ele escreveu na plataforma X:
“Enquanto as pessoas morrem de fome em Formosa, o governador dessa província,
Gildo Insfran, pagou 90 mil dólares a uma artista”. Numa
entrevista acusou: “2/3 das crianças estão na pobreza, você vai gastar
[dinheiro público] em shows?”. O novo mandatário argentino, segue
as pegadas do brasileiro, desprezando a cultura e acusando-a de desviar o
dinheiro de outras finalidades mais urgentes. Milei vai colocando o tema, de
forma constante, com alvos específicos, como foi com a artista multifacética,
Lali Esposito. Utilizando-se da maquinária do Estado, a atacou e no mesmo
movimento, enviou um recado para o resto. O mundo artístico saiu em defesa da
artista e de todos aqueles que estão sendo objeto de violência
institucional.
Aqui reside um aspecto crucial: a
cultura é resistência, criação, identidade e sensibilidade. Em momentos
complexos, ela consegue forças internas de enorme potência e simbolismo. O
produtor e representante artístico, Daniel Grinbank, foi direto, “o ataque à
cultura é para desviar a atenção das políticas econômicas que estão sendo
implementadas”. Mas, longe de ser distração, é também uma estratégia de
redirecionamento da sintonia e dos objetivos do setor. Nesta dinâmica,
ressignificar a cultura, especialmente para o público jovem, é
fundamental.
No Brasil, o âmbito da cultura
resistiu ao rolo compressor bolsonarista. Numa democracia em coma, o setor foi
fundamental no processo de resistência e luta social. Atacar artistas
popularmente conhecidos foi vital para colocar o tema de forma imediata e a nível
nacional. Não se tratou de dissenso, divergências, foi ataque mesmo.
Agressão, com a força das instituições, e abuso da potência do discurso
presidencial que opera e influencia a sociedade de forma diferente que qualquer
outro cidadão. No caso de Bolsonaro, existiu um gabinete do ódio, especialmente
criado com o objetivo da perseguição e da difamação, operando contra todo
aquele que rebatia ou se posicionava contra ações do seu governo.
Recordemos, no início do seu mandato,
o ataque massivo ao ícone da cultura popular, o carnaval (e suas figuras). Uma
estratégia de desprezo à cultura popular negra, alvo especial do governo.
Foram vários os artistas que viraram alvo, entre outros: Caetano Veloso,
Anitta, Wagner Moura, Paulo Coelho, Emicida, Daniela Mercury, Chico
Buarque, Fernanda Montenegro, Lazaro Ramos. Cada um deles foi atacado ao se
posicionar sobre assuntos da vida cotidiana do país, ou ao mostrar divergência
no rumo desse governo. Temas que vão do meio ambiente, homofobia, Covid-19,
passando pelo fomento à cultura, e o racismo. A arte nos indaga, cria
horizontes. A resistência do setor cultural, nas suas diversas manifestações,
esteve presente.
Se, por um lado, o ex-presidente
atacou, pelo outro, abraçou a força de privilégios e dinheiro, como no caso dos
cantores sertanejos, Gusttavo Lima, Zé Neto e Cristiano, Leonardo, a dupla
Simone e Simaria. A dupla Mateus & Cristiano chegou a lançar um jingle para
a campanha presidencial. Muitos deles tinham as portas do Planalto abertas.
Aliás, Gusttavo Lima, Zezé Di Camargo, Chitãozinho, e outros mais, foram ao
Palácio da Alvorada, residência presidencial, demostrar apoio a Bolsonaro, dias
antes das eleições de 2022. Outros tiveram cargos em diversas instituições
chaves na área, como Regina Duarte, Sergio Reis, e Mario Frias.
Neste sentido, é importante destacar
que cooptar as instituições, redirecionar e selecionar os artistas aceitáveis
são uma fase destes tipos de governos. Foi o que aconteceu com a música
sertaneja, trilha sonora do governo Bolsonaro. Uma mão basta para contar quem
não apoiava Bolsonaro, como Marilia Mendonça, Lauana Prado e Gabeu, que
sofreram ataques. Muitos ficaram em silêncio ante a perseguição bolsonarista.
Mas a grande parte dos músicos desse estilo se posicionou a favor de Bolsonaro, sendo
sua maioria conservadores, principalmente quanto a costumes. O sertanejo foi se
tornando a música do agro, das feiras agropecuárias, dos rodeios, com
expressiva popularidade. O agro se tornou um dos principais financiadores de
Bolsonaro, e o sertanejo moldou a estética do agro: homem branco, machista,
conservador e chapéu country. O Brasil é um dos países mais musicais do mundo,
uma diversidade única de ritmos e estilos. Mas o sertanejo se tornou a pauta
hegemônica nas rádios e espaços de comunicação, existindo uma intenção de
homogeneização da música e da estética, um movimento profundamente racista.
Assim, o sertanejo demonstrou ser um mercado musical altamente controlado
e vinculado às alas burguesas mais retrógradas do país.
UNIDOS PELO AUTORITARISMO
Milei, desde o início do seu mandato,
deixou claro quais são os seus objetivos para o setor, mesmo com a aparência de
desordem e improvisação. Olhar a experiência brasileira facilita pensar formas
de resistência e estratégias de luta. A constituição, tanto da Argentina como
do Brasil, garante direitos e liberdades de criação, protege a identidade e
pluralidade cultural, protege o patrimônio cultural e promove a cultura. Ambos
os países são signatários de diferentes instrumentos internacionais que
protegem os direitos culturais.
Os passos de Milei não são inovações
nem coincidências, mas são parte de um roteiro internacional da extrema
direita. Não se pode pensar a transformação e destruição do setor sem
incorporar a variável internacional. Os vínculos de Milei com os Bolsonaro não
nasceram com sua chegada à presidência. Os vínculos, da vice-presidente
Villarroel, com o partido Vox da Espanha, também não são recentes. Lembremos
que em outubro de 2022, num evento do Vox, Milei gritava em Madri, diante de
uma multidão “somos superiores produtivamente, somos superiores moralmente“. O
ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, festejou como sua a vitória,
declarando orgulhosamente que Milei vai tornar a Argentina grande
novamente.
O processo de desmonte do setor, a
perseguição aos artistas, a reorientação institucional e orçamentária para
beneficiar aqueles que dançam ao ritmo de Milei, são parte do presente e do
horizonte. Mas não se trata apenas de um setor, mas do estilo de democracia que
queremos. Esse filme a gente já viu em outras latitudes e períodos. E Milei
está pronto para produzir a versão argentina: monocromática e autoritária. A
resistência, dos diferentes movimentos e setores da sociedade, é fundamental
para evitar a destruição.
Andrés del Río é Doutor em
Ciência Políticas IESP-UERJ e professor da Universidade Federal Fluminense –
UFF. Coordenador do NEEIPP/UFF.
O
mundo gira. Saiba mais https://bit.ly/3Ye45TD
Postado por Luciano Siqueira às 12:06 Nenhum comentário:
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