Enquanto as mentiras da ditadura não forem desmascaradas,
ainda viveremos numa ditadura
Comecei a ler jornal aos treze anos. Era 1973 e minha leitura favorita era o
primeiro caderno do Estadão, o de política – começara a me interessar pelo
assunto porque via a família discuti-lo de uma forma que me intrigava. Mesmo
dentro de casa, familiares conversavam sussurrando. E interrompiam o assunto
quando eu aparecia.
Lendo o Estadão, percebia que faltavam informações. E quando
fazia perguntas à família, não conseguia respostas satisfatórias – jovens da
minha idade eram tratados como crianças, àquele tempo.
Naquele ano, assisti a uma reportagem no programa Fantástico
– que estreara na Globo no mesmo ano – que me faria entender que aquilo que lia
no Estadão não traduzia a verdade do que se passava no Brasil.
Lembro-me com clareza do título da reportagem: “Eleição, um
show americano”. Mostrava, se bem me lembro, uma convenção partidária nos
Estados Unidos – só não me lembro se era do partido democrata ou republicano.
Não era ano eleitoral nos Estados Unidos, mas a matéria era
sobre a forma como funcionava a democracia naquele país.
Vejo, como se fosse ontem, as bandeirolas coloridas, um
clima de euforia. Parecia uma festa. Tudo aquilo era para escolher um candidato
a presidente do país que produzia os filmes, seriados e revistas em quadrinhos
que tanto amava.
Mas o que me intrigava era por que, no Brasil, aquilo não
existia. Por que em meu país não elegíamos presidentes? O jornal não me
contava.
Perguntei à família, mas me enrolaram e não responderam. Nem
minha mãe, que desde que me entendo por gente fazia questão de me doutrinar
culturalmente por todos os meios, deu-me uma resposta. Sugeriu-me que parasse
com a leitura de política porque, em nosso país, não era “bom” se interessar
por aquele assunto.
Ficara muito intrigado. Aliás, sentia uma certa revolta.
Vira na televisão um país que, então, era tido como exemplo para o mundo
fazendo da sua democracia uma festa. Mas, no meu país, aquilo tudo, que me
parecia tão positivo, era proibido.
Por que?
Um ano mais tarde, na escola – estudava no Colégio São Luis,
em São Paulo –, então no “ginásio”, travei amizade com um rapaz do “científico”
(ensino médio) que me contou em detalhes o que passava no Brasil e que a
família não me queria revelar.
Daniel era quatro anos mais velho do que eu – tinha 18 anos.
Ele fazia parte do que chamou de “partido” e disse que o Brasil estava sob uma
ditadura, que militares nos governavam na marra e, assim, não podiam permitir
que votássemos porque a maioria não os queria no poder e, assim, se o povo
pudesse votar eles não continuariam governando.
Naquele distante 1973, filho de uma família abastada – vivia
com mãe e avós e meu avô era um alto executivo da Mercedes Bens –, descobri que
o regime militar era nefasto, uma violência. Mas minha repulsa àquele período
de trevas se consolidou de forma indelével em meu espírito quando meu amigo
Daniel “sumiu”.
Quando parou de ir à escola, após algumas semanas peguei
minha bicicleta e fui à sua casa. Sua irmã me atendeu à porta. Tinha um semblante
desolador. Fiquei assustado. Disse que Daniel “viajara” e me mandou embora.
De volta à escola, seus colegas de classe, mais velhos do
que eu, não quiseram me dar informações.
Alguns poucos anos depois, já sabia que meu amigo tinha sido
tragado por uma repressão que destruía a todo aquele que ousava pensar
diferente dos ditadores. Mesmo que fosse um rapazola.
Cheguei a frequentar reuniões no colégio Equipe, na Bela
Vista. Falavam em resistência, em enfrentar a ditadura. E falavam dos riscos.
Tive medo, muito medo e me omiti. Tinha uns 16 anos e, até o fim dos anos
setenta, conformei-me em acompanhar pelo Estadão o processo que levaria o
Brasil à abertura política. Mas nunca me envolvi.
Até hoje sinto vergonha disso, e só relato aqui como que
para expiar minha culpa. Sempre que posso, confesso minha covardia na
juventude.
Hoje, quando me dizem “corajoso” por incomodar os barões da
mídia que atiraram meu país naquele horror, dou um sorriso amargo e me lembro
de quão covarde eu fui. E reflito que ser “corajoso” hoje, em plena democracia,
não tem valor algum.
Mas prometi a mim mesmo que sempre que pudesse confessaria a
covardia a que me dei na juventude, quando tantos outros como eu deram sua vida
para libertar o Brasil de uma ditadura feroz que – há pouco o país descobriu –
chegou a torturar bebês diante de mães militantes políticas para obrigá-las a
lhe dar informações.
A ditadura, porém, não terminou. Apesar de a ditadura
político-institucional ter acabado há décadas, o país ainda é prisioneiro de
uma outra ditadura, a ditadura da mentira.
Vejo na internet, nos jornais e até na tevê, inclusive em
editoriais desses veículos, justificativas aos crimes daqueles militares e
civis que ceifaram a vida de tantos jovens como meu amigo Daniel. Dizem que as
vítimas daquele regime criminoso queriam implantar uma ditadura no país e
atribuem a “terroristas” como aquele amigo crimes iguais aos que cometeram.
Mentirosos.
Onde estão as famílias das vítimas dos “terroristas” a
bradarem contra os assassinatos ou torturas de país, mães, irmãos, amigos? Por
que, como as vítimas da ditadura, não se organizam e levam fotos de entes queridos
que os que tentavam devolver a democracia ao Brasil teriam exterminado ou
torturado?
Claro que, sim, houve alvos militares. E é claro que alguns
soldados da ditadura tombaram em combate com “terroristas”. Mas nada que sequer
se aproxime dos meninos e meninas que aquele regime hediondo sequestrou,
seviciou e exterminou.
Hoje, 1º de abril de 2013, faz 49 anos que o inferno foi
desencadeado no país. Sobreviventes que enfrentaram aqueles psicopatas,
assassinos, estupradores, ladrões, pervertidos que colocaram este país de
joelhos, chegaram ao poder. Aliás, o Brasil é governado por uma heroína que,
altiva, enfrentou aqueles demônios.
Contudo, o Brasil não é livre. Enquanto as mentiras que os
autores daquela loucura inventaram não forem desmascaradas, enquanto o nosso
povo não souber a verdade do que se passou naquelas duas terríveis décadas, a
mentira continuará nos governando. Seremos tão prisioneiros dela quanto fomos
da ditadura militar.
Deveria escrever mais, muito mais. Mas a boca está seca e os
olhos, molhados. Quem sabe um outro dia termino de dizer tudo o que deveria.
Talvez, nesse dia, consiga mergulhar fundo naquelas memórias sem ficar no
estado emocional em que estou ao terminar este texto. Sobretudo pela culpa por
minha omissão, que nunca me deixou em paz.
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