Por Breno Altman, na revista Fórum:
As manifestações de médicos, nessa última terça-feira, revelam
um núcleo duro e mobilizado das elites brasileiras. Sua influência nos meios de
comunicação, na sociedade e nas instituições já ameaça o programa de saúde
recentemente lançado pelo governo. A julgar pelas emendas apresentadas na
Câmara dos Deputados, a desfiguração desse projeto será inevitável.
O Palácio do Planalto pode estar pagando um preço por ter
agido de forma atabalhoada, sem consultar e articular as correntes mais
progressistas da medicina, o que seria obrigatório para batalha dessa envergadura.
Mas a reação não é contra eventuais falhas de interlocução: sua natureza reside
em defender privilégios corporativos, contrapostos aos interesses do país e aos
direitos da cidadania.
As três principais bandeiras nas marchas dos jalecos brancos
são elucidativas. São contra a extensão da residência em dois anos, com
obrigatoriedade de servir o Sistema Único de Saúde. Não concordam com a vinda
de doutores estrangeiros para cobrir déficit de profissionais, especialmente
nos rincões do país. Reivindicam a derrubada do veto presidencial sobre o
chamado Ato Médico, que fixava supremacia da categoria em relação a outros
trabalhadores do universo sanitário.
São reivindicações de quem olha para o próprio umbigo.
Insuflada pelos extratos mais ricos e articulados com o conservadorismo, a
mobilização médica não entra na briga para a melhoria da saúde pública. Seus
maiores aliados são os que comandaram campanha para eliminar a CPMF e retiraram
cerca de 40 bilhões de reais anuais para o financiamento do setor.
Não passa de deslavada hipocrisia quando se afirma que o
problema não é a falta de médicos, mas a carência de estrutura nos hospitais e
centros de atendimento. As dificuldades são inegáveis, isso é fato. No contexto
deste embate, porém, não passam de álibi para que o andar de cima possa fazer
sua vida sem reciprocidade com os milhões de brasileiros que suaram a camisa e
pagaram impostos para garantir a existência de boas faculdades públicas de
medicina.
O Brasil tem um número pífio de médicos, na proporção de 1,8
para cada mil habitantes. Na Inglaterra, esse índice é de 2,7. Em Cuba, de 6.
Nos últimos dez anos, surgiram 147 mil novas vagas no mercado de trabalho, mas
apenas 93 mil profissionais foram formados. Há 1,9 mil municípios com menos de
um médico por 3 mil habitantes. Em outras 700 cidades, não há doutores com
residência fixa. Nem é preciso dizer que esses 2,6 mil municípios sem
assistência adequada estão entre os mais pobres e distantes dos grandes
centros.
O governo criou o Programa de Valorização do Profissional da
Atenção Básica (Provab), para levar médicos ao interior e aos subúrbios. A
demanda era de 13 mil trabalhadores, mas apenas 3,8 mil postos foram
preenchidos, apesar do salário de 8 mil reais que é oferecido, agora aumentado
para 10 mil no Programa Mais Médicos. Até mesmo bairro periféricos de cidades
importantes, como Porto Alegre e São Paulo, não conseguem atrair interessados.
Parte expressiva da categoria, diplomada em instituições do
Estado, não está nem aí para a hora do Brasil. Não quer sair de sua zona de
conforto e se acha no direito de pensar apenas em carreira pessoal e montar um
rentável consultório privado em alguma metrópole.
Entidades da área, especialmente o Conselho Federal de
Medicina, fazem de tudo para impedir a ampliação do número de faculdades (em
nome da qualidade de ensino, é claro) e a contratação de médicos estrangeiros
ou formados no exterior. A reserva de mercado, para essa gente, está acima da
saúde pública.
E essa gente é muito diferenciada. Enquanto 40% do total de
alunos da Universidade de São Paulo frequentaram colégios públicos, na
Faculdade de Medicina essa origem restringe-se a 2% dos matriculados. Na turma
de 2013, nenhum deles era negro. Médicos ricos querem ficar mais ricos
atendendo os ricos. Como os pobres têm bem menos chances de ganhar o canudo,
esses que se lasquem.
O governo tentou resolver o problema apenas por métodos de
atração. Não encontrou auditório. Resolveu, então, adotar um modelo semelhante
àquele adotado, há décadas, por países tão distintos quanto Israel e Cuba,
instituindo uma variante de serviço civil obrigatório, ainda que bem
remunerado.
A formação de um médico, na universidade pública, custa ao
redor de 800 mil reais para o tesouro da União e dos estados. Nada mais justo
que haja alguma forma de retribuição pelo aporte realizado por toda a sociedade
para cada indivíduo que virou doutor. Dois anos de reembolso, com um razoável
contracheque, é uma bagatela. Vale lembrar que o dever do Estado é com o povo,
não com os médicos.
Talvez os estudantes das faculdades privadas pudessem estar
isentos dessa medida, mas todo o cuidado é pouco para evitar que os
endinheirados aproveitem brechas para escapar de sua obrigação social, trocando
de curso. Uma ou outra correção cabe ser feita, mas o ministro da Saúde e a
presidente Dilma Rousseff estão cumprindo sua tarefa constitucional.
O que falta, além de mobilizar os setores da saúde
favoráveis às providências adotadas, é travar uma batalha de valores mais firme
sobre o programa em discussão. Por enquanto, parece que a preocupação principal
é acalmar a ira de médicos ensandecidos pelo egoísmo de classe. O objetivo
principal deveria ser debater os deveres de solidariedade dos que recebem
privilégios e os direitos de todos a receber assistência médica de qualidade.
Não se pode dar moleza a porta-vozes da ignorância e má fé.
Quando personagens como Cláudio Lottenberg e Miguel Srougi se voltam contra a
vinda de médicos cubanos, há pouco o que acrescentar. Mentem descaradamente
sobre a qualidade desses especialistas, cuja proficiência é atestada pela
Organização Mundial da Saúde e pelas 65 nações nas quais trabalham para suprir
deficiências locais.
Afinal, seria um horror para o reacionarismo de branco
assistir médicos da ilha de Fidel, muitos entre eles negros, pegando no batente
em locais para os quais seus colegas brasileiros viram as costas e tapam o
nariz. A nudez de seu comportamento lhes seria insuportável.
* Breno Altman é diretor editorial do site Opera Mundi e da
revista Samuel. Artigo publicado originalmente no Brasil 247.
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