Quando a tempestade neoliberal despencou, em 2007/2008, o
Brasil resistiu ao naufrágio com boias que exigiram gastos fiscais da ordem de
R$ 400 bilhões.
O Conversa Afiada reproduz editorial de Saul Leblon,
extraído da Carta Maior:
2008: o ano que a mídia esqueceu
por: Saul Leblon
As notícias contraditórias que chegam dos EUA, em recuperação,
e da Europa, sob a ameaça de uma deflação que obrigou o BC a derrubar o juro na
sua mínima histórica, evidenciam a
profundidade de uma desordem financeira que não cederá tão cedo, nem tão
facilmente.
A consciência dessa longa travessia é um dado fundamental
para a ação política em nosso tempo.
É imprescindível abrir o olhar ao horizonte mais largo das
determinações ofuscadas pelo alarido
imediatista da mídia conservadora.
A agenda do arrocho
fiscal e monetário bate seu bumbo outra vez.
Com objetivos explícitos e implícitos.
De um lado, determinar a natureza das respostas à dura
transição de ciclo de desenvolvimento vivida pelo país.
De outro, encurralar
a sucessão de 2014 em um ambiente contaminado pela represália iminente
das agências de risco e dos investidores à ‘derrocada fiscal’.
É o palanque pronto para aqueles que prometem fazer mais e
melhor, restaurando o ‘tripé’, recita a cristã-nova do apocalipse, Marina
Silva.
Mudam as moscas. Resgata-se o enredo de 2002.
Nesta 6ª feira, na Folha, colunistas já apregoam a necessidade de se voltar aos
bons preceitos da Carta aos Brasileiros, bem como aos mandamentos do Consenso
de Washington.
‘Não é que não deu certo; não foi bem aplicado’.
Tudo se passa como se setembro de 2008 nunca tivesse
existido no calendário do país e do planeta.
O movimento de expansão do capital financeiro, cuja
supremacia determina a dinâmica da economia em nosso tempo, e o faz com a
imposição de dramáticos constrangimentos à soberania das nações e às escolhas
do desenvolvimento, antecede e
explica a crise que o conservadorismo apagou.
Não há economicismo
nessa constatação.
A política contribuiu de maneira inestimável para o modo
como essa lógica se impôs, a velocidade com que ela se consolidou, a virulência
de sua hegemonia e a agonia sem data para terminar de seu poder prevalecente.
A espoleta da maior crise do capitalismo desde 1929 foi o recuo desastroso do controle da
Democracia sobre o poder do Dinheiro.
Seu vetor: o desmonte das travas regulatórias impostas ao
sistema financeiro no pós-guerra.
De novo: a regressão não foi obra do acaso.
Recuos e derrotas acumulados pela esquerda mundial desde os
anos 70, sobretudo a colonização de seu arcabouço pelos interditos neoliberais,
alargaram os vertedouros ao espraiamento de uma dominância financeira que se
tornou ubíqua em todas as esferas da vida.
A queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989, sancionou-a
no imaginário social como uma segunda natureza.
Era o fim da
história, diziam os áulicos.
Não era, mostrou setembro de 2008.
Mas a sociedade que cedeu a soberania ao suposto poder
autorregulador dos mercados comprometera fortemente a sua capacidade política
de gerar antídotos ao algoz.
A atrofia ideológica
dos partidos progressistas, por exemplo.
Com ela corroeu-se a
principal fonte de restauração do interesse público sobre a supremacia do
dinheiro.
A combustão não foi espontânea.
Um jornalismo rudimentar no conteúdo, ressalvadas as
exceções de praxe, mas agressivo na abordagem, capturou o discernimento
histórico com uma camada de verniz naval de legitimidade incontrastável.
Durou décadas.
Deformou toda uma geração de jornalistas e de lideranças
políticas.
Irradiou descrédito e desinteresse na política e no debate
do desenvolvimento.
A economia tornou-se um templo sagrado, dotado de leis
próprias, revestido de esférica coerência endógena, avesso ao ruído das ruas,
das urnas e das aspirações por cidadania plena.
Alguma dúvida sobre o ventre de origem da revolta black
bloc?
A crise mundial açoitou impiedosamente a sabedoria excretada
nessa endogamia religiosa entre o circuito do dinheiro especulativo e o
noticiário conservador.
Para dizê-lo de forma educada, a pauta dos mercados
autorregulados revelou-se uma fraude.
Gigantesca.
Seus pressupostos, os valores por ela veiculados adernam junto com o seu objeto há cinco anos.
Muito pouco, todavia, seria colocado em seu lugar.
Persiste na democracia um vácuo de representação e
escrutínio que renova ao mercado a prerrogativa de pautar o país.
É imperioso resgatar as folhas arrancadas do calendário.
Em setembro de 2008, após um ciclo de fastígio da liquidez e
do financiamento barato, a ponto de sancionar os famosos créditos ninjas, que
bancavam aquisições de imóveis para cidadãos sem renda, sem emprego e sem
garantias, deu-se o sabido.
O dominó começou a quebrar pelas sub-primes, lastreadas na
evanescente solvibilidade dos mencionados ninjas.
Graças à sofisticação atingida pela engenharia rentista,
esse estoque tóxico fora fatiado e reempacotado em ‘produtos
financeiros’ negociados em escala global.
O artifício destinado a ‘diluir os riscos’ acentuaria a sua
natureza sistêmica, transformando-se em
um dos canais de irradiação da crise que alcançaria todas as praças do mundo.
Inclusive essa que no presente momento está sob o ataque das
manchetes terminais da atilada mídia
conservadora.
Disposta a tudo para acuar o governo, ela fustiga o demônio
do descontrole fiscal para obriga-lo a aceitar a talagada do veneno que há
cinco anos entubou o mundo na UTI gastrofinanceira.
Os bons modos corporativos desaconselham.
Mas é forçoso dizê-lo nos dias que correm.
Aqueles que hoje ministram extrema-unção diária ao país –‘se não for hoje, de amanhã o Brasil não
passa’– são os mesmos sacerdotes da
santa inquisição neoliberal que, durante décadas, transformaram o jornalismo
econômico numa obsequiosa prestação de serviço ao dinheiro graúdo.
Vigiar e punir quem ousasse afrontar os interesses dos mercados financeiros e das agências de risco internacionais era (
é ) a sua pauta de estimação.
Para isso são regiamente retribuídos.
E fazem jus ao diferencial.
O primeiro impulso do jogral midiático quando a tempestade
se instaurou, em 2007/2008, foi instar o Brasil a aderir ao afogamento
coletivo.
De preferencia com os pés amarrados a uma bola de chumbo de
juros altos; as mãos decepadas pelos cortes de um virulento arrocho fiscal.
O BC brasileiro,
dirigido pelo comodoro Henrique Meirelles, aquiesceu de bom grado.
Na noite de 10 de setembro de 2008, quando a água invadia os
mercados urbi et orbi, o país era informado de que a operosa autoridade
monetária, a mão firme no leme, subira a
taxa de juro, já um colosso de 13%, para graúdos 13,75%.
Arrancou aplausos do jornalismo tupiniquim, o mesmo que
agora pede bis.
Cinco dias depois quebrava o
Lehman Brothers.
Na época, o quarto maior banco dos EUA.
O buraco de US$ 3,9 bi na instituição de 159 anos marcaria
simbolicamente a temporada de esfarelamento das verdades graníticas com as
quais a emissão conservadora tutelava o país até então.
Após o desastroso ato pró-cíclico do BC, o governo Lula
soube aproveitar a margem de manobra ampliada pela desmoralização plutocrática
e inverteu a ênfase.
Em vez de trazer a crise mundial para dentro do Brasil, como
pedia a mídia isenta, ergueu diques para afrontá-la na porta.
Um vigoroso acervo de medidas de extração contracíclica foi acionado.
Ampliou-se o crédito ao consumo, programas sociais foram expandidos,
desonerações favoreceram o investimento produtivo, fomentou-se um gigantesco
plano de habitação, articulou-se uma fornada de urgentes inversões em
infraestrutura e logística social.
Enquanto o mundo se liquefazia na maré do desemprego, o país
continuou a crescer e a expandir seu mercado de trabalho.
Calcula-se que entre subsídios, renúncia fiscal e incentivo ao investimento, ademais de ações
sociais, a resistência ao naufrágio tenha acumulado gastos da ordem de R$ 400
bilhões.
É em torno dessa conta que se afina a partitura da tragédia
fiscal iminente, anunciada agora pelo jornalismo econômico.
Esponja-se na fronteira do acerto de contas.
Os que incitavam o governo a jogar o país ao mar em
2008, retrucam que o custo de não tê-lo
afogado na hora certa acarretou custos
insustentáveis.
Tucanos, de sabedoria econômica comprovada pelos resultados
diante de outras crises, endossam o clamor pela eutanásia.
FHC: “Os governos petistas puseram em marcha uma estratégia
de alto rendimento econômico e político imediato, mas com pernas curtas e
efeitos colaterais negativos a prazo mais longo. O futuro chegou…”
(Estadão;03-11-2013)
Recomenda-se vivamente beber a cota do dilúvio desdenhada
irresponsavelmente em 2008.
A politização do debate econômico –que o governo não fez a tempo, abrindo os
canais para tanto, e o PT vocaliza de modo delicado– é o primeiro passo para livrar a agenda da
crise desse garrote infernal.
A persistir a hesitação, a hegemonia falida ditará as regras
à superação da própria falência, coisa que nem o código de falência do
capitalismo permite.
O resultado, aí sim, jogará o Brasil no abismo contornado há
cinco anos.
Não há, nunca houve, solução sem custo para os
desequilíbrios intrínsecos a um processo de desenvolvimento.
Desenvolvimento exige projeto, força e consentimento.
À democracia compete libertar a economia da fraudulenta
camisa-de-força ‘técnica’ que circunscreve
as alternativas aos limites intocáveis dos interesses dominantes.
Desmoralizada pelos mercados, a política ficará refém dos
black blocs de máscara e aqueles, muito mais perigosos, de gravata de seda.
As escolhas a fazer
não são singelas.
O país precisa do investimento público e privado para
adequar uma infraestrutura planejada para a 1/3 da população ao mercado de
massa nascido nos últimos anos.
Estamos falando de proporções épicas: em vidas humanas e
recursos financeiros.
Nada que se harmonize do dia para a noite.
O crucial é erguer as linhas de passagem, pactuar seus
custos, os ganhos e prazos.
A persistir a livre mobilidade dos capitais, do lado
externo, e a captura dos fundos públicos
para os juros da dívida, no plano
doméstico, a travessia fica vulnerável à chantagem rentista.
Sobra uma pinguela estreita e oscilante.
Não cabe o Brasil.
Um ano de juro da dívida equivale a 71 anos de merenda
escolar diária para 47 milhões de crianças e adolescentes da rede pública
brasileira.
É só uma ilustração. Mas também é a síntese das proporções
em jogo na arquitetura que será preciso escolher.
A crise desnudou o fatalismo econômico que estruturou a
narrativa dominante nas últimas décadas.
Mas alguém precisa dizer que o rei está nu.
E, sobretudo, erguer mirantes de pluralidade para que o país
possa enxerga-lo como tal. E a partir daí reescrever a sua própria história.
(*) Em nenhuma democracia séria do mundo, jornais
conservadores, de baixa qualidade técnica e até sensacionalistas, e uma única
rede de televisão têm a importância que têm no Brasil. Eles se transformaram
num partido político – o PiG, Partido da Imprensa Golpista.
0 comentários :
Postar um comentário