Por Maria Inês Nassif, no sítio Carta Maior:
Escrevo com atraso a segunda coluna sobre as dificuldades da
oposição partidária brasileira (leia aqui a primeira, O canto do cisne do PSDB
e do DEM), mas isso pode ter sido providencial. Coincide com a decisão do
Supremo Tribunal Federal (STF) de decretar a prisão dos condenados do chamado
Mensalão sem o trânsito em julgado de toda a ação.
As pessoas que concordam com a intromissão do STF em
assuntos que a Constituição define como de competência do Legislativo dizem que
os ministros do STF legislam porque o Congresso não cumpre a sua função. Se for
possível sofismar sobre essa máxima, dá para concluir que o STF age como
oposição porque os partidos políticos, que deveriam fazer isso, não conseguem
atuar de forma eficiente e se constituírem em opção de poder pelo voto.
O Supremo, na maioria das vezes em dobradinha com o
Ministério Público, tem atuado para consolidar um poder próprio, que rivaliza
com o Executivo e o Legislativo, isto é, atua em oposição a poderes
constituídos pelo voto. Tornou-se um bunker poderoso incrustado no coração da
democracia, que mais colabora para manter as deficiências do sistema político
do que para saná-las; e que mais se consolida como uma instância máxima de ação
política do que como uma instituição que deve garantir justiça.
Essas afirmações não são uma opinião, mas uma constatação. O
STF, nos últimos 11 anos, a pretexto de garantir direito de minorias, legislou
para manter o quadro partidário fragilizado nas ocasiões em que o Legislativo –
que não gosta muito de fazer isso – tentou mudá-lo. Como magistrado, seleciona
réus e culpados e muda critérios e regras de julgamento para produzir
condenações e dar a elas claro conteúdo político. O julgamento do caso do
chamado Mensalão do PT foi eivado de erros, condenou sem provas e levará para
cadeia vários inocentes. Casos de corrupção que envolvem partidos de oposição
caminham para a prescrição.
Como legislador, o STF derrubou as tentativas do Congresso
de fazer valer as cláusulas de barreira para funcionamento dos partidos no Legislativo,
votadas pela Constituinte de 1988 e que foram adiadas ao longo do tempo. Elas
serviriam para “enxugar” o quadro partidário das legendas de aluguel.
Em 2008, o Supremo referendou decisão do Tribunal Superior
Eleitoral (TSE), de que perderia o mandato o político que, eleito por um
partido, migrasse para outro depois da eleição. Embora teoricamente defensável,
a decisão de obrigar políticos eleitos à fidelidade partidária apenas fechou a
porta usada regularmente pelo políticos para reacomodação do quadro partidário
depois das eleições, ou de interesses políticos nas vésperas de um novo pleito.
Num sistema político-partidário imperfeito como o
brasileiro, a possibilidade de trocar de legenda era fundamental para o
político. Dada a dificuldade dos políticos eleitos por partidos tradicionais de
sobreviver sem o apoio do governo federal, era comum que, empossado um novo
governo, houvesse uma migração de políticos oposicionistas para partidos da
base aliada. Isso manteve inalterado o número de partidos por um bom par de
anos, embora em número excessivo; e dava um certo fôlego aos novos governos
para compor maiorias parlamentares cuja ausência, num sistema político como o
brasileiro, poder inviabilizar um governo.
Na ausência dessa brecha, e sem que houvessem mudanças no
sistema político que tornassem adequadas as punições para infidelidade
partidária, a decisão do STF escancarou outra porta: abriu uma única exceção
para a migração parlamentar, a criação de um novo partido. O PSD foi criado
pelo grupo do ex-prefeito Gilberto Kassab em 2010, logo após as eleições, para
dar uma alternativa aos integrantes do DEM que constataram que a desidratação
eleitoral do ex-PFL naturalmente levaria o partido à extinção, mesmo com o nome
novo; e que passar mais quatro anos na oposição, para a maioria dos políticos
que lá estavam, também era uma sentença de morte. O PSD foi uma acomodação
pós-eleitoral. A criação do Solidariedade e do PROS (e da Rede também, se o
partido de Marina Silva tivesse obtido registro no TSE) serviram à acomodação
pré-eleitoral no quadro partidário.
Se tudo continuar como está, os períodos de reacomodação das
forças políticas sempre exigirão a criação de novas legendas.
O STF foi o artífice de um novo processo de pulverização
partidária que certamente tornará mais frágil o quadro partidário e mais
deficiente a ação legislativa. E tem inibido o Congresso de legislar sobre
partidos e eleições, quase que fixando os dois temas como reserva de mercado do
Judiciário. A decisão do ministro Gilmar Mendes, este ano, de sustar a
tramitação de um projeto no Legislativo que impedia ao parlamentar que mudasse
para outro partido levar junto o seu correspondente em Fundo Partidário e
horário eleitoral gratuito (que ficaria com o partido pelo qual foi eleito),
foi uma barbaridade jurídica que, se não tinha muito futuro no plenário do SFT,
surtiu o efeito de intimidar o Parlamento de seguir adiante.
Diante desses fatos, é possível concluir, sem margem de
erro, que não apenas os interesses dos integrantes do Congresso estão em
desacordo com uma reforma política. Um risco igualmente grande de fracasso de
uma mudança legal efetiva no sistema partidário e eleitoral reside no Poder
Judiciário.
No caso do Mensalão, o STF não julgou. Os réus já estavam
condenados antes que o julgamento se iniciasse. O hoje presidente do tribunal e
relator da ação, Joaquim Barbosa, deu inestimável ajuda para que isso
acontecesse. A orquestra tocou rigorosamente sob sua batuta, salvo o honroso
desafino do revisor da ação, Ricardo Lewandowski. Seria louvável se o
julgamento servisse para mostrar à sociedade que até poderosos podem ser
condenados, se o processo não deixasse dúvidas de sua intenção de fazer
justiça. As condenações, todavia, foram fundamentadas em erros visíveis a olho
nu. É um contrassenso: para fazer a profilaxia política, condena-se culpados,
inocentes e quem estava passando por perto mas tinha cara de culpado.
Basta uma análise breve do julgamento para constatar que,
não se sabe com que intenção, Barbosa construiu uma acusação sobre um castelo
de cartas: como precisava existir dinheiro público para que a acusação de
desvio de dinheiro público vingasse, forjou o ex-diretor de Marketing do BB,
Henrique Pizzolato, como o “desviador” de uma enorme quantia do Fundo Visanet,
que não era público e que não foi desviado. Pizzolato vai para a cadeia sem que
em nenhum momento, como diretor de Marketing, tivesse poder de destinar
dinheiro do fundo. É uma situação tão absurda que as campanhas contratadas pela
agência DNA, que servia por licitação feita no governo anterior ao Banco do
Brasil, foram veiculadas pelos maiores órgãos de comunicação, que continuam a
falar do desvio embora o dinheiro tenha entrado no caixa de cada um deles.
O STF considerou que a culpa de José Dirceu dispensava
provas e que a assinatura de José Genoíno, então presidente do PT, num
empréstimo feito pelo partido, que foi quitado ao longo desses anos e
considerado legal pelo TSE na prestação de contas do partido, tornava o
parlamentar culpado. Foram decisões politicamente convenientes e aplaudidas por
isso por parcela da população. Esse foi um erro cometido pela elite brasileira,
um grande erro – e torço para que ela perceba isso a tempo. Condenar sem provas
e sem evidências, quando o STF é a instituição que condena, pode se tornar uma
regra, não uma exceção. Qualquer brasileiro poderá estar sujeito a isso a
partir de agora. A visão subjetiva dos ministros do STF terá o poder de
prevalecer sobre qualquer fato objetivo.
Esses dois padrões de decisão do STF só podem ser entendidos
se tomados conjuntamente. São ações que dão sobrevida aos partidos de oposição,
ao manter o partido do governo sob constantes holofotes, de preferência em
vésperas de eleições; e ao mesmo tempo mantém os partidos enfraquecidos por
constantes intervenções em leis eleitorais e partidárias, o que dá à mais alta
Corte brasileira poder constante de intervenção sobre assuntos político.
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