Algo outrora inescapável do epíteto de um escárnio contra o
povo brasileiro está em curso nos dias que correm.
O ruído que provoca - tanto das fileiras do governo, quanto
nas de segmentos que se avocam à esquerda dele - é incompreensivelmente
desproporcional a sua gravidade.
Que as sininhos não badalem e, igualmente, seus carrilhões
silenciem, é ilustrativo do fosso existente entre o inflamável alarido
anti-Copa bimbalhada nas ruas e a real preocupação com o futuro do país e a
sorte da população.
A Associação Médica Brasileira, em sintonia com a embaixada
dos EUA e aliada à coalizão demotucana, tendo respaldo e torcida da mídia,
opera abertamente para destruir um programa de saúde pública emergencial
voltado às regiões e contingentes mais vulneráveis do país.
Não há resguardo das intenções, nem pudor na propaganda da
ação.
A entidade que se proclama representante da corporação
médica brasileira acolhe e viabiliza deserções de profissionais cubanos
fisgados pelo redil conservador em diferentes regiões e municípios.
O Estado brasileiro investirá este ano R$ 1,9 bi em recursos
públicos nesse programa, para agregar 43 milhões de atendimentos/ano ao SUS a
partir de abril, quando o Mais Médicos atingirá seu efetivo pleno, com mais de
13 mil profissionais em ação, sendo seis mil cubanos.
A embaixada dos EUA no Brasil - em sintonia com a Associação
Médica e lideranças dos partidos conservadores - opera abertamente para que não
seja assim.
O tripé orienta e encaminha pedidos de vistos especiais, a
toque de caixa, para que o maior número de desistentes possa rumar a Miami,
onde os espera a estrutura da ‘Solidariedade Sem Fronteiras’.
A ONG de fachada humanitária tem como principal negócio -
financiado por recursos orçamentários que a bancada cubana assegura no
Congresso - promover e operar deserções em convênios de saúde firmados entre
Havana e 66 países nesse momento.
São mais de 43 mil médicos cubanos em ação na América
Latina, Ásia e África. Devem atingir um recorde de 50 mil em dois meses, quando
o convênio brasileiro estiver plenamente implantado.
Um aspecto da remuneração desses profissionais
deliberadamente pouco divulgado é que nem todos os convênios internacionais de
Havana são pagos.
Na verdade, dos 66 países assistidos nesse momento apenas 26
se enquadram no que se poderia chamar de prestação de serviços pagos.
Outros 40 países recebem contingentes médicos gratuitamente.
O mesmo ocorre com missões de educação ou esporte.
A ‘exportação’ de serviços rende a Havana, segundo a
chancelaria cubana, cerca de US$ 6 bi/ano (três vezes mais que a segunda fonte
de divisas do país, representada pelo turismo).
A exportação de serviços pagos - principalmente na área de
saúde – financia as missões solidárias destinadas a países de extrema
precariedade econômica e material ou focadas em situações de calamidade
devastadora.
É assim desde 1960, quando Cuba enviou sua primeira missão
de solidariedade ao Chile, vítima de um terremoto.
Eis a principal razão para a diferença entre o salário
efetivamente recebido pelo profissional de uma missão e aquilo que o governo
cubano arrecada pelo serviço prestado.
Uma parte do saldo financia as missões gratuitas que,
repita-se, são a maioria.
Outra sustenta a Escola Latino-americana de Medicina, que
possuía em 2013 cerca de 14 mil alunos estrangeiros, gratuitamente cursando ou
com subsídio quase integral.
Com pouco mais de 11 milhões de habitantes, Cuba investe
pesado em pesquisa na área de saúde e formação de médicos: são quase 83 mil
(1/138 habitantes).
O investimento tem duplo objetivo: zelar pela população que
tem a menor taxa de mortalidade infantil do mundo, e gerar receita numa
economia asfixiada há 50 anos pelo embargo comercial norte-americano.
Também isso se financia através das missões remuneradas.
A ideia de que a doutora Ramona Rodriguez possa ter
desembarcado no Brasil desinformada dessas particularidades acerca de seu
salario, subestima a conhecida determinação de Havana, de ressaltar interna e
externamente aquela que é a marca inegável de sua ação internacional: a
solidariedade.
A mesma alegação de ignorância tampouco se pode conceder
–neste aspecto-- ao colunismo isento, que cuida de festejar as deserções –por
ora pontuais -- como se fossem o preâmbulo de uma diáspora libertária, em
marcha épica rumo a Miami.
A participação da embaixada norte-americana no jogo de
aliciamento e hipocrisia é ainda mais grave.
Trata-se de uma tentativa de sabotagem de um programa
soberano de saúde pública emergencial, cujo desmonte poderá agregar novas
vítimas e mais sofrimento num universo de milhões de brasileiros desassistidos.
Se a intrusão é desconcertante, não se pode dizer que
surpreenda.
Quando o governo Lula decidiu quebrar a patente de
anti-virais , em 2007, a embaixada norte-americana operou para sabotar a
medida.
Agiu em contato direto com as múltis do setor farmacêutico,
o Departamento de Estado do governo Bush e ‘amigos’ locais -- não se sabe se os
mesmos que hoje cerram fileiras com o duplo interesse de implodir o ‘Mais
Médicos’ e sangrar Havana.
Telegramas secretos da época, obtidos pela organização
Knowledge Ecology International (KEI), revelam ameaças de represália enviadas
então a Brasília:
“(...) uma licença compulsória pode fazer com que
fabricantes de produtos farmacêuticos evitem introduzir novos remédios no
mercado e seria mais difícil para o Brasil atrair os investimentos que tanto
necessita", relatava um deles sobre o teor de reuniões com autoridades e
políticos locais.
Lula oficializaria em maio de 2007 o licenciamento
compulsório do anti-retroviral Efavirenz, usado por 75 mil pacientes de Aids
atendidos pelo SUS. Um genérico importado da Índia passou a ser usado ao preço
de US$ 0,45, contra US$ 1,59 cobrado pela multinacional norte-americana. Uma
economia de US$ 30 milhões até 2012.
Volte-se um pouco mais no tempo, até as vésperas do golpe de
64, e lá estarão, de novo, os mesmos protagonistas, com idênticos propósitos.
O embaixador dos EUA, Lincoln Gordon, fileiras udenistas e
lacerdistas, múltis do setor farmacêutico e sabujos da mídia, a ganir a pauta
da estação.
Eram tempos de inflação galopante e dinheiro curto: a saúde
corria risco.
O então ministro da Saúde, Souto Maior, lutava para obter
uma redução de 50% sobre os preços de 70 medicamentos mais usados pela
população.
Laboratórios das multinacionais abriram guerra contra o
tabelamento.
Às favas a saúde: primeiro, os interesses das corporações.
Lembra algo do comportamento atual da embaixada que se
orienta pelos mesmos valores e da Associação Médica Brasileira que tanto quanto
os abraça?
No famoso comício da Central do Brasil, sexta-feira, 13 de
março de 1964, João Goulart decretou a expropriação de terras para fins de
reforma agrária, encampou refinarias e anunciou estudos para fabricação estatal
de medicamentos no país.
O conjunto era fiel aos preceitos do
‘sanitarismo-desenvolvimentista,’ abraçado então pelas fileiras progressistas
da medicina brasileira.
Médicos como Samuel Pessoa, Mário Magalhães, Gentile de Melo
e Josué de Castro –autor do clássico ‘Geografia da Fome ‘ e primeiro
secretário- geral da FAO, que faleceu no exílio , cassado pela ditadura e
impedido de retornar ao Brasil mesmo para morrer – eram alguns de seus
expoentes.
Profissionais que hoje seriam olhados com suspeita,
enxergavam a luta pela saúde como indissociável da luta pela desenvolvimento
econômico e humano do país.
Em setembro de 1963, Jango, com apoio deles, restringiu a
remessa de lucros da indústria farmacêutica. Mister Lincoln Gordon foi à luta:
a USAID retaliou no lombo da pobreza cortando a ajuda no combate à malária –
que se destacava como uma das principais doenças tropicais na época.
A ofensiva apenas fortalecia as convicções dos
sanitaristas-desenvolvimentistas.
Embora heterogêneos nas filiações ideológicas, seus
representantes entendiam que doença e pobreza caminhavam juntas. Como tal
deveriam ser enfrentadas em ações soberanas, abrangentes e desassombradas, que
rompessem a fragmentária estrutura de uma sociedade retalhado por interesses
que não eram os de seu povo.
Compare-se isso com o sultanato de jaleco branco.
Esse que hoje trata a saúde como um entreposto de camelos;
alia-se ao conservadorismo mais retrógrado e tem na embaixada dos EUA um
corredor de fuga em prontidão obsequiosa.
Bajulado pela mídia, o conjunto quer implodir o ‘Mais
Médicos’.
O nome disso é escárnio. E Brasília deveria dizê-lo
claramente ao embaixador gringo, ao chamá-lo a prestar esclarecimentos sobre
ingerência e sabotagem em assuntos internos.
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