A quatro meses da Copa, as mobilizações contra o Mundial de
Futebol continuam a desafiar as diferentes instâncias de governo envolvidas nos
preparativos. Moradores atingidos por obras, militantes de movimentos sociais e
partidos, jovens organizados pela internet e a classe média amedrontada pelo
perigo bolivariano se misturam em uma rede de indignados, mais de seis anos
após o País ser escolhido para sediar o evento esportivo. Um ensaio dos
protestos ocorreu no último sábado 25 em oito capitais. Em São Paulo, uma
manifestação convocada pelo Facebook por um perfil apócrifo reuniu cerca de 2
mil pessoas e terminou com as costumeiras depredações promovidas por black
blocs, mais de 160 detidos e um jovem baleado, a vítima mais recente do
despreparo das forças policiais para lidar com protestos. Nas demais cidades, a
adesão foi menor e os atos transcorreram sem incidentes graves. Mesmo assim, as
autoridades sentiram o golpe.
Em viagem oficial ao exterior, Dilma Rousseff convocou uma
reunião de emergência com os ministros do Esporte, da Justiça e da Defesa. A
preocupação é de assegurar a paz nos jogos, mas os manifestantes temem que as
polícias estaduais, com o beneplácito da União, insistam na repressão em vez de
abrir canais de diálogo com a sociedade civil. As críticas se concentram nos
vultosos gastos públicos, que beiram os 30 bilhões de reais, e nas intervenções
urbanas, que, em larga medida, deixaram de lado a preocupação em estender os
benefícios da Copa a uma parcela maior da sociedade.
Na frente do Brasília Shopping, um ato com apenas 50
manifestantes demonstrava diferentes faces anti-Copa: black blocs, grupos da
“esquerda revolucionária”, coletivos de mulheres e direitos humanos, jovens
travestidos e carnavalizados com um discurso de moralidade política e combate à
corrupção. Um homem tatuado, vestido vermelho e máscara da presidenta
incorporava a personagem “Dilmadura”. Desfilava com desenvoltura entre as
câmeras de fotógrafos e da tevê, mas se recusava a conceder entrevistas.
Enquanto os militantes de esquerda afinavam o discurso contra o aspecto
excludente da Copa, um servidor público, identificado apenas como Fábio,
repetia o bordão da ala conservadora: “Não tenho ligações com partidos,
sindicatos ou entidades de classe. Falo apenas em meu nome e em nome do povo
brasileiro, que está cansado da corrupção que assola este país há 500 anos”. E
o que a Copa tem a ver com isso? “Tudo, meu amigo. Nunca se roubou tanto
dinheiro como agora.”
Sob o vão livre do Masp, em São Paulo, uma fauna semelhante
se aglomerou no sábado 25. Algumas dezenas de manifestantes, organizados em
torno de um coletivo batizado como “Se Não Tiver Direitos Não Vai Ter Copa”,
montaram barracas. O estudante Vitor Araújo, 19 anos, leu um manifesto contra o
evento. Ele foi atingido pela PM durante um protesto no último 7 de setembro,
quando perdeu a visão de um olho. O coletivo era formado por organizações de
esquerda pequenas, como o Fórum de Saúde e a Anel, entidade estudantil ligada
ao PSTU, além de militantes autônomos. Ao lado, senhoras com os enfadonhos
narizes de palhaço, ativistas de direitos dos animais e manifestantes
contrários à verticalização do Centro da cidade.
Diante do quadro disperso e heterogêneo, os militantes de
esquerda tentavam liderar o protesto. Quem o guiou, porém, foram os adeptos do
black bloc, despertados da letargia dos últimos meses. Apesar dos diferentes
perfis de manifestantes, os adeptos da tática do quebra-quebra foram os únicos
a ganhar atenção nos dias seguintes, no noticiário e nas redes sociais. Na Praça
da República, um bloc levou chutes e pauladas de espectadores de um show em
comemoração aos 460 anos de São Paulo. O Fusca do serralheiro Itamar Santos
pegou fogo ao tentar atravessar uma barreira dos manifestantes, quando um
colchão em chamas ficou preso ao carro. As cenas do velho Fusca consumido pelo
fogo viraram uma arma de quem combate as manifestações na internet. Uma
campanha na rede mundial de computadores para arrecadar fundos para Santos
comprar um novo carro intitulada #vaiterfusca arrecadou 7 mil reais em quatro
dias.
As ações dos blocs foram a justificativa para as mais de 160
prisões naquela noite, o maior número desde junho do ano passado. O estoquista
Fabrício Chaves, 22 anos, acabou baleado pela polícia ao resistir à prisão. Os
policiais alegam ter disparado após Chaves sacar um estilete. O secretário da
Segurança Pública de São Paulo, Fernando Grella, defendeu a ação da PM. “Não
acho que seja manifestante quem anda com estilete, com materiais supostamente
explosivos”, afirmou, sem tecer maiores comentários sobre a proporcionalidade
da reação.
Esse ensaio de manifestação deixou claro ao menos uma coisa:
o grito “não vai ter Copa” é muito mais uma palavra de ordem do que um
objetivo. Embora tenham posições políticas distintas, dezenas de manifestantes
ouvidos por CartaCapital concordam que o torneio não deve ser impedido com
protestos. “Para mim, o ‘não vai ter Copa’ tem outro significado: ‘Não vai ter
Copa sem luta’. Não dá para aceitar tanta lambança de forma passiva”, diz o
historiador João Guilherme, presente no protesto em Brasília. “Pode ter Copa,
mas vai ser difícil entrar no estádio e se locomover. E a responsabilidade é do
governo, que decidiu fazer uma Copa em detrimento do que precisamos”, diz
Wilson Honorio, militante do movimento negro Quilombo Raça e Classe,
participante em São Paulo.
Apenas os organizadores do ato paulistano parecem acreditar
sinceramente na possibilidade de interromper os jogos. “Para tanto, seria
necessário o apoio popular em todo o Brasil. Em junho de 2013, o MPL mobilizou
a população e reduziu a tarifa”, escreve o grupo “Contra Copa 2014” em
entrevista via internet. Por medo de perseguição, eles preferem não se
identificar.
Para conseguir conquistas com essas mobilizações, e não ser
atropelado por manifestantes de direita, o Comitê Popular da Copa de São Paulo
busca pautas concretas, chamadas de “nossos vinte centavos”. Entre as
reivindicações estão a garantia do trabalho de ambulantes durante o Mundial, a
revogação da lei que concede isenção fiscal à Fifa, auditoria popular da dívida
pública e até a desmilitarização da polícia. “Não vamos nos colocar de forma
genérica, como essa campanha ‘contra a corrupção’. Vai ser uma linha à
esquerda,” diz Marina Mattar, jornalista e integrante do comitê. Em todo o
Brasil, 12 comitês discutem constantemente uma pauta conjunta.
A seção paulista foi formada em 2011 por diversas
organizações e movimentos sociais, além de militantes autônomos. Seus
apoiadores reúnem de sem-teto a grupos de teatro e anarquistas. No Rio de Janeiro,
eles coordenaram manifestações amplas há três anos, entre elas a resistência
contra a demolição de uma escola pública, do Museu do Índio e do Estádio de
Atletismo Célio de Barros, todos no entorno do Maracanã.
A mobilização carioca mantém estreitas ligações com
urbanistas, professores e pesquisadores de universidades locais, e produz
dossiês sobre as violações aos direitos humanos, como as remoções forçadas de
moradores por conta das obras da Copa e das Olimpíadas, além de estudos que
alertam para a tendência de uma cidade mais desigual e a segregação de pobres.
“Em qualquer lugar do mundo, os megaeventos esportivos são
acompanhados de uma série de intervenções urbanas que mudam a cara das
cidades-sede. O problema é que, no caso do Brasil, essas intervenções favorecem
a elitização de certos espaços e levam à realocação dos pobres nas áreas
periféricas”, afirma Orlando Santos Júnior, professor da UFRJ, pesquisador do
Observatório das Metrópoles e integrante do comitê carioca. “Há um clima de
‘vale tudo’ pela honra de sediar um evento desse porte e atrair investimentos,
mesmo quando os governos passam por cima dos direitos da população, como ficou
explícito no caso das remoções.” Estima-se a existência de mais de 150 mil
moradores realocados. O governo federal nunca divulgou um balanço nacional dos
desalojados.
Os protestos a favor dos afetados pelas obras não vêm de
agora. “Em 2009, quando o Rio foi escolhido como sede das Olimpíadas de 2016,
protestamos na porta do Copacabana Palace. Tivemos a experiência ruim dos Jogos
Pan-Americanos, que não deixaram nenhum legado para a cidade e atropelaram os
direitos da população mais pobre. Não queríamos deixar isso acontecer de novo”,
diz Inalva Mendes Brito, professora da rede pública e moradora da Vila Autódromo,
comunidade ameaçada de remoção. “Há 20 anos tentam retirar os pobres da Barra
da Tijuca. Após o Pan, a pressão aumentou. Agora, a desculpa é a construção da
TransOlímpica.”
Em 2012, cerca de 2 mil manifestantes estiveram no evento
“Copa pra Quem?”, no Centro de São Paulo. No fim do ano passado, o MPL, a
Marcha da Maconha e a Frente de Luta por Moradia, entre outros, participaram da
Copa Rebelde dos Movimentos Sociais. Agrupamentos sem ligação com o comitê
também reclamaram. O Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto ocupou e fez
protestos em oito estádios. Em 2011, cerca de 2 mil militantes do MTST tomaram
a sede do Ministério do Esporte.
Alguns manifestantes temem a escalada da violência estatal
até o início dos jogos e mudanças legais que possam embasá-la. Uma delas é a
lei para “aumentar a segurança” durante o evento, de autoria do senador e atual
ministro da Pesca, Marcelo Crivella (PRB-RJ). O projeto tipifica como
terrorismo “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado” com penas de
até 30 anos de prisão. A proposta prevê ainda punição para quem “ofender a
integridade corporal ou a saúde de membro de delegação, com o fim de intimidá-lo
ou de influenciar o resultado da partida de futebol”. E restringe o direito a
greve de diversas categorias profissionais no período do Mundial. Uma
manifestante resume o medo da lei: “Não vale a pena protestar se for para eu
ficar 30 anos na cadeia”. O projeto aguarda votação no Senado.
Um decreto do Ministério da Defesa, publicado em dezembro de
2013, prevê a atuação das Forças Armadas em “Operações de Garantia da Lei e da
Ordem” para “preservar a ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio”
e prevenir a “sabotagem nos locais de grandes eventos”. A presidenta pode
requerer o apoio do Exército quando “o esgotamento (das forças de segurança)
decorrer de movimentos contestatórios”. Segundo o ministro Celso Amorim, a ação
visa unificar os procedimentos das três Forças Armadas, e não tem relação
direta com os protestos.
O governo federal apega-se a pesquisas internas, segundo as
quais a maioria da população quer a Copa, está feliz com a sua realização no
Brasil e acha que ela trará benefícios. Aposta, portanto, em manifestações
pequenas, com pouca adesão. “Indicadores mostram que a maioria dos brasileiros,
apesar de querer mais saúde e mais educação, também quer a Copa do Mundo. Não é
a Copa ou a saúde, é a Copa e a saúde”, diz um assessor do Planalto. “Os
integrantes do ‘não vai ter Copa’ são franca minoria, 1%.”
O Palácio do Planalto dá como certa, porém, a ocorrência de
manifestações barulhentas e violentas. Até por isso, não está disposto a
negociar previamente com os movimentos. Para o governo, não haveria o que
discutir, pois o espaço para o diálogo não existe quando uma das partes
simplesmente rejeita o evento.
A estratégia de segurança será a de evitar depredações. O
Ministério da Justiça vai coordenar um plano de trabalho em parceria com as
secretarias estaduais de Segurança Pública, mas o governo federal pretende
deixar claro que cuidar das polícias não é sua atribuição. “Quem comanda a
polícia são os estados, não somos nós. Eles têm autonomia, segundo a
Constituição. O ministro da Justiça não pode baixar em São Paulo e dizer como
os policiais devem se comportar”, pondera o assessor presidencial. A União se
limitará a colocar a Força Nacional e a Polícia Federal à disposição. As Forças
Armadas só serão acionadas em situações excepcionais.
Estimulados diretamente ou não por Brasília, os movimentos
pró-Copa também se intensificaram. Para conter o #nãovaitercopa, difundiu-se a
campanha #vaitercopa, adotada até pela presidenta. Em seu mais recente encontro
com o presidente da Fifa, Joseph Blatter, no intervalo do Fórum Econômico
Mundial em Davos, na Suíça, Dilma Rousseff voltou a classificar o torneio de “a
Copa das Copas”. Em sua passagem por Cuba, a presidenta voltou a criticar os
manifestantes: “Não perceber a importância da Copa é visão pequena”.
Dirigentes do PT negam uma ação coordenada. “Não formulamos
campanha alguma. O #vaitercopa foi um teaser de momento, usado pela nossa
equipe nas redes sociais”, diz José Américo, presidente da Câmara de Vereadores
de São Paulo e secretário nacional de Comunicação do partido. “Em nenhum
momento pensamos em fazer uma contraposição às ruas. As manifestações são
legítimas e é até salutar que ocorram, sobretudo para fiscalizar os gastos
públicos.”
A estratégia da legenda, segundo Américo, é “priorizar o
esclarecimento” da população sobre a importância do Mundial e desfazer
“equívocos” que circulam na internet. “Vira e mexe nos deparamos com dados
inflacionados ou informações enviesadas, que tratam financiamentos do BNDES
para empreendimentos privados como gasto público.”
Uma das pesquisas recorrentemente citadas pelo governo é um
estudo da consultoria Ernst & Young em parceria com a Fundação Getulio
Vargas, que previa 142 bilhões de reais a mais na economia entre 2010 e 2014,
além da geração de 3,63 milhões de empregos.
Os benefícios não devem servir de justificativa para passar
por cima dos direitos da população, rebate Orlando Júnior, da UFRJ. O urbanista
ainda critica o governo por “homogeneizar e desqualificar” os manifestantes.
“Agora, todo mundo é visto como direitista ou instrumentalizado pela oposição,
como se a maioria dos participantes dos protestos não fosse de militantes de
esquerda, muitos deles com histórico de lutas com o PT. Seria mais inteligente
aprender a ouvir, abrir canais de diálogo e desenterrar a reforma do nosso
caduco sistema político.”
Os manifestantes prometem continuar mobilizados até o fim do
evento. O MTST, movimento que tem levado o maior número de militantes às ruas
de São Paulo desde junho, deve reforçar os protestos a partir de 13 de maio.
Páginas apócrifas na internet conclamam novos protestos. Uma efeméride pode dar
força aos protestos na capital paulista. Em 19 de junho, completará um ano que
o prefeito petista Fernando Haddad e o governador tucano Geraldo Alckmin
anunciaram a redução da tarifa de ônibus e metrô, a mais clara vitória das
passeatas do ano passado.
Os governantes levam uma vantagem desta vez. Ao contrário de
junho, quando a voz das ruas surpreendeu a todos, há informações suficientes
sobre o mal-estar e as reivindicações da população, ou de uma parte dela.
Repetir os erros de 2013, principalmente a repressão desproporcional, só tende
a esquentar a panela de pressão. No caos, os grupos organizados perderiam
espaço para a turma “contra tudo que está aí”. E estes, a história ensina,
costumam, no fundo, defender as piores opções.
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