Por Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa:
Nas edições de quinta-feira (8/5), os jornais seguem dando
repercussão ao linchamento da dona de casa Fabiane Maria de Jesus, trucidada no
sábado (3/5) por uma multidão no bairro de Morrinhos, município de Guarujá,
litoral paulista. O leitor encontra referências à investigação policial e
declarações do criador da página do Facebook que teria espalhado o boato sobre
uma suposta sequestradora de crianças, tido como o motivo do crime.
No meio do espanto geral, uma entrevista do marido da vítima
ao Globo parece uma voz deslocada dessa algaravia, por sua triste serenidade. O
viúvo conta como foi o último dia com Fabiane e fala sobre a rotina da família,
o drama dos surtos que ela sofria quando faltavam medicamentos para a
depressão. O resto da reportagem descreve como ela foi confundida com a figura
mitológica da sequestradora que estaria usando crianças para rituais de magia
negra.
O contexto é o da mais absoluta miséria social, aquela que
afeta o discernimento das pessoas, descrita no vocabulário marxista clássico
como o ambiente do lumpemproletariado.
Dificilmente se irá encontrar essa abordagem na imprensa
hegemônica, porque isso significaria penetrar nas contradições do capitalismo e
nas dores que uma sociedade sofre no processo de reduzir as diferenças sociais.
Por essa razão, o leitor de jornais precisaria buscar algumas fontes primárias
para compreender como determinados segmentos da população podem viver na
fronteira da civilização com a barbárie, em pleno século 21.
Antes, porém, convém observar que a visão de mundo
obscurantista não é característica exclusiva do indivíduo miserável, sem
educação formal. Essa espécie de analfabetismo político, que inibe a
consciência do papel do indivíduo no contexto social, também se revela nas
camadas superiores de renda e de escolaridade.
As manifestações de não-civilidade das classes privilegiadas
podem ser observadas na opinião de colunistas da imprensa que estimulam o
radicalismo e a intolerância. Trata-se, neste caso, de uma lumpemburguesia, tão
pobre de espírito quanto os lumpemproletários.
As dores da democracia
A expressão lumpemburguesia foi criada por Andreas Gunder
Frank (1929-2005), sociólogo e economista americano de origem alemã, cujas
ideias, curiosamente, têm origem semelhante às que levaram o sociólogo
brasileiro Fernando Henrique Cardoso a adaptar a teoria da dependência
econômica à América Latina.
Frank elaborou essa derivação da expressão marxista para
identificar a presença do analfabetismo político no topo da pirâmide social, ao
descrever o perfil reacionário e irracional de certa classe burguesa
latino-americana, que repudia sua nacionalidade e age contra os interesses de
seu próprio povo.
Por que estamos derivando para esse tema? O que isso tem a
ver com o assassinato brutal de Fabiane Maria de Jesus?
Porque a imprensa, objeto de nossa observação, parece
justificadamente indignada com o trucidamento da dona de casa, mas não percebe
o mal que produz ao tolerar os linchamentos morais que fazem a rotina de suas
páginas. Ao despejar seletivamente suas rajadas contra as instituições
públicas, a imprensa provoca a demonização dos poderes republicanos, criando no
imaginário do lumpemburguês e do lumpemproletário uma aversão ao regime
democrático e à legitimidade da ordem social.
É função da imprensa fazer a crítica pública do poder, mas
também é sua obrigação fazer a defesa do regime democrático, sem o qual a
própria imprensa deixa de existir. O descrédito de instituições como o
Congresso Nacional, por exemplo, tem origem no desempenho de parte de seus
integrantes, atados em alianças que desfazem o sentido ideológico do sistema
político, mas não há como fugir à evidência de que as denúncias espetaculosas,
sempre discriminadas em função desta ou daquela sigla, dão ao analfabeto
político a convicção de que é tudo a mesma porcaria.
O lumpemproletário se julga dotado de uma razão pura ao
promover o que considera “justiçamento”. O lumpemburguês considera justificados
seus preconceitos pela visão depreciativa que a imprensa lhe apresenta
diariamente de seu próprio país e seu povo.
Entre os dois focos da ignorância, a democracia brasileira
sofre as dores do crescimento.
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