Autor: Fernando Brito
“Num país que ostenta incríveis níveis de pobreza, onde os
direitos da população são frequentemente esquecidos e que sofre de uma
politicagem endêmica, a atitude dos depredadores é até compreensível”.
A frase acima, há de concordar o estimado leitor e a arguta
leitora, é absolutamente compatível com o que diria qualquer “blackbloquista”,
destes que admitem como legítimo o exercício da violência em manifestações,
antes ditas populares e agora restritas a quantidades dignas de seitas.
Esta frase, no entanto, é apenas uma versão que fiz da
declaração da apresentadora Rachel Sheherazade, ao defender o bárbaro
espancamento de um rapaz negro por um grupo dejovens imbecis no Flamengo, tempos atrás.
Disse ela, ipsis literis:
“Num país que ostenta incríveis 26 assassinatos a cada 100
mil habitantes, arquiva mais de 80% de inquéritos de homicídio e sofre de
violência endêmica, a atitude dos ‘vingadores’ é até compreensível”.
Assim como não defendo o vandalismo, nem o linchamento de
ninguém, muito menos de Sininho ou Sheherazade, porque não sou um imbecil
justiceiro, também não concordo com o movimento de “vitimização” de pessoas
sobre as quais há fortes indícios que tenha planejado atos que vão além de
qualquer “tática de autofesa”, como preparar coquetéis molotov ou levar galões
de gasolina para pretender incendiar próprios públicos.
Elisa Quadros e Sheherazade, uma em cada hemisfério, são
adeptas do exercício arbitrário das próprias razões, que acreditam legítimas.
Já levei algumas borrachadas de PM e funguei com gás
lacrimogênio, o suficiente para não gostar absolutamente nada dos que, em minha
juventude, chamávamos de “samangos”. A princípio, claro, na militância já os
despersonalizamos para um genérico “repressão”.
E, perdoem-se as senhoras da sala, polícia é foda, desde que
o mundo é mundo.
A diferença é que hoje, a regra é poder se manifestar-se . Os abusos, brutalidades e
selvageria policiais, diante de manifestações pacíficas seriam, agora, o que
estaríamos discutindo se e como punir.
Mas, não.
Estamos discutindo os “musos e musas” de manifestações que,
por interesses políticos – e por conta, também, de tal selvageria policial –
foram, a princípio, glamourizados pela mídia.
Caetano ganhou capa de jornal com máscara preta.
Boechat defendeu os quebra-quebras.
Jabor os saudou como mais que os “carapintadas”.
Agora, os garotos e nem tão garotos, abandonados pelo
sistema conservador que os viu como ferramenta de desestabilização do governo
-muito mais como porta-vozes de anseios por educação, saúde, dignidade que não
deram ao povo em seu secular domínio do Brasil – estão aí, largados ao chão
como laranja espremida, da qual não pode ser tirado mais caldo algum e que,
portanto, merecem ser lixo.
Pessoas não são lixo, não importa o que tenham feito.
Seja o garoto que roubou um cordão ou a mocinha que planejou
um pueril e irresponsável incêndio.
Como também não são heróis, nem ele da distribuição da
riqueza, nem ela com a fogueira “revolucionária”.
Houve uma confusão imensa entre direito de manifestação e
direito de provocação e quem saiu cambeta disso foi a liberdade de as pessoas
se expressarem.
Hoje, para o bem e para o mal, manifestação tem de ser feita
em meio a cordões policiais.
O que, ainda que fossem todos frades capuchinhos – e estão a
léguas disso – já é um constrangimento e um elemento de afastamento das
pessoas.
Mas têm de estar ali, porque já se adotou como norma que,
numa manifestação qualquer, meia-dúzia tem o direito de quebrar, vandalizar,
incendiar.
Como escreveu um amigo: “os caras fazem bombas, quebram
lojas, bancos, orelhões, pontos de ônibus – que são usados por trabalhadores
para ir e voltar do trabalho todo dia! – e aí quando a força policial vai
contra eles isso é perseguição política?”
A esquerda não é isso.
Sobretudo porque, divergindo de um governo social-democrata
“manso e silente”, como tantas vezes nos irrita que este seja, jamais serve de
combustível à máquina de propaganda de uma direita que os insuflou e que,
agora, ainda tenta tratá-los como criminosos de alta periculosidade, o que não
são.
São brotos tortos e deformados do lodo político a que vem
sendo levado este país, lama formada por uma política que apodreceu.
O conservadorismo reage como fera às mudanças que isso
precisa sofrer, numa reforma que não é possível acontecer dentro das estruturas
parlamentares convencionais, parte da podridão.
Só um movimento extraordinário – mas dentro da regra suprema
da democracia, o voto – pode fazê-la.
Mas não há nada que deixe mais histérica a direita do que a
ideia de uma constituinte exclusiva para reforma política e de um plebiscito
para legitimá-la.
Porque isso, ao contrário das vidraças quebradas e dos
“ativistas queimados” é que muda a vida brasileira.
Quanto aos meninos, meninas e aos nem tanto assim, não
precisam de solidariedade política, porque esta não merecem, pelo mal que
fizeram ao direito político de livre manifestação.
Precisam de um julgamento justo, sem manipulações ou
situações forjadas e, se culpados, de penas que não os brutalizem.
Porque, do contrário, seremos como a Sininho ou a
Sheherazade, donos absolutos e intransigentes de verdades inquestionáveis e
mais preocupados em linchar os divergentes
do que em consertar e avançar coletivamente.
Quando um país deixa de olhar o futuro e de discutir como
chegar a ele e passa a viver exclusivamente da manchete do jornal de hoje,
perde o rumo como quem anda de bicicleta olhando para o chão apenas.
E quando um país perde o rumo, é parte de sua juventude, que
ainda não conhece tanto as pedras do caminho, a primeira a bater com a cabeça.
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