Por Altamiro Borges
O atentado à sede do jornal satírico “Charlie Hebdo”, que
resultou em 12 mortos – incluindo renomados cartunistas –, causou enorme
comoção na França. De forma espontânea, durante vários dias da semana passada,
milhares de pessoas foram às ruas para prestar apoio às famílias das vítimas e
para condenar o terrorismo. Neste domingo (11), numa marcha já não tão
espontânea, cerca de 3,7 milhões de populares ocuparam as ruas das principais
cidades francesas – na maior manifestação pública da história do país. Na linha
de frente do protesto em Paris, porém, um “cordão de autoridades” reuniu
famosos carniceiros que nunca respeitaram as vidas humanas e as liberdades
democráticas. Puro oportunismo!
Entre estes verdadeiros terroristas, destaque para o
primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, que promove bombardeios
diários contra os palestinos, chacina crianças e idosos sem dó nem piedade e
ainda castra a liberdade de expressão em seu próprio país. De braços dados com
o facínora israelense, outros líderes da direita mundial – como a chanceler
alemã Ângela Merkel e os premiês da Espanha, Mariano Rajoy, e do Reino Unido,
David Cameron – que nunca vacilaram em utilizar a violência contra os povos.
Por razões ideológicas ou por interesses eleitorais, todos tentaram se
aproveitar de maneira oportunista do sangue derramado na redação do jornal
“Charlie Hebdo”.
A tendência é que vários destes líderes da direita explorem
o clima de comoção para impor novas medidas de caráter fascista. Contra o
chamado “terrorismo islâmico” – o que já é uma perigosa generalização que
reforça o preconceito e o ódio aos milhões de imigrantes que vivem na Europa –
haverá o recrudescimento de outros tipos de fundamentalismo. A onda
conservadora que varre o velho continente, atolado numa prolongada e destrutiva
crise econômica, deve se agudizar no próximo período. O medo inclusive será
usado para evitar a vitória das forças contrárias à elite burguesa e aos seus
programas de austeridade neoliberal – como já sinalizam as eleições na Grécia e
na Espanha.
Uma coisa é condenar, de forma enérgica e sem qualquer
hesitação, o bárbaro atentado à sede do jornal “Charlie Hebdo”. Outra coisa é
servir de massa de manobra para os que agora tentam tirar proveito desta ação
criminosa para justificar os seus crimes contra a humanidade. Chega a ser
patético observar veículos da mídia monopolista adotando o lema “Je suis
Charlie” (Eu sou Charlie). Eles deram apoio às guerras imperialistas, às
ditaduras sanguinárias, à violência contra a verdadeira liberdade de expressão,
aos planos econômicos regressivos e destrutivos do capital. Tentam agora pegar
carona na indignação para defender a “liberdade dos monopólios” – que não tem
nada a ver com a liberdade de expressão.
Reproduzo abaixo dois artigos publicados na Folha que ajudam
a refletir criticamente sobre os graves episódios recentes na França:
*****
Guerra entre fundamentalismos
Tariq Ali - 11 de janeiro de 2015
Sacralizar um jornal satírico que dirige ataques a vítimas
da islamofobia é quase tão tolo quanto justificar os atos de terror contra a
publicação
Foi um acontecimento terrível. Foi repudiado em muitas
partes do mundo e de maneira mais veemente por cartunistas de países árabes e
de outros lugares. Os arquitetos dessa atrocidade escolheram seus alvos com
bastante cuidado. Eles sabiam muito bem que tal ato criaria o maior dos
horrores.
Foi a qualidade, não a quantidade que eles procuravam. Eles
não dão a mínima para o mundo dos incrédulos. Como Kirilov em "Os
Demônios", romance de Dostoiévski, eles pensam que "se Deus não
existisse, tudo seria permitido".
Ao contrário dos inquisidores medievais da Sorbonne, eles
não têm a autoridade legal e teológica para assediar livreiros ou donos de
gráficas, proibir livros ou torturar escritores, de modo que se sentem livres
para dar um passo além.
E os soldados de infantaria? As circunstâncias que atraem
homens e mulheres jovens para esses grupos não são escolhidas por eles, mas
pelo mundo ocidental no qual vivem --ele próprio é resultado de longos anos de
domínio colonial.
Os terroristas que realizaram o massacre no semanário
satírico "Charlie Hebdo", em Paris, na quarta-feira (7), gritavam
"Deus é grande". Não faço ideia se eles acreditavam que tinham sido
acolhidos por Deus ou que estavam a mando dele, mas o que sabemos é que os dois
irmãos parisienses --Chérif e Said Kouachi-- eram maconheiros cabeludos que
viram imagens da Guerra do Iraque, em 2003, e, em particular, das torturas na
prisão de Abu Ghraib e dos assassinatos a sangue frio de iraquianos em Fallujah.
Esses rapazes buscaram conforto na mesquita. Foram
recrutados por radicais islâmicos que viram na "guerra ao terror" do
Ocidente uma oportunidade de ouro para recrutar jovens tanto no mundo muçulmano
como nos guetos da Europa e da América do Norte.
Enviados primeiro ao Iraque para matar americanos e, mais
recentemente, à Síria (com a conivência do Estado francês?) a fim de derrubar
Bashar al-Assad, eles foram ensinados a utilizar armamentos de forma eficaz. De
volta à Europa, colocaram em prática os seus conhecimentos. Eram perseguidos e
o semanário representava seus perseguidores. Deixar o horror nos cegar para
essa realidade seria miopia.
O "Charlie Hebdo" nunca escondeu o fato de que
continuaria provocando os muçulmanos com blasfêmias ao profeta. A maior parte
dos muçulmanos estava com raiva, mas ignorou os insultos.
Para a publicação, era uma defesa dos valores seculares
republicanos contra todas as religiões. O semanário atacava ocasionalmente o
catolicismo, dificilmente --ou nunca-- o fazia contra o judaísmo, mas
concentrou sua ira sobre o islã.
A secularidade francesa de hoje significa, essencialmente,
qualquer coisa que não é islâmica. Defender o direito de publicar o que
quiserem, independentemente das consequências, é uma coisa, mas sacralizar um
jornal satírico que dirige ataques regulares àqueles que já são vítimas de uma
islamofobia desenfreada nos EUA e na Europa é quase tão tolo quanto justificar
os atos de terror contra a publicação.
A França tem leis para restringir liberdades se há alguma
suspeita de que elas possam causar agitação social ou violência. Até agora elas
têm sido usadas para proibir apenas as aparições públicas do comediante francês
Dieudonne por causa de piadas antissemitas e proibir manifestações
pró-palestinos.
Mas isso não é visto como algo problemático por uma maioria
de franceses que chia bem alto. Também não houve vigílias pela Europa quando se
soube há alguns meses que foi utilizada tortura contra prisioneiros muçulmanos
entregues à CIA por países europeus.
Há um pouco mais que sátira em jogo. O que estamos
testemunhando é um conflito entre fundamentalismos rivais, cada um mascarado
por diferentes ideologias.
A economia política da Europa está confusa e, na ausência de
uma alternativa real ao capitalismo (não apenas ao neoliberalismo), o vácuo
político vai crescer e novas forças emergem na luta pelo poder.
A extrema direita está em ascensão na França. Marine Le Pen
está na vanguarda, liderando as pesquisas para a próxima eleição presidencial,
sempre relacionando os recentes acontecimentos à imigração desenfreada e
dizendo que ela sempre havia alertado para isso.
Que pena que o filme de Gilli Pontecorvo "A Batalha de
Argel" (1966) ainda tenha que ser visto em Marselha. Algumas liberdades
são claramente mais preciosa que outras.
Tariq AliI, 71, escritor paquistanês, é autor de "O
Poder das Barricadas" (Boitempo), dos romances que formam a coleção
Quinteto Islâmico (Record), entre outros livros. É membro do conselho editorial
da revista britânica "New Left Review"
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Ateu, graças a deus
Ricardo Melo – 12 de janeiro de 2015
'Ópio do povo', o fanatismo religioso cristão ou islâmico é
o combustível de tragédias como a do Charlie Hebdo
A barbárie estampada na chacina parisiense suscita inúmeras
questões. O ponto de partida: sob nenhum ponto de vista é possível justificar o
ataque dos fanáticos contra a redação do Charlie Hebdo. Agiram como facínoras,
quaisquer que tenham sido suas motivações. Não merecem nenhum tipo de
comiseração. Invocar atenuantes é renunciar aos (poucos) avanços que a
civilização humana proporcionou até agora.
"A religião é o ópio do povo", diz uma frase de
velhos pensadores. Permanece verdadeira até hoje. Qual a diferença entre as
Cruzadas, a Inquisição e o jihadismo atual? Nenhuma na essência. Tanto uns como
outros usaram, e usam, a religião como justificativa para atrocidades
desmedidas.
Tanto uns como outros servem a interesses que não têm nada a
ver com o progresso da civilização e a solidariedade humana. Todos glorificam o
sofrimento como bênção maior, em nome de um além cheio de felicidade e
redenção. Se você é pobre, está abençoado. Se você é rico, dê uns trocados no
semáforo para conquistar o passaporte para o céu.
Com base em conceitos simplórios como estes, milhões e
milhões de homens e mulheres são amestrados para se conformar com a exploração,
as injustiças e o sofrimento cotidiano. Sejam cristãos, islamitas ou
evangélicos. Por trás dessa retórica, sempre haverá um califa, um Paul
Marcinkus, um bispo evangélico, um papa pronto para amealhar os benefícios do
rebanho obediente.
A figura de deus, em minúscula mesmo, é recorrente em
praticamente todas as religiões. Com nomes diferenciados, ajudou a massacrar islamitas,
montar alianças com o nazismo e dar suporte a ditaduras mundo afora. Na outra
ponta, serviu, e serve, de "salvo conduto" para desequilibrados
assassinarem jornalistas, cartunistas ou inocentes anônimos numa lanchonete ou
ponto de ônibus.
Um minuto de racionalidade basta para destruir estes dogmas.
A Igreja Católica combate a camisinha quando milhões de africanos morrem como
insetos por causa da Aids. Muçulmanos fundamentalistas aceitam estupros como
"adultério" e subjugam as mulheres como seres inferiores em nome de
Maomé.
Certo que, paradoxalmente, o obscurantismo religioso algumas
vezes serviu de combustível para mudanças sociais. Khomeini, no Irã, é um
exemplo, embora o resultado final não seja exatamente promissor. Já a primavera
árabe atolou num inverno sem fim. Hosni Mubarak, ditador de papel passado,
recentemente foi absolvido de todos os seus crimes contra o povo do Egito. Os
milhões que se reuniram na praça Tahrir para denunciar o autoritarismo em
manifestações memoráveis repentinamente viraram réus. Tão triste quanto isso é
saber que a grande maioria deles conforma-se com o destino cruel. "É o
desejo do profeta", em minúscula mesmo.
A história registra à exaustão a aliança espúria entre
religiosos e um sistema que privilegia desigualdade e opressão. O Estado
Islâmico foi armado até os dentes por nações "democráticas". Bin
Laden e sua seita de fanáticos receberam durante muito tempo o apoio da CIA.
Hitler, Mussolini e sua gangue mereceram a complacência do Vaticano em momentos
cruciais. Binyamin Netanyahu, o algoz dos palestinos e carrasco da Faixa de
Gaza, posou de humanitário numa manifestação em Paris contra o
"terror".
Respeitar credos é uma coisa; nada contra a tolerância
diante das crenças de cada um. Mas, sem tocar na ferida da idiotia religiosa
como anteparo para interesses bem materiais, o drama de Charlie Hebdo será
apenas a antessala de novos massacres abomináveis.
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