Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Matriz ideológica da Operação Lava Jato, com a qual o juiz
Sérgio Moro investiga a Petrobras e ameaça produzir uma crise sem paralelo em
nossa história política, a Operação Mãos Limpas merece mais do que um minuto de
reflexão por parte dos brasileiros.
Iniciada com um flagrante forjado contra um alto funcionário
do Partido Socialista Italiano, em Milão, em 1992, em dez anos a Operação Mãos
Limpas investigou 6 000 pessoas e condenou 1223, entre empresários,
parlamentares e dirigentes políticos. Dez acusados se suicidaram, entre eles um
presidente e um diretor da ENI, a estatal italiana de petróleo, que mais tarde
foi privatizada. Vinte anos depois, as vitórias contra a corrupção merecem
aplauso e reconhecimento mas não permitem uma visão heróica nem romântica. Há
um número considerável de perguntas que precisam de respostas.
Os primeiros passos da Operação ocorreram naquele período
histórico inaugurado pela queda do Muro de Berlim e o esfacelamento da União
Soviética, quando Washington procurava definir um novo eixo da política mundial
depois da Guerra Fria, tentando consolidar-se como única potência mundial.
Força subterrânea e decisiva da política italiana desde o
final da Segunda Guerra, quando articulou o condomínio destinado a impedir de
qualquer maneira que o Partido Comunista chegasse ao governo, a participação da
CIA na Operação Mãos Limpas é um fato admitido mesmo por diplomatas
norte-americanos.
O principal troféu político da Operação foi a destruição da
carreira do primeiro ministro Bettino Craxi, do PS, que, ao assumir o posto, em
1983, tornou-se o primeiro chefe de governo italiano, em quarenta anos, que não
pertencia aos quadros da Democracia Cristã, partido que governou a Italia com
apoio direto do Vaticano e de Washington.
Na Europa de seu tempo, Craxi chegou a ser conhecido por dar
apoio a militantes perseguidos pelas ditaduras apoiadas pelos EUA no Velho
Mundo, como o fascismo na Espanha e o salazarismo em Portugal — até o fim da
vida seria elogiado por Mário Soares por essa atuação. Acusado de aceitar
favores e dinheiro clandestino de grandes empresas, Craxi exilou-se na Tunisia,
onde morreu, em 2000. Craxi sempre assegurou que recebera verbas de campanha
eleitoral, usadas desde sempre pela totalidade dos partidos políticos, e
questionava a visão de quem pretendia classificar a democracia italiana como um
caso de polícia.
“Se a maior parte disso (dos recursos de campanha) deve ser
considerada pura e simplesmente criminosa, então a maior parte do sistema
político é um sistema criminoso, ” disse, num discurso ao parlamento. “Não
conheço ninguém nesta Casa que possa ficar em pé e negar o que eu digo.”
A verdade é que no segundo ano de seu mandato Bettino Craxi
tornou-se um político descartável por Washigton depois que se recusou a aceitar
uma intervenção norte-americana no sequestro do Achille Lauro, um navio de turistas
que navegava pelo Mediterrâneo até que foi dominado por quatro terroristas
palestinos. Quando o sequestro terminou caças da Força Aérea dos Estados Unidos
interceptaram um avião militar italiano que transportava os terroristas, já
feitos prisioneiros, forçando sua aterrisagem numa base militar dos EUA na
Sicilia, num esforço para julgar os sequestradores conforme suas próprias leis,
embora o crime tivesse ocorrido em águas territoriais italianas, Craxi
enfrentou o estilo cowboy da diplomacia de Reagan e, mobilizando a Força Aérea
e os Carabinieri, assegurou que os sequestradores fossem julgados por um
tribunal italiano.
Conforme o diplomata Reginald Bartolemew - embaixador dos
Estados Unidos em Roma entre 1993 e 1997 - admitiu ao jornal La Stampa, os
primeiros passos da investigação sobre a corrupção política na Italia foram
partilhados entre o Ministério Público, em Milão, e a CIA. O embaixador assumiu
o posto em Roma como homem de Bill Clinton na Italia, para suceder aos
diplomatas do governo republicano de George Bush, pai. Bartholemew conta que
desembarcou na Itália quando as denúncias e prisões se encontravam em seu ponto
máximo, o que fazia a Casa Branca temer pelo estabilidade política de um país
que se tornara um aliado histórico. Convencido de que a Operação se
transformara numa perseguição fora de todo controle (“os direitos de defesa dos
acusados eram violados sistematicamente, o que era inaceitável”), Bartholemew
participou de articulações para formar um novo sistema de partidos políticos,
com a presença de neo-fascistas, e de sobreviventes do antigo PC, convertidos à
posição de aliados da Casa Branca de Bill Clinton.
Para o embaixador, o ponto grave, no aspecto jurídico, é que
os tribunais se mostravam inteiramente intimidados pela ação do Ministério
Publico. Bartholemew convidou um ministro da Suprema Corte dos Estados Unidos,
Anthony Scalia, para reunir-se com magistrados italianos. No encontro, diz o
embaixador, Scalia lembrou aos magistrados que tinham obrigação em defender os
princípios da Justiça e os direitos dos acusados. Também disse que as prisões
preventivas contrariavam “frontalmente os direitos dos acusados” e também os
“princípios fundamentais do direito anglo-saxão.”
Essa advertência de Anthony Scalia, magistrado conhecido pelo
apego absoluto aos direitos individuais - ele é adversário da política de cotas
- joga luzes sobre a dificuldade de se produzir sentenças serenas num ambiente
de investigações abertamente politizadas. A Operação Cosa Nostra, que se
iniciou uma década antes da Mãos Limpas, e tinha as organizações mafiosas como
alvo específico, condenou Giulio Andreotti, um dos principais políticos da
democracia cristã, com sete ministérios no currículo. Quatro anos depois,
Andreotti foi absolvido, por falta de provas.
Muitas pessoas acreditam que os 12 suicídios entre acusados
na Operação Mãos Limpas devem ser vistos como provas definitivas de culpa,
excluindo-se a hipótese de que a capacidade de resistência dessas pessoas tenha
sido quebrada pela convicção de que haviam se tornado impotentes para enfrentar
um tratamento que consideravam abusivo. Conforme esse ponto de vista, as mortes
seriam uma espécie de confissão, auto-punição, arrependimento. Será mesmo?
O comportamento do deputado Sergio Moroni, que matou-se aos
45 anos com um tiro na boca em casa, onde morava com a mulher e a filha,
permite duvidar dessa visão. Antes de cometer suicídio, Moroni enviou uma carta
ao presidente da Assembléia Nacional. O documento nada tem de confissão. É uma
denúncia. Ele escreve: “não creio que nosso país irá construir o futuro que
merece cultivando um clima de progrom contra a classe política.”Moroni critica
os jornais e as emissoras de TV por “destruir reputações”sem dar ouvidos ao
outro lado. Lembrando que “não é fácil distinguir quem aceitou adequar-se aos
procedimentos decorrentes de uma lógica de partidos e quem tirou proveito
pessoal”, fala de “um longo véu de hipocrisia que tem acobertado por longos
anos o modo de vida dos partidos e dos sistemas de financiamento de campanha.” Numa
demonstração de que enxergava os riscos em jogo, Moroni diz que “espero
contribuir para uma reflexão mais justa”, a respeito de uma “democracia que
deve tutelar-se.”
Culpado ou inocente, a carta de Moroni aponta para a questão
central - a soberania popular, que não admite tutelas na democracia, sob o
risco de desfigurar-se, como todo regime construído de fora para dentro. A
intervenção, as prisões e cassações destruíram um sistema partidário formado
livremente pela sociedade italiana após a vitória contra o fascismo.
Realizou-se um processo seletivo, que abriu espaço para organizações de
natureza fascista, como a Liga do Norte e o Movimento Social Italiano, e também
para o antigo Partido Comunista, — todos acabariam sentando-se a mesa do
embaixador Bertholomew para debater o futuro político do país. (Antonio di
Pietro, o procurador que liderou as Mãos Limpas, também tentou uma fatia do
bolo. Fundou um partido que nunca passou dos 3% dos votos).
Na principal ironia da história, o maior beneficiário da foi
o empresário de mídia Sylvio Berlusconi, personagem inclassificável em muitos
aspectos, inclusive aqueles que não fazem parte de conversas familiares. Graças
a Mãos Limpas, que tirou de cena concorrentes que poderiam lhe fazer frente,
Berlusconi teve força para ocupar por duas vezes o posto de primeiro-ministro,
totalizando uma permanência somada de sete anos e meio no cargo, período que
fez dele o mais duradouro chefe de governo italiano em seis décadas de
pós-Guerra, superando diversas raposas com mais experiência e talento.
Dentro de um universo de instituições enfraquecidas, a posse
de uma rede privada de emissoras de TV transformou Berlusconi num político
imbatível, que acumulou poderes de ditador e foi capaz de submeter o país a uma
sucessão de vexames - no caso mais notável, convenceu o Parlamento a aprovar
uma lei que simplesmente impedia que fosse investigado por corrupção. Quando
deixou o cargo, forçado por mais escândalos - fiscais, familiares, etc - o
regime político italiano fora colocado de joelhos, como um poder submisso
diante da troika do FMI, do Banco Central e da União Européia, que desde então
se vale de sucessivos governos sem musculatura real para levar em frente uma
política de esvaziamento de um dos mais respeitados estados de bem-estar social
do planeta.
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