Por Rodrigo Vianna, em seu blog:
O Brasil já teve sua “República dos Bacharéis”. Durante a
primeira fase republicana (1889-1930), o ambiente político era dominado pelo
vocabulário jurídico e recheado de frases pomposas em latim – forjadas nas
“Academias” de Direito (especialmente, a Faculdade do Largo São Francisco, em
São Paulo).
Era um saber disponível para poucos. Era a marca distintiva
do poder.
Numa aproximação simplista, penso nos bacharéis e suas
frases barrocas ao deparar-me com o ambiente que vai dominando o debate
político no Brasil nesse início do segundo mandato de Dilma. Em vez de
“República dos Bacharéis”, vivemos sob uma espécie de “República dos
Economistas”.
Reparem nos símbolos, nas operações poucos sutis –
escancaradas pela capa de “Veja”. A revista conservadora paulista contrapõe
Dilma e Joaquim Levy, sob o título: “O Poder e o Saber”. É como se a
legitimidade não estivesse nas mãos de quem elegemos pelo voto. Mas no “saber”
de poucos escolhidos – que sabem adotar a “verdadeira” cartilha econômica.
É um saber disponível para poucos. É a marca distintiva do
poder.
FGVs, PUCs do Rio, UFRJs e FEAs/USP substituem a velha
academia do Largo São Francisco. Só há hoje um vocabulário aceitável no trato
das coisas de Estado. O poder está nas mãos dos economistas e consultores. É
uma questão “técnica”.
O “mercado” e seus consultores são os únicos ouvidos pelo
Banco Central antes de definir a taxa Selic. A razão de Estado está seqüestrada
por um saber “técnico” que encobre interesses claros: os consultores que pedem
juros mais altos trabalham para bancos que ganham com os juros.
Simples, mas bem disfarçado.
Habilidoso, Levy usou no discurso de posse como novo
Ministro da Fazenda o conceito de “patrimonialismo” – que, segundo ele, é
preciso combater. Trata-se da apropriação clara, por uma visão anti-Estado, de
um conceito forjado pela sabedoria de Raimundo Faoro, no precioso livro “Os
Donos do Poder”.
Levy é festejado pela velha mídia (em tudo – ela mesma –
patrimonialista, familiar e conservadora) como um bom “liberal”, capaz de se
contrapor aos excessos estatistas da era Guido Mantega.
Estamos salvos pela sabedoria de Levy!
Somos informados que alguns dos escolhidos pelo novo
ministro estudaram em Chicago – que há tempos substituiu a velha Coimbra, como
meca acadêmica para onde a elite envia seus filhos e netos. Afonso Arinos de
Melo Franco Neto (reparem na grandiloquencia do sobrenome) é um dos neo-sábios
assessores de Levy; carrega o nome de um senador udenista dos velhos tempos (e
carrega o mais importante: a chancela de Chicago e da FGV-RJ).
Em verdade, desde a redemocratização, em 1985, o debate
político vinha sendo dominado pelos economistas. Mesmo aqueles nem tão liberais
- como Sayad e Bresser, nos idos do governo Sarney.
Foi, aliás, o mais medíocre dos “economistas” sarneyzistas
quem virou dono da principal “Consultoria” econômica liberal: o ex-ministro
Mailson da Nóbrega criou a “Tendências” – com escritório (sintomaticamente) na
rua Estados Unidos, em São Paulo. Nos anos 90, jovem repórter da Globo, era na
“Tendências” que eu colhia as entrevistas de “especialistas” que endossavam a
política neoliberal de Malan/FHC.
Reparem: Maílson – um funcionário público de carreira, um
quadro forjado no Estado brasileiro e que chegou quase por acaso a Ministro da
Fazenda com Sarney – colocou-se alguns anos depois a serviço de um projeto que
defendia o desmonte do Estado.
Naquela época, Gustavo Franco, Malan e Armínio Fraga –
secundados pela rapaziada das “consultorias”, e pelos “colunistas” ligados ao
mercado – fizeram crer que só havia uma saída para o país: “fazer a lição de
casa” (expressão que ainda hoje me revira o estômago).
Os economistas sabiam o que era melhor para o Brasil:
privatizar, financeirizar, reduzir o tamanho do Estado, abrir o país, “enterrar
a Era Vargas” (como ousou dizer FHC – o arrogante sociólogo que chefiava a
tropa de economistas liberais).
O Mercado devia trabalhar. Era isso. Ponto final. A história
havia terminado com a derrocada da União Soviética. O resto era
“nhem-nhem-nhem”.
Lula aceitou o jogo em 2002. Rendeu-se (ou parecia ter-se
rendido) ao discurso da lição de casa. Iniciou o primeiro governo com a dupla
Palocci/Meirelles e sob a égide mercadista. Mas, a partir de 2005/2006, mudou a
tática, com a preciosa parceria de Guido Mantega.
Nascido em Gênova, próximo do PT desde os anos 80, Mantega –
o mais longevo Ministro da Fazenda da história brasileira – no futuro será
certamente estudado nas universidades (nas PUCs do Rio e FGVs, seria hoje
massacrado): há que se compreender de forma honesta o papel dissonante – e
grandioso – que ele cumpriu, ao adotar políticas econômicas em parte
antagônicas ao chamado “mercado”.
Economia não é uma ciência pura (aliás, nenhuma ciência o é,
nem a Matemática). Há um aparato técnico, evidentemente. Mas há escolhas. E no
caso das Ciências Humanas, há injunções e interesses de classe em muitas
formulações.
A República dos Economistas quer interditar o debate. Quer
fazer crer que a “única saída” é fazer (de novo?!) a “lição de casa” liberal.
O Mundo entrou em crise em 2008 porque os países centrais do
capitalismo aceitaram a desregulamentação total – sob domínio do mundo
financeiro. O Brasil saiu-se razoavelmente bem da crise porque Mantega/Lula não
escolheram a receita liberal diante da crise. Fizeram uma escolha.
Grécia, Espanha e Portugal adotaram a “lição de casa”, e
seguem patinando em uma gravíssima crise que já não é “econômica” – mas social
e política.
Claro que o Brasil precisa agora de algum ajuste em suas
contas (gastou-se demais para incentivar o mercado interno). Claro que a
conjuntura externa (com queda do preço das chamadas “commodities”) mudou.
Mas alto lá!
No Brasil, o Estado sempre puxou o desenvolvimento. Com
Vargas e o trabalhismo, com a ditadura militar, com Lula/Mantega.
Dilma tentou dar mais um passo, reduzindo juros. Mas
emparedada pela mídia financista, e com a falta de apetite para o bom debate
público, foi derrotada.
Ganhou a eleição, mas perdeu o debate. É o que parece.
Com Levy, o setor financeiro está agora reocupando as
posições estratégicas na gestão econômica – e tenta fazer crer que “não há
saída”.
Na República dos Bacharéis, o Parlamento e as posições
estratégicas de Estado também eram ocupados por uma elite que esgrimia o típico
Liberalismo de fachada. Discurso liberal, prática política baseada no
coronelismo e no voto de cabresto (quem quiser mais informação sobre isso, pode
ler “Coronelismo, Enxada e Voto”, de Victor Nunes Leal).
O discurso bacharelesco, rococó (que ainda hoje ecoa pelo
Poder Judiciário de gilmares e fuxes), encobria a real dominação dos
fazendeiros – paulistas e mineiros, sobretudo.
Já naquela época, ouviam-se discursos de que o Estado devia
estar a postos para garantir o “bom funcionamento do mercado”. Era um discurso
encobridor da realidade.
Quando os fazendeiros perdiam dinheiro com as variações do
preço do café no mercado externo, aí o Estado era chamado para acudi-los.
Liberalismo de araque: na política e na economia.
Da mesma forma, os ultraliberais da Era FHC/Malan falavam
grosso com o “excesso de direitos trabalhistas”, mas aceitavam que os bancos
deviam ser salvos pelo Estado para evitar “crises sistêmicas”. O PROER,
lembram-se?
Era o ponto cego da política “liberal” de FHC. Uma vez
revelado, mostrou que esse discurso de “menos Estado” (seja com os
fazendeiros/bacharéis da República Velha, seja com Malan ou com Levy) serve
sempre para encobrir a prática de “menos Estado para as maiorias, e mais Estado
a serviços dos bancos”.
Votei em Dilma (e votaria de novo, repetidas as condições de
2014). E posso entender que o manejo de um país gigantesco requer concessões
variadas. Mas aceitar que o discurso liberal fajuto ganhe de novo a hegemonia
no debate é ceder em tudo.
Dilma cedeu, em parte. Mas (até agora) não cedeu tudo – como
mostra o pito público recebido por Nelson Barbosa (o novo ministro do
Planejamento, que propôs o balão de ensaio de mudar a política de ganhos do
Salário Mínimo – um dos alicerces do lulismo).
É preciso travar esse debate. Não aceitar a tese da “lição
de casa”. E fazer oposição dura a qualquer tentativa de desmonte do Estado e de
redução dos direitos sociais e trabalhistas.
Não se trata, aliás, de “Estado x Mercado”. Não! A disputa
central no governo Dilma é outra: mais Estado para muitos ou mais Estado para
atender aos interesses de poucos.
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