Por Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa:
A leitura crítica dos jornais brasileiros pode produzir
momentos interessantes, não propriamente pelo que dizem, mas principalmente
pelo que tentam esconder. O hábito de analisar criticamente o conteúdo da mídia
tradicional produz calos no cérebro, e eventualmente o observador passa a
enxergar não mais a notícia, mas a não-notícia, ou seja, aquilo que o
noticiário dissimula ou omite.
Trata-se de um exercício divertido, como se o leitor
estivesse desfazendo um jogo de palavras cruzadas já preenchido. É mais ou
menos como adivinhar, a partir das palavras que se interconectam num texto, o
sentido que o autor pretendeu dar à sua construção. No entanto, embora o
esquema seja interessante, a prática desse jogo de “interpretação reversa” não
chega a ser instigante, porque a qualidade dos textos é geralmente muito pobre,
e as intenções dos autores e editores se tornam muito explícitas. Mas não deixa
de ser boa diversão, o que, afinal, ajuda a cumprir o novo papel da imprensa, o
de entretenimento.
Há um bom número de exemplos nas edições dos jornais de
quinta-feira (19/2), entre eles o esforço em manter a atenção do leitor com
foco na lenta recuperação do reservatório da Cantareira, ao mesmo tempo em que
apela ao bom senso para que as pessoas continuem a economizar a água.
No Jornal Nacional da TV Globo, a cada nota sobre o volume
de chuvas em São Paulo segue-se a imagem da apresentadora, com expressão de
madre superiora, lembrando que não basta a ajuda de São Pedro: é preciso seguir
contando as gotas no chuveiro.
No Globo, chega a ser patético o esforço dos editores em
celebrar a vitória da escola de samba Beija-Flor e ao mesmo tempo denunciar as
relações de seu presidente, o bicheiro Anísio Abrahão David, com o ditador da
Guiné Equatorial, que financiou o desfile carnavalesco.
Na Folha de S. Paulo, que produz três páginas especiais para
festejar seus 94 anos, esse aspecto ambíguo da imprensa ganha ares oficiais:
para mostrar que “o pluralismo é um dos pilares editoriais da Folha”, como diz
o enunciado do material comemorativo, o jornal apresenta oito artigos sobre
temas da atualidade. Assim, o leitor pode apreciar duas opiniões diferentes
sobre as seguintes questões: “A presidente Dilma deve sofrer ação de impeachment
em decorrência do escândalo da Petrobras?”; “O governador Alckmin é culpado
pela crise hídrica em São Paulo?”; “Diante dos sinais de recessão, o BC deveria
parar de subir os juros?”, e “As redes sociais tornam as pessoas mais
egoístas?”
Por que a árvore caiu?
Decompondo a edição da Folha, pode-se afirmar que nenhuma
das quatro questões admite apenas duas respostas, “sim” ou “não”, como propõe o
jornal. Mas o mais interessante é que a Folha apresenta afirmações como se
fossem perguntas. Por exemplo, se misturarmos as palavras, um dos enunciados
seria: “O governador Alckmin deve sofrer ação de impeachment por ter adiado
decisões sobre a crise hídrica por razões eleitorais?”; outro enunciado poderia
ser: “A presidente Dilma é culpada pelo escândalo da Petrobras?”
Como se vê, a tal “pluralidade” já nasce condicionada,
porque a imprensa brasileira quer convencer o leitor de que existem apenas duas
interpretações possíveis para questões complexas como essas. E observe-se que
todo o noticiário é composto por questões complexas, ou, no mínimo,
controversas, porque é isso que define uma notícia.
Uma árvore caiu. Por que a árvore caiu? – mesmo num evento
corriqueiro e aparentemente banal, há muitas respostas possíveis.
Por que a imprensa brasileira tenta pintar tudo em preto e
branco, sem considerar as muitas tonalidades entre os dois extremos? Ora,
porque a imprensa faz parte do sistema de poder na sociedade moderna, e exerce
esse poder fazendo pender as opiniões para um lado ou para outro, usa o mito da
objetividade para valorizar seus produtos e cobra de seus financiadores um
custo por esse trabalho.
Mas pode-se elaborar melhor essa análise. O observador
arriscaria afirmar que a narrativa jornalística, tal como foi construída ao
longo do tempo, já não dá conta de acompanhar a percepção da realidade,
amplificada pelo domínio da imagem transmitida globalmente em tempo real. Como
notou o filósofo Vilém Flusser, a superfície ínfima da tela substitui o mundo
real. O que a imprensa faz é comentar essa superficialidade, não a realidade.
Mas a resposta é ainda mais simples: para ser levado a
sério, um jornal precisa dar a impressão de concretude em seu conteúdo, mas, ao
se tornar refém do mundo das imagens, produz uma concretude – ou, como diz
Flusser, uma “concreticidade” superficial.
Essa superficialidade procura esconder o propósito do
conteúdo jornalístico, que não é informar, com pensam os leitores
correligionários: é induzir uma opinião específica.
Se tudo é opinião, tudo é não-notícia.
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