Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Determinados acontecimentos históricos tem uma reconhecida
capacidade de iludir seus contemporâneos.
O mais recente envolve a multa de R$ 4,47 bilhões que o
Ministério Público pretende aplicar contra seis empresas envolvidas na Operação
Lava Jato. O MP também pretende impedir que participem de licitações, que
recebam benefícios fiscais e juros subsidiados em seus investimentos.
Diante da estatura dessas empresas, entre as maiores do
país, estamos falando de propostas que extrapolam o universo jurídico.
São medidas que, se forem aceitas pela Justiça, envolvem um
caso de terrorismo, que consiste em manipular fatos econômicos para se obter
objetivos políticos, gerando efeitos que vão muito além dos cidadãos acusados,
prejudicando os trabalhadores e suas famílias, afetando ainda o nível de
emprego e o desenvolvimento do país.
O absurdo reside aqui. Não bastassem as delações premiadas,
as prisões prolongadas para forçar confissões, o cerco criminal ao ministro da
Justiça José Eduardo Cardozo, agora se tenta atingir o pão e a tranquilidade
dos brasileiros.
Não é só. Na sexta-feira, o Ministério Público entrou com
uma ação cautelar junto ao Tribunal de Contas da União que pretende impedir a
celebração de acordos de leniência entre o governo e as empreiteiras. A
preocupação é simples: sem prejudicar as investigações, os acordos de leniência
- instrumento jurídico empregado nas democracias mais saudáveis do planeta -
tem como finalidade impedir que a atividade econômica de empresas sob suspeita
seja inviabilizada pelo trabalho de apuração. O Ministério Público quer
prosseguir sua atividade que, mesmo quem imagina que é embalada pelas melhores
intenções, sabe que terá um impacto destrutivo sobre o país.
Surpresa? Nem tanto.
Principal estudiosa da construção de regimes totalitários no
século XX, Hanna Arendt nunca deixou de homenagear o estudioso Franz Borkenau,
para quem “o mal, em nosso tempo, exerce uma atração mórbida.”
Quem não esqueceu que a operação Mãos Limpas italiana é o
roteiro de trabalho da Lava Jato, como o juiz Sérgio Moro admitiu em artigo
escrito em 2004, só precisa ter clareza sobre um aspecto. Além de procurar,
assumidamente, a “deslegitimação” do sistema político - o que também se busca
no Brasil - a Mãos Limpas inaugurou um período de empobrecimento e recessão na
economia.
Foi assim que destruiu um sistema que garantiu o mais
prolongado regime democrático da Itália ao longo de sua história republicana,
colocando em seu lugar um condomínio de partidos e lideranças frágeis e dóceis,
ideais para serem alvo das maiores economias da União Européia e dos Estados
Unidos.
O saldo econômico da Mãos Limpas é uma tragédia. Como
informa a Economist na edição de 31 de janeiro de 2015, o desempenho da Itália
nos anos posteriores à Mãos Limpas foi pior até que o da Grécia, aquela que
enfrentou uma recessão de 25% em cinco anos, no mesmo período: “em valores constantes,
a economia italiana afundou nos primeiros 14 anos do século (mesmo o PIB da
Grécia é maior hoje do que era em 1999). ”
No Brasil de 2015, a multa de R$ 4,47 bilhões pode abrir
processo destrutivo de longa duração e consequências nocivas para o conjunto do
país.
Parece difícil enxergar isso agora mas esse tipo de
adormecimento das consciências é mais frequente do que se imagina.
Deposto em 1 de abril de 1964, João Goulart deixou o país
convencido de que logo voltaria à presidência. Já uma parcela respeitável de
seus adversários, na base social do golpe militar, tinha certeza de que a
ditadura estava programada para durar um ano. Foram vinte anos.
A leitura de outros relatos históricos mostra que esta
dificuldade está longe de ser uma peculiaridade brasileira.
Na maior parte da Segunda Guerra Mundial, o Partido
Comunista Francês desempenhou um papel reconhecido na resistência ao nazismo.
Nem sempre foi assim, porém.
Lembrando os primeiros anos de ocupação da França pelas
tropas nazistas, quando Stalin e Hitler tinham assinado um pacto de não
agressão, o dirigente comunista Adam Rayski registra uma constrangedora
convivência do PCF com os nazistas.
Em “Nos ilusions perdues”, Rayski recorda documentos que
pregavam: “Abaixo o capitalismo ariano e judeu”. No jornal do partido, então
publicado com outro nome, também se pedia pela expropriação “de grandes
capitalistas judeus”, num comportamento que leva Rayksi a se perguntar se essa
visão era simples expressão da visão de mundo de determinados jornalistas do
partido ou se traduzia um esforço “de acomodação entre comunistas e nazistas.”
Você já sabe que nas ultimas semanas, no Rio Grande do Sul,
7.000 empregos ligados a Petrobras já foram eliminados, em empresas que acusam
um rombo de R$ 5 bilhões nos pagamentos a receber. Este é o sinal de alerta
para a judicialização da economia.
Do total cobrado pelo Ministério Público, a maior parcela -
R$ 3,1 bilhões - encontra-se na categoria sempre subjetiva dos "danos
morais", envolvendo dez vezes o valor estimado das propinas, o que não é
comum.
Repetindo um mantra que os brasileiros ouviram até enjoar
durante a AP 470, os procuradores da Lava Jato falam em “punição exemplar”.
Exemplo de que mesmo?
Pedindo auxílio a metáforas da medicina, que envolvem uma
realidade que nada tem a ver com o funcionamento da Justiça e muito menos com a
política, fala-se ainda em “câncer”, em “metástase.”
O que se busca é esconder medidas jurídicas que colocam em
risco o emprego dos brasileiros, seu salário, o futuro de suas famílias.
Para começar, falta provar que todas as denúncias contra
essas empresas são verdadeiras e podem ser demonstradas a partir de provas
robustas. Quem sabe? Na página 36 da denuncia contra a OAS, por exemplo,
chamada a pagar uma multa de R$ 988 milhões pelo pagamento de propinas,
admite-se singelamente que “as transações bancárias até o momento não
identificaram o montante de 1% nos contratos firmados entre a construtora e a Petrobras.”
Na página 8, cita-se uma delação premiada, produto das circunstâncias que todos
conhecemos, que afirma que “todos sabiam” do pagamento de um “porcentual” ao
Partido dos Trabalhadores. Em outro cúmulo se precisão, se diz: “o que se
rezava dentro da companhia é que esse valor seria integral para o PT.”
A questão política e jurídica, na verdade, é outra. Consiste
em perguntar quem deve pagar a conta.
Teve razão a presidente Dilma Rousseff ao lembrar, ontem,
que o país estaria muito melhor se as denuncias que envolvem a Petrobras
tivessem sido investigadas há quase 20 anos, quando o gerente Pedro Barusco
começou a montar um esquema na empresa.
Errou Fernando Henrique Cardoso, quando, horas depois, deu
uma resposta torta: “como alguém serio pode responsabilizar meu governo pela
conduta imprópria individual de um funcionário se nenhuma denúncia foi feita na
época?”
Há exatamente 18 anos, durante primeiro mandato de FHC, o
Brasil inteiro tomou conhecimento de uma denúncia do jornalista Paulo Francis de
que havia um esquema de propina na Petrobras, pela qual diversos diretores
mantinham contas de 50 e 60 milhões de dólares em contas secretas na Suiça.
Francis repetiu a denúncia mais de uma vez, pela TV.
Inconformada, a diretoria da Petrobras decidiu acionar
Francis na Justiça, numa ação por danos morais no valor de US$ 100 milhões.
Estimulado por José Serra, o presidente tentou convencer os executivos da
empresa a desistir da ação. Protegeu um amigo do governo mas não demonstrou a
mesma atenção pela Petrobras.
Se tivesse mandado investigar o caso, como era dever de um
presidente, poderia - eu disse poderia - ter descoberto um universo paralelo
que seria denunciado quase duas décadas depois.
Meu palpite - mas é só um palpite - é que não se pretendia
fazer nenhum movimento que gerasse ruído em torno de um projeto maior, de
privatizar a maior empresa brasileira. Um ano depois da denuncia de Francis,
FHC assinou decreto que permitia que a Petrobras fosse dispensada de licitações
para definir seus investimentos. Curioso, não?
Em 1996, quando Paulo Francis fez a denuncia, Ministério
Público já havia conquistado a autonomia de investigação garantida pela
Constituição de 1988. Fez alguma coisa? E a Polícia Federal?
Aprende-se, mais uma vez, uma boa e velha lição: a primeira
medida para se impor medidas que prejudicam o conjunto da população e
comprometem o destino do país é apagar sua memória. Deu para entender, certo?
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