Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Sete anos e nove meses depois da tragédia do Air Bus da TAM,
onde morreram 197 pessoas em Congonhas, a Justiça inocentou os três principais
acusados pelo desastre. Acatando as conclusões de um laudo da Aeronáutica, o
juiz Marcio Guardia considerou que o acidente foi provocado por um lamentável
problema técnico - o manete que deveria inverter a rotação das turbinas e
freiar o avião não funcionou. A sentença contraria a versão divulgada
inicialmente pelos meios de comunicação, de que a tragédia teria sido provocada
por imprudência do governo federal, acusado de autorizar o uso de uma pista do
aeroporto antes que ela atendesse todos requisitos de segurança.
Diante do veredito, que pode até ser contestado
tecnicamente, desde que apareçam dados novos, capazes de alimentar uma
discussão embasada e racional, eu acho indispensável examinar o papel dos meios
de comunicação na cobertura daquela tragédia, a maior da aviação civil
brasileira. Iniciada quando os trabalhos de rescaldo, em Congonhas, nem haviam
terminado, o país assistiu a um esforço absurdo para culpar o governo do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva e criminalizar pessoas de confiança da
Presidência.
O saldo, lamentável, foi confirmar uma conhecida máxima de
Joseph Goebells, o ministro da propaganda nazista, sobre a manipulação política
nas sociedades contemporâneas: uma mentira, repetida 1 000 vezes, se transforma
em verdade.
Apenas 48 horas depois da tragédia, a Folha de S. Paulo deu
um título na primeira página: “O que ocorreu não foi acidente, foi crime.” O
autor do texto, que sequer era um especialista em acidentes aéreos - tratava-se
do psicanalista Francisco Daudt, do Rio de Janeiro - falava com clareza.
Referindo-se, nominalmente, ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, (“demagogo
tão esperto e eficiente”) Daudt escreveu: “O assassino não é só aquele que
enfia a faca, mas o que, sabendo que o crime vai ocorrer, nada faz para
impedi-lo.”
Referindo-se à uma situação que meses antes a própria mídia
havia batizado de “caos aéreo”, um editorial do Globo apontou o dedo para o
Planalto, sugerindo que 197 pessoas haviam morrido em função de oportunismo
político: “Pode ser que alguém no governo, Infraero ou Anac tenha preferido não
correr o risco político de o termo ‘apagão aéreo’ voltar às manchetes da
imprensa. Infelizmente, foi preciso essa tragédia para ficar claro que
Congonhas precisa operar com um grau mais amplo de segurança”.
A mesma visão chegou a imprensa internacional. O
correspondente do “Financial Times” no Brasil, Jonathan Wheatley, denunciou no
portal da publicação a “incompetência” do governo Lula para enfrentar uma crise
que já durava pelo menos dez meses. Embora Lula tivesse três anos e meio de
mandato pela frente, Wheatley apontou para a sucessão presidencial: “A extrema
necessidade de um governo mais eficiente no Brasil nunca esteve tão clara.”
A indignação também apareceu a seção de cartas dos grandes
jornais, em grande parte refletindo o tom da cobertura. No Estado de S. Paulo,
um leitor perguntou: “Quantos morreram desta vez? E quantos nossos governantes
conseguirão assassinar até o final de seus mandatos?” Outro leitor foi direto:
“O que se verifica é que a sanha populista de um governo despreparado é a
responsável pelos acontecimentos. O Senhor Presidente terá a dignidade de
reconhecer sua parcela de culpa?”
Isso não ocorria por acaso. Naquele Brasil de 2007, onde
Luiz Inácio Lula da Silva acabara de dar início ao segundo mandato, derrotando
uma campanha infame em torno da AP 470, os aeroportos eram um dos símbolos da
distribuição de renda e crescimento do consumo. Num país continental, com um
sistema de transporte de passageiros precário e obsoleto, a venda de passagens
aéreas crescia 13% ao ano desde 2003. Apertadas nas filas de restaurantes, no
guichê de embarque e nos sanitários, famílias tradicionais de classe média se
queixavam da falta de conforto. Também sentiam-se ameaçadas em seu prestígio e
na hierarquia social.
Um mês antes da tragédia, quando a confusão - transitória,
como se veria mais tarde - atingia um ponto máximo, a então ministra do Turismo
Marta Suplicy anunciou um conselho célebre (“relaxa e goza”) quando lhe
perguntaram o que era preciso para enfrentar aquela situação - frase que os
adversários do governo iriam recuperar, semanas depois, para mostrar o pouco
caso do Planalto com a segurança dos passageiros.
Como não poderia deixar de acontecer, o caso mobilizou o
ministério público. O mesmo procurador Rodrigo de Grandis, responsável pela
Operação Satiagraha, e que deixou na gaveta errada um pedido da justiça suíça
envolvendo a investigação do metroduto paulista, garantiu sua participação no
caso. Pediu uma pena espetacular de 24 anos de prisão para os acusados.
Numa postura que expressa, no fim das contas, uma profunda
falta de respeito humano com a dor de milhares de pessoas enlutadas, que
necessitam de informações confiáveis e seguras para enfrentar uma tragédia
difícil de entender e impossível de nunca de aceitar intimamente, nossos
jornais, revistas e emissoras de TV decidiram fazer uma cobertura
política-eleitoral, estimulando o desconhecimento e o preconceito de uma
parcela da população. Tentaram, descaradamente, usar a tragédia para atender
finalidades políticas.
A pior notícia, meus amigos, é que a propaganda funcionou -
ao menos em parte. Um mês depois, quando já se sabia que a tragédia fora
produto de um problema mecânico, envolvendo uma empresa privada, fosse a TAM,
fosse a Airbus, já havia se formado um ambiente de protesto político que seria
mantido de qualquer maneira, mesmo contrariando avaliações técnicas. No Rio de
Janeiro, as famílias organizaram uma manifestação de luto e protesto, onde
puxaram uma vaia para Lula. Em São Paulo, centenas de pessoas desfilaram atrás
de uma faixa que exibia uma afirmação de classe: “Somos a elite decente.” O pai
de uma menina de 14 anos subiu no carro de som para dizer: “Eu sei que minha
filha foi assassinada pela incompetência do governo.”
0 comentários :
Postar um comentário