Autor:
Eduardo Guimarães
O interlúdio político e a distância da Paulicéia
descontrolada – encontro-me em visita a Teresina, Piauí, no momento em que
escrevo – oferecem possibilidade de uma reflexão curiosa sobre a cultura
brasileira. De onde vêm essas correntes de opinião tão estridentes e poderosas
que conseguem impor seus menores caprichos ao conjunto da sociedade?
Caso fosse vital para a esta sociedade que o poder do
indivíduo de tomar determinada decisão de caráter pessoal fosse retirada dessa
esfera privada e transferida para a comunidade, poder-se-ia entender esse
contingente amplamente majoritário dos brasileiros que se opõe à legalização da
maconha. Contudo, a decisão individual de usá-la não afeta a ninguém mais do
que àquele que a toma. Então por que maioria dos brasileiros não aceita que a
maconha seja liberada no país, assim como o álcool?
A liberação da maconha é defendida abertamente por políticos
tão diferentes quanto Fernando Henrique Cardoso e Lula. O uso recreativo é
liberado em algumas partes dos Estados Unidos e até aqui ao lado, no Uruguai.
Os efeitos da erva são infinitamente mais leves que os do álcool.
Há mais argumentos pró-liberalização. A tomada de controle
por empresas privadas do comércio da substância geraria impostos e
inviabilizaria fabricação paralela por piratas. Assim como as pessoas preferem
determinadas marcas de cerveja, vinho ou uísque, acabariam preferindo
determinadas marcas de maconha.
Não duvidem da capacidade criativa dos publicitários. Logo,
logo a erva seria apenas mais um produto, com nicho de mercado e níveis
optativos de qualidade – que seriam todos superiores aos atuais, pois
traficantes não têm regras de higiene, pureza e tantas outras que passariam a
proteger o consumidor em caso de a maconha vir a ser fabricada em escala
industrial.
Não existe um argumento lógico para ser contra a liberação
da maconha. Talvez não afetasse muito os “negócios” dos traficantes no médio e
longo prazos, pois eles substituiriam a maconha por outra coisa. Mas, no curto
prazo, iria produzir um forte prejuízo, pois há toda uma “indústria” do tráfico
voltada para o comércio ilegal de maconha e ela estaria em funcionamento sem
ter onde colocar sua “produção.
Aliás, o “proibicionismo” em relação à maconha vai
adquirindo um caráter tão arcaico que em país socialmente mais desenvolvidos o
apoio à liberação da substância vem crescendo, como na Alemanha. Há cerca de
uma semana, o Partido Liberal Democrata (FDP) alemão votou, com ampla maioria,
a legalização da maconha.
Mais uma vez, então, a pergunta se torna obrigatória: por
que, cargas d´água, essa maioria tão sólida dos brasileiros não aceita, de
jeito nenhum, a liberação da substância?
No sábado 23, em São Paulo, segundo o noticiário, cerca de 4
mil pessoas marcharam da avenida Paulista até o Centro Velho da cidade em apoio
à legalização da maconha. Essas “marchas da maconha” são quase sempre
protagonizadas por jovens, mas todos sabem que o uso recreativo da substância é
disseminado por todas as classes sociais, regiões do país e faixas etárias.
Os mais velhos e mais empregados acabam resistindo mais a
defender uma prática que, no Brasil, “queima o filme”. Uma pessoa que participe
de marcha da maconha e poste fotos de sua participação no Facebook corre o
risco de não conseguir emprego ou até perdê-lo. Isso sem falar em reflexos com
seu círculo de relações sociais, caso não seja tão “liberal”.
Mas se você bebe até ficar falando “mole” e andando em
ziguezague, mesmo o mais conservador dos conservadores dará um sorrisinho
cúmplice e comentará que você passou “um pouco” da conta – muitas vezes, mesmo
que entre em um veículo e saia dirigindo. Por que? Porque “todo mundo” bebe;
uns mais, outros menos.
Uma pesquisa de opinião recente, porém, explica, com
razoável margem de sucesso, por que a sociedade brasileira prefere manter o uso
da maconha quase que como evidência de que o usuário é alguma espécie de
pervertido, irresponsável, capaz de fazer, do nada, as maiores barbaridades. As
pessoas estão desinformadas sobre a maconha. Acalentam conceitos ultrapassados
e distorcidos, fortalecidos por chavões que repetem pavlovianamente.
Em setembro do ano passado, em plena campanha eleitoral,
pesquisa Ibope revelou que 79% dos eleitores brasileiros eram contra a
descriminalização da maconha e apenas 17% eram favoráveis. Um placar semelhante
envolveu a questão do aborto: 79% eram contrários à legalização e 16%, a favor.
A maioria — ainda que por margem não tão larga — também rejeitava o casamento
gay: 53% a 40%.
Como se vê, uma maioria avassaladora dos brasileiros faz
questão de manter controle sobre questões da esfera privada de decisão do
indivíduo. As pessoas poderem fumar maconha, fazer aborto ou oficializarem
relação amorosa com pessoas do mesmo sexo é uma decisão pessoal que a maioria
do nosso povo quer manter como decisão coletiva sobre a vida íntima de cada um.
O Senado Federal divulgou dados mais aprofundados sobre a
opinião dos brasileiros relativa à maconha. Esse estudo mostra de onde vem essa
posição equivocada da maioria: da desinformação. As pessoas pensam, por exemplo,
que maconha faz mais mal do que o álcool. E a maioria esmagadora não conhece
ninguém que usa maconha – ou pensa que não conhece, pois quem usa não revela.
Confira, abaixo, os gráficos
Alguns dirão que a questão da maconha é lateral. O Brasil
pode muito bem conviver com isso. Liberar a maconha não vai acabar com o
tráfico. Só que é bem diferente.
Enquanto a maconha não for liberada, as pessoas continuarão
procurando bocas-de-fumo, onde outras drogas acabarão lhes sendo empurradas. E
ainda correrão risco ao se relacionarem com criminosos.
Mas se mesmo assim você achar que a discussão sobre a liberação
da maconha não é tão importante, entendamos que essa postura sobre o uso da
substância se insere em um contexto bem maior.
A mesma forma de ver as coisas que leva as pessoas a
quererem manter a maconha ilegal as leva a rejeitar, por exemplo, que uma mulher
que não tem condições físicas, mentais, financeiras ou todas juntas para ter um
filho possa interromper uma gravidez que agravará os problemas sociais do país
não só para quem terá o filho, mas para este, pois nascerá sem ninguém que
cuide responsavelmente de si e acabará jogado pelas ruas, onde a chance para
pular para o crime ou para a mendicância será imensa.
A ignorância tem um alto custo para o país. Sobrecarrega o
sistema público de saúde, cria barreiras sociais injustas e fornece ambiente
para o cometimento de crimes (tráfico e execuções de aborto malfeitas). O
atraso cultural é tão ou mais danoso que o tecnológico.
O ideal seria que os poderes constituídos empregassem o
sistema educacional para dar às próximas gerações uma visão mais atualizada do
mundo, mas, olhando para as forças políticas que hoje controlam o Legislativo e
boa parte do Judiciário, as esperanças escasseiam. O Brasil terá que trabalhar
muito para trazer essa maioria de seu povo para o século XXI.
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